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30 novembro 2010

AMOR, TEMPO E UMA METALINGUAGEM DANADA DE COSTUREIRA

(Alexandre Campinas)


...Quer ir para Minas.

Minas não há mais...”

(E Agora José – Carlos Drumond de Andrade)


Achei ontem um pedaço de papel. Uma escrita dessas que vulgarizei por todos os cantos e tempos. Com geniais “insights” que eram condenados ao mofo eterno de gavetas profundas. Falava de um amor quinzanista, já não me lembro se Elisa ou Constância. Já não me lembro se escrevi como causa ou conseqüência. Ou para fugir. Ou para achar. Quem sabe prever ?


Em quatro ou cinco linhas meus garranchos mal se arranjavam. Sem sentido, nem nexo. Mal escrito. A utilidade dessas notas, disso lembro-me bem, era a aplicação imediata (em dois ou três dias) de impressões intertextuais que bem cairiam em uma poesia. Eram medíocres, porém eficazes. Eram as minhas armas e, no entanto, exatamente esta ficou para trás. Certeza absoluta de que ficou, afinal nunca namorei ou sequer bolinei (não se ria, era assim) Elisa ou Constância. Aliás, queria ambas (Constância tinha uma bunda...) como namoradas eternas. Voa-voando ao meu redor como os passarinhos do Rubem Braga.


Tempus fugit. Um tempo comezinho, ordinário. Tempo de sonhos. Tempo de amores tão profundos quanto voláteis. Paradoxais: vividos tão intensa quanto circunstancialmente. Eram muitos os amores, afinal a minha umbilical indústria poética tinha que prosperar, havia uma finalidade (e eu sequer imaginava que a isso chamava-se – nos meios científicos – de instinto de preservação da espécie).



Elisa era inteligente, seus olhos faiscavam quando me ensinava sobre a resistência contida e escondida sob o metafórico romantismo das músicas de protesto. Eu escutava Elisa olhando para a bunda de Constância. Deliciosa dúvida.


Minto. Descaradamente.


Sim, é verdade, o tal garatujo existe, mas Elisa ou Constância nunca tiveram vida real. Bundas e inteligências sim (que adoro ambas sofregamente). Talvez Elisa e Constância sejam o estímulo para que hoje eu rememore o que tudo significava, ou melhor, o peso dessa significado. Das linhas, do papel. Um pardacento papel de pão (ou seria de sonhos ?) que espicho... espicho... em frente a tela do meu PC, buscando cronicar o poema que ficou no escaninho da memória com vontade de ter sido. Resgate do amor necessário, do texto urgente. Reequipamento de minha armada.


FIM


PS. Casei com Elvira, uma toupeira. Seca como uma tábua.

27 outubro 2010

O Dia da Criação

(Alexandre Campinas)

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.”

(O Dia da Criação – Vinícius de Moraes)

Está sentado e lê um conto. Sorve mais um cálice de licor mineiro de jaboticaba. Os últimos movimentos de Ashes Are Burning soam pesados. Uma guitarra invasiva, doridamente penetrante, corta a pequena sala onde o charuto vai olorando em seu estertor. Charuto, jaboticaba e Renaissance. O álcool, a caudalosa progressividade sinfônica do tema musical, ele pensa, encaixam-se com perfeição na densidade daquele fumo encorpado. Não poderia ter sido melhor a sugestão do seu primo para o tipo adequado do cigar. Licor de jaboticaba e o progressivo vieram no bojo, escolhidos por ele, entretanto a indicação fora fenomenal.


Um sábado de muitos afazeres domésticos; deliciosamente comezinhos, portanto. Após o almoço (que ele preparou para a família) um robusto. Baiano “no label”. Nada que comprometa suas carcomidas finanças e o atrapalhe com divagações inoportunas, afinal é sábado.


Um curto de queima uniforme, cinza firme e razoavelmente clara, mata norte, capa escura, devidamente celofanado, excelente para a categoria de short-filler (somente à qual ele pode candidatar-se no momento), denso e rápido, sem entupimentos que atrapalhem os 40, 50 minutos da fruição desejada. Tudo isto ele poderia ter escrito, porém deixou a cargo de mim. Quer a sua hora, o momento é dele.


Nada de fabulosamente erótico lhe traz reminiscências idílicas, não matou ninguém (o que daria um lindo fechamento rubenfonsequiano a esta crônica), nenhuma divagação profundamente filosófica naquele momento.


Olhando pela janela, o mundo continua modorrentamente igual. Nada, enfim. O vazio ideal para a quantidade de tempo de que dispõe. Poderia meditar, entoar om`s sem fim, pensado os koans da vida. Nada.


A cinza esquenta o indicador e o pai-de-todos a uns dois centímetros. Deixou que ashesburninhasse tranqüilamente no cinzeiro.


Vi seus olhos piscarem espaçadamente na lentidão do sono que chega. Dormiu. Ganhou mais uma hora. Tomba o livro de suas mãos e o final do conto que lia esparrama-se em outro onirismo.


Porque é um sábado.

08 outubro 2010

Drogaria Granado - Tijuca / RJ - Foto de Giovanni Darienzo



CRÔNICA DO EXÍLIO
(Alexandre Campinas)


Valei-me por suas flechas, São Sebastião do Rio de Janeiro !


Essa cidade minha. Que me corta a alma a cada canção. Saudades que evocam toda a recordação de um tempo feliz. Uma vida feliz. Um passado cidade. De ônibus elétricos no subúrbio e mão firme de mãe na minha mão. Tempo de sonho e esperança, poesia e canção.


“Vamos carioca e sai do teu sono devagar. O dia já vem vindo e o sol já vai raiar.”


Vai raiar em Copacabana, em frente a Constant Ramos onde nos sentávamos meu avô e eu após a visita a colônia de pescadores. Ele a decepar e eviscerar peixes. Ali mesmo, em pleno calçadão. Eu, a sorver vida.


“São Jorge teu padrinho te dê cana pra tomar. Xangô teu pai te dê muitas mulheres para amar.”


Viva o Tom e a Miucha. Viva o poetinha. Viva o suburbano Aldir do Light e dessa deliciosa vida merda da qual eu também faço parte e adoro. Profundamente adoro. Barão de Drumond e Boulevard. Floresta de densa mata dos cantos e pássaros. Paineiras. Uma cascata escondida na curva que descortina a pintura da Lagoa, da Gávea e do campo do Flamengo nos fundos do Jóckei. Ou seria o Jóckei nos fundos do campo do mais querido ? Assim como fosse um quintal com cavalinhos...


Cidade eu sou perdidamente apaixonado por você. Eu sou você, sou meu pranto no Samba do Avião. Sou enlevo na Valsa de uma Cidade, sou cidadão ouvindo Cidade Maravilhosa. Te olho, suburbanamende tímido, do Excelsior e te exploro inteira, do Caju ao Maracanã. Da Central do Brasil ao Encantado, nome lúdico da infância vivida. Cidade que confunde a minha salgada saudade de lágrimas ao teu doce contorno mulher. Tenros seios, montanhas onde mama a minha dor. Boa dor de saber-se dono do que não é. Pipas na Ilha do Governador. Uma santa. Sensual e ondulada Teresa. Uma gente, Ipanema. Uma gente, Vila Valqueire. Iguais. Um povo todo irmão. Todo igual.


Outra ilha e a mais amada fantasia. Um baobá por Maria Gorda, a profunda raiz de Paquetá, inesquecível amor. Eterno amor. Da Ribeira ao Catimbáu, do Iate ao Municipal. Gostosa tatuagem da minha vida. Amada tortura a qual eu, órfão de ti, me submeto mergulhado em prazer e gozo.


Santa, curta, Sofia. Santo Afonso, de pé sobre o adro de seu templo, velando a minha Tijuca querida. Conjunção carnal de ruas, e cinemas que já não o são desembocando na praça de nome de herói sulamericano. Chafariz e ginasta. Café Palheta e longa tênia em tuas carnes.


Desejo de chegar-te de qualquer lugar, rodas baixando sobre a ponte. Renascer a cada toque suave na noturna e iluminada pista do Santos Dumont.

“... dizem que sou démodé, saudosista, blasé, retro... e eu sou ...”

(Os versos que aparecem entre aspas são de letras de Vinícius de Moraes e também de Aldir Blanc)

10 junho 2010

A MORTE E A MORTE DE VANNEVAR E THEODORE

NO REINO CÓSMICO, HIPERTEXTUAL E ONÍRICO

DE LEVY, BORGES E CARTOLA


(Um conto-exaltação acadêmico)


-1-

Então caímos prostrados frente àquilo e choramos. Choramos copiosamente, Adso e eu. Era a resposta, e a resposta, constatamos, nunca esteve longe de nós, senão dentro. Era tudo. O que sempre foi, é e será. O tempo todo. Comandado pelos nossos próprios processos mentais automáticos. Choramos como se fôssemos secar o mundo. Éramos, enfim, o Todo e parte Dele enquanto

mirávamos aquele ponto onde Ele Se escondia, entre os degraus de nossa infinita escada. Amplificação dos conhecimentos do mundo.


Adso havia embarcado comigo naquela aventura. Seu motivo era como o meu, mas algo existia a mais que nos imantava àquela procura. Disso, também em dupla, tínhamos certeza, e cada um de nós sabia ser essa a impressão do outro, sem que para isto precisássemos tocar no assunto. Apenas íamos, tocados pelo nosso intento e pela tremenda atração que a algum lugar nos levaria. Tínhamos certeza.


-2-


Sei que adormeci na sala de tv enquanto assistia a uma reprise de uma partida qualquer de futebol. Dormir no sofá... Esporte de sábado a noite.


Ouvi minha filha gritar. Um uivo dorido e materializado que cortava os espaços da casa como faca. Acorri em sua direção. Vinha do pequeno escritório-biblioteca que mantínhamos em casa, no antigo quarto de empregada, repouso de nossos livros, nossos estudos e, da máquina. Máquina moderna. A melhor possível para uso doméstico. Vários gigas, megas, teras, hertzs, putzs... Comprado num sacrifício de 36 prestações no melhor hipermercado da cidade.


Ela estava na internet e eu sabia. Minha pequena Priscila, 11 anos, já era quase uma cracker como ela dizia ser (vá saber-se o que significa isto... a mim lembrava insossos biscoitos quadrados... mas essas crianças de hoje...).

O pequeno e delicado mouse cor de rosa, com olhinhos pintados em seus botões e saída do fio reencapado de preto para dar a impressão de um rabo de ratinho de verdade balançava no nada, pendente de seu pad (estes anglicismos ainda me matam). Procurei na casa inteira, apavorado, pela minha pequenina. Nada. Portas e janelas permaneciam trancadas. Minha esposa dormia profundamente. Acontecera ?


Na tela do PC, piscava a última mensagem recebida por Pri. Era da Eduarda, filha do Adso do 201, as duas eram, além de vizinhas, colegas de classe:


    • Tbm descobri, Pri, vc naum tá sozinha na fita. Tamu juntas miga !!


Que merda de coisa esta merda quer dizer ?


Tudo bem, calma, pensei. Vamos lá, devagar, deve ser: “Também descobri, Pri. Você não está sozinha nesta história. Estamos juntas, amiga !


Em tanta coisa poderiam estar juntas... Mas pelo computador ? Sim, claro ! Priscila me falou que estava desenvolvendo um blog com a Eduarda:


    • Blog, véi. Uma espécie de diário internético. Blog. Web Log.

    • Ah , tá. Isso não é perigoso, filha ? Não vai te expor muito para os outros “na rede”(eu também já tinha minhas gírias) ?

    • Não, pai. Não é para o mundo todo ver. Só eu e a Du seremos quem vai saber o endereço. Tipo assim: só a gente sabe, mas se quisermos que alguém mais saiba, a gente conta o endereço.

    • Daqui de casa ? (burro, interanta !)

    • Do blog pai, ô, se liga prego !

    • Então tá, filha, confio em vocês.

Desespero. Estava na mesma. Eu sabia que aquele blog não iria dar certo. Era ele, só podia ser o danado do blog. A internet chupou minha filha para suas entranhas, só podia ser. Maldita hora em que comprei o computador.


-3-


A campainha tocou. Adso. Sabia, abri a porta sabendo. Cara de desespero, como a minha.

    • Sumiu, bicho, sumiu. Estava no computador (agora é assim, todos estão no computador, nunca se sabe se dentro, atuando ou fora, voyerizando) ... De repente, nada. Sumiu. Virou nada.

    • Inferno. A Pri também. Estavam conversando no messenger. Eu vi o recado da sua filha na tela. Tem alguma idéia ?

    • Vizinhas de porta, mesmo andar, pra que conversar pelo computador ? Sei que elas estavam construindo um blog juntas. A Eduarda me falou que estava tentando achar uma forma de colar algumas dolls de um site que elas gostam, para por no blog delas.

    • Construindo ? Então era algo tangível ?

    • Não, maneira de falar, estavam criando, bolando...

    • Mas aí já temos uma pista, mas como procurar ? Vamos no escritório aqui de casa, talvez achemos algo. Você entende de computador ?

    • Um pouco (um pouco era muito mais que eu imaginava. Ele era analista de sistemas, falou aquilo para não me humilhar).


Nova mensagem no messenger, e agora muito mais estranha já que não havia mais Pri, nem Du:


A DOENÇA ESTÁ CONVOSCO. EXPLORE A JANELA. OS PORTÕES DE GUILHERME. VÁ AOS PORTÕES DE GUILHERME ESTUDAR E LER.

:-P


    • Adso, e agora ? Isto não diz nada para mim. Manda-nos estudar e ler. Será que vamos ter que ir na escola ? Que doença é esta ? Explorar qual janela ? Estão fechadas, todas as da casa. Não foi por lá que minha filha saiu. E quem é este Guilherme ? Estudar e ler... boa... só faltou me mandar para uma biblioteca... Nada bate, entende ? Nada bate ! E este símbolo: dois pontos, hífen, pê.

    • Calma. Tem algo a ver com internet. Achamos que ela as sugou, certo ?

    • Hã hã...

    • Este símbolo eu conheço. As crianças utilizam como uma careta, veja bem: dois olhos, nariz e língua de fora. Doença, vírus. Explore a janela, óbvio: windows explorer, portões de Guilherme, portões de Guilherme... Nada.

    • Se é tudo em inglês como parece, portões de Guilherme pode ser The Gates of William. (Há ! Ponto pra mim. O internético era ele, mas eu sou professor de inglês e francês, com muita honra e baixo salário).

    • Bingo !

    • O quê ?

    • The Gates of William. William. Bill. Gate. Bill`s gate. Bill Gates !


Fomos procurar pistas no windows explorer. Adso achou o tal vírus instaladinho, instaladinho na máquina.


    • Vou ter que abrir o vírus, você se importa ?

    • Por quê ?

    • Porque, de repente vai perder tudo o que tem aí, vamos ter que formatar depois.

    • Deixa de internetiquês e abre esta merda desse filho da puta desse corno desse vírus.


Dois cliques. Tudo azul escuro. Não na tela. Em torno de nós dois. Um monte de bonequinhas (as tais dolls) aparecem voando. Milhares delas, Lisergia total. Eu toco em uma com meu indicador. Uma vez. Duas vezes. Duplo clique... fudeeeeeuuuuuuuu...


Descemos numa espécie de toboágua a seco. Uma velocidade que se podia medir em cores e alterações delas. Via Adso, não via Adso, via Adso, não via Adso. Caímos no nada. Pesadelo. Portões dourados nos surgem à frente. Em cima, o deboche: Bill`s Gate. Mas não havia como entrar. Sim, era um portão, mas não tinha maçaneta, artifício elétrico, nada. Apenas cordas.

Cordas cheias de nós que pendiam desde o infinito. De cada nó, outras cordas partiam com mais nós ainda. E desses, outros nós, e cordas e nós e cordas... Seguimos uma corda, sem ligar para as outras que partiam dela. Chegamos a uma biblioteca imensa de infinitos corredores, tantos quantos os nós e cordas. Não era medieval a biblioteca. Era moderna, arejada. Organizada por assuntos, coisas de biblioteca. A corda estava amarrada a um livro e eu pensei: para que tanto caminho até a bibioteca se era só puxar a corda até o livro vir até nós ?


-4-


Começamos a pesquisa. Livro por livro, folha por folha, palavra por palavra. Aquilo deveria conter algum código, uma chave que nos levasse a algum lugar. Desce livro, volta livro, uma frase, um caminho, outro livro, e tome corda e nó e mais corda.

Estávamos velhos, eu via no espelho que Adso era. Via nele, a mim mesmo. Encanecido, arqueado. Talvez muitos anos passamos ali, nos corredores, estantes e mesas. Se tivéssemos nossos fígados bicados eternamente, o sofrimento seria menor, e, pior, nenhum recado trazido por Hermes. Hermes. E não é que o velho diabo nos apareceu ?

    • Hermes ?

    • Não, idiota. Bush.

    • George ?

    • Vannevar.

    • Desconheço.

    • Pior para vocês.


E apontou-nos uma sala escura. Fomos. Obedientes ou desesperados. Fomos.


-5-


Assim como as dolls do passado, brilhavam coloridamente no escuro várias repetições de uma frase: browse it ! browse it ! browse it ! Todas em negrito e sublinhadas. Adso:

    • Hiperlink ! Hiperlink !

Gritava louco. Parecia o homem da grua de Cabral a gritar: Terra a vista ! Sem nenhuma dúvida, Adso meteu o dedão de tirar meleca duas vezes num dos browse it ! (professor de inglês será sempre professor de inglês : dê uma olhada ! explore !) Nada aconteceu, além da sala iluminar-se e os browse it ! sumirem todos. Era uma sala comum, nenhum móvel além do grande monolito negro no meio da sala, encimado por uma tv e cercado de potentes caixas de som. Um detalhe: parecia um computador, mas não era. Não tinha teclado.

Uma velha remington, sem rolo e sem alavanquinha de subir a página. Adso, interneticamente mais experiente datilografou no nada: Vannevar.


A ficha era longa na wikipedia. Vannevar Bush, nasceu a tal, fez isto e aquilo e coisa e tal, morreu aos tais de tal de mil novecentos e tal.

    • Como morreu ?

    • Idiota, isto é virtual. O cara tá aí. Pra sempre.

    • Ah ... tá...


Descobrimos que o tal Bush era um gênio do passado que anteviu, ainda que limitadamente, a possibilidade do banco de dados. Chamou sua cria de memex. Enquanto nós pensávamos, a máquina não parava de cuspir informação: depois , um outro deles, Theodore. Esse foi além do Bush. Imaginou a evolução daquilo que era apenas um conceito.

Agora as pessoas falavam e conversavam e consultavam e registravam conhecimento. Uma loucura. A internet antes da internet. O Xanadu conforme Theodore Nelson nominou. Era hipertexto, nada mais era linear, ou, pelo menos, precisava ser. Mas tudo isso nós já sabíamos, era apenas história. De gênios, porém história.

Aquilo que parecia um computador pré-histórico,


    • Memex, seu ignorante ! gritou o Vannevar da porta.


começou a mover-se. Para o lado. Embaixo dele uma escada, descemos. Nos recebeu um simpático anão.



-6-


    • Meu nome é Finis Mentae. Muito prazer. Vocês foram trazidos até aqui para me ajudar. Eu já não aguento mais a função que me deram. Alguém datilografa algo lá em cima e eu saio por corredores para procurar as respostas. Sabem lá o que é isso ? anos e anos trancado neste infinito porão. Pensando, respondendo, estudando, anotando, sou o gerúndio em pessoa, mas cansado de sê-lo. Estudei tanto que evoluí e revolucionei esta porra toda. – chorava muito – mas eles sempre querem mais de mim. Sempre mais. Nunca se cansam. Ainda na virada do século tentei parar tudo. Não deu certo. Os caras lá de cima deram um jeito. Nem greve posso fazer. Tá certo, confesso, criei alguns mecanismos para confundir tudo, prejudicar muitos e atrofiar esta joça toda. Mas eles são poderosos. Criaram mecanismos contra minhas artimanhas.


Adso:


    • Então você é...

    • Sim. Sou. Um analista de sistemas como você, Adso. Criaram-me um engenheiro de tráfego de informações. Eu tinha um metro e noventa, era louro, ganhava bem, muito bem... Tinha mulheres, boas bebidas, carros lindos... E agora... Sou isto o que podem ver. Ajudei a criar tudo e não sou mais nada. Obsoleto.


Adso (cada vez mais técnico e chato):


    • Você criou o bug, os vírus...

    • Sim, e eles me fizeram criar os antivírus, solucionar o bug... Mas agora, já não sirvo mais para eles. Minha matemática não é suficiente para o que desejam. Querem um banco de dados como o cérebro. Eu não sou Deus ! Eu não sou Deus !!!!! Pensei que era, mas não sou.


Sou uma máquina, parte da máquina que ajudei a criar, mas eles querem humanos. Eu não posso mais pensar como humanos. 0001001111000110011


Neste momento fiz um comentário apropriado, espirituoso e inteligentíssimo:


    • Adso ! O que é isto de 0001001111000110011 ? Segura o pouca-sombra... o pintor de rodapé está dando tilt !


O escafandrista de aquário:


    • Passou... Passou. Ajudem-me a completar a máquina. Apenas humanos como vocês podem chegar ao final... ao final... ao final e ao início. O tudo e o todo.

    • Como ?!?!?!?!?! (nós dois, uníssonos)


-7-


    • O Aleph - falou o anão.

    • O quê ?!?!?!? (já estava ficando chato essa história de falar juntinhos)

    • Escutem isto


O anão tirou um LP de dentro do bolso, estalou os dedos e o disco girou no ar, reproduzindo uma história louca. E esta história não era apenas contada. Enquanto as palavras cortavam o ar, nós a vivíamos:


Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera tornassolada, de quase intolerável fulgor. Ao princípio pensei que fosse giratória; logo compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (a lua do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu claramente a via de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos escrutando-se em mim como em um espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi em um pátio da rua Soler os mesmos ladrilhos que há trinta anos vi no saguão de uma casa em Frey Bentos, vi ramos, neve, tabaco, gretas de metal, vapor d'água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer de mama, vi um círculo de terra seca em uma calçada, onde antes houve uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemont Holland, vi a um só tempo cada letra de cada página (quando criança eu costumava maravilhar-me de que as letras de um volume fechado não se misturassem e perdessem no decurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um pôr-do-sol em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi em um gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicavam sem fim, vi cavalos de crina como um remoinho, em uma praia do Mar Cáspio na aurora, vi a delicada ossatura de uma mano, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões postais, vi em uma vitrine de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de umas samambaias no solo de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisontes, marejadas e exércitos, vi todas as formigas que há na terra, vi um astrolábio persa, vi em uma gaveta da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, incríveis, precisas, que Beatriz havia dirigido a Carlos Argentino, vi um adorado monumento na Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo, vi a circulação do meu próprio sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, vi minha cara e minhas vísceras, vi a sua cara, e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem jamais olhou: o inconcebível universo.” (Excerto de O Aleph, Jorge Luiz Borges)


-8-


Então caímos prostrados frente àquilo e choramos. Choramos copiosamente, Adso e eu. Era a resposta, e a resposta, constatamos, nunca esteve longe de nós, senão dentro. Era tudo. O que sempre foi, é e será. O tempo todo. Comandado pelos nossos próprios processos mentais automáticos. Choramos como se fôssemos secar o mundo. Éramos, enfim, o Todo e parte Dele enquanto mirávamos aquele ponto onde Ele Se escondia, entre os degraus de nossa infinita escada. Amplificação dos conhecimentos do mundo.


A totalização deles. O absoluto. Nada havia, nada era real, ou o era de uma forma ainda não nos fora dado conhecer até então. Tudo era um eco. Uma onda hertziana perdida no espaço, um eterno dejá vu. Quando começou ? Onde terminará ? Quem poderá dizer ? Nem o pequeno e absoluto Aleph, instrumento do todo, ele também uma mensagem impressa numa onda a reproduzir-se eternamente a cada receptor que encontra. E Adso ? E eu ?


Quem sou eu ?


Pergunte você às rosas... mas, lembre-se: as rosas não falam.



-9-


E o sumiço das meninas ?


Eu falei desde o início que era um sonho no sofá da sala, num modorrento sábado, lembra ?


E que um doutor em comunicação que conte outra.


-*-


01 junho 2010

(Em tempo: Tetelo "Batman", Alexandre e Kinho Vaz)



PERVERSOS PRECOCES
Éramos uma legião de demônios precoces. Não valíamos a bala que roubávamos na quitanda. Nem os sacos que enchíamos com urina, para arremessar nos ônibus lotados. Uma turba vadia, de liberdade indecente, como a nossa condição. Tínhamos a fragilidade das rolinhas que abatíamos por lazer e fome. E a resistência das pequenas eras que crescem nas frestas das calçadas. Éramos seres sem compromissos. Pequenos e pobres como as possibilidades disso mudar.

O nosso tempo só contava após a escola, onde despertávamos remelentos, desgrenhados e sacudidos pelos berros do inspetor. Não éramos rebeldes, pois ainda não conhecíamos a rebeldia. Mas conseguíamos agregar criatividade à ousadia de um jeito agressivo. Tanto que os adultos nunca descartaram a possibilidade de nos mandar para um reformatório. Puro exagero. A nossa perversidade era ingênua. Não tinha nenhum efeito prático, senão o de nos divertir.

Como foi divertido roubar o Ford Bigode do seu Manduca. Uma paixão do velho. Mantido como uma amante. O carro ficava parado o tempo todo, na sua porta. Dali só saía uma vez por mês, dirigido pelo seu Manduca. Sempre num sábado. Ninguém, nunca, descobriu porquê. O velho entrava no carro e a gente provocava para ele reagir. Já vai passear de carroça, Manduca? Sai da frente suas pestes. Sai senão passo por cima, bando de bostinhas. A gente ria dos insultos, mas gostava mesmo de correr ao lado do carro atiçando o velho. Pisa aí Manduca caduca. Essa porra não corre mais que a gente não? Corre mais que o cu da tua mãe, estrupício. Ainda atropelo um! Filhos da puta! Crias de cadela vadia! Netos de mulher da zona... E xingava o que podia, enquanto conseguíamos ficar emparelhados com a janela do carro. Era sempre assim, uma vez por mês, todos os meses. Até o dia em que tivemos a idéia de esconder o Ford Bigode. Uma maldade que quase custou a vida ao homem. Era tarde da noite. O guarda noturno já apitava ao longe. Algumas pancadas de leve na lataria fizeram a maçaneta ceder. Abrimos. Um ficou na direção, o resto empurrou. Paramos o carro umas duas quadras adiante. Fechamos a porta e voltamos pra casa. No dia seguinte estávamos lá, sentados no meio fio, quando o seu Manduca apareceu arrumado para sair. Olhou o espaço vazio na rua e tonteou. Tirou o chapéu panamá e começou a se abanar. As palavras não saíram. Uma brancura de morte tomou conta do seu rosto. A camisa de linho engomada encharcou. Os joelhos dobraram e fizeram o velho escorregar pela parede até o chão. Acode que seu Manduca tá passando mal! Corre que o velho tá morrendo aqui! E toda gente acudiu rápido. Todo mundo saiu de casa pra ver. Porque gente pobre é assim: nem sempre pode ajudar, mas não deixa de conferir. Nós, farsantes, corríamos de cima a baixo atendendo aos pedidos. Pegando água com açúcar pra acalmar. Buscando vinagre, pra esfregar nos pulsos. Uma colher de sal, pra levantar a pressão. Café sem açúcar pra avivar o velho. Deu certo. Manduca falou. Roubaram meu carro! Puta que pariu! Cadê meu carro? Calma seu Manduca, vamos chamar a polícia. Polícia? Fodeu! Vamos ser castigados duas vezes. No cassetete dos meganhas e no fio de ferro da nossa mãe. Agora não teria jeito. Iríamos conhecer o reformatório. Que merda! Mas se o diabo atenta, o anjo da guarda protege. Veio a idéia de procurar o carro. Deve tá perto, seu Manduca. Aquela carroça não andava porra nenhuma. Carroça é a puta que o pariu seu bostinha! Cala boca, peste. Não tá vendo que o velho tá passando mal. A gente só quer ajudar. Vão ajudar a sua mãe a lavar a boceta, seus filhos da puta! Vocês devem ter alguma coisa com isso. Mas se eu descubro eu mato um puto desses! Calma, seu Manduca, calma. Sai pra fora daqui seus coisa ruim. Vão acabar de matar o velho. A gente só quer ajudar, tia. Podemos correr por aí procurando o carro. Então vai, vão ver se acha a porra desse carro por aí, merda! Saímos voando e estridentes, como um bando de biquinhos de lacre. Mas não podíamos voltar logo, para não parecer coisa feita. Fomos para o campo do América, assistir à pelada da manhã. Subimos ao Santo Antônio para ver a turma cruzando pipa. Mergulhamos no açude da fábrica abandonada. E só então voltamos correndo para a nossa rua. Achamos! Achamos! Achamos o carro do seu Manduca. Tá aonde? Lá embaixo, na rua do querosene. Vamos lá pra ver. E todo mundo foi. Seu manduca na frente. Todo mundo atrás. Era o fato do dia. Aquilo valia mais que lavar as roupas da madame. Que catar o feijão da semana. Que remendar as cuecas do marido. Era festa em dia comum. Todo mundo viu seu Manduca abraçar o carro. Erguer as mãos e agradecer a Deus. Beijar o capô. Conferir a lataria, os pneus. E depois entrar para levar seu precioso Ford Bigode pra casa. Dá carona, seu Manduca? Sai pra lá que aqui vocês não sentam esse cu sujo! Aqui não! E arrancou com o carro, deixando o povo pra trás. Menos a nós, que saímos correndo ao seu lado, atazanando a sua vida.


Houve outras ocasiões onde deixamos a maldade depor contra a nossa inocência. Como aquela, em que simulamos um assassinato para a minha mãe. Morávamos num porão. Chovia muito, o dia todo. Ficamos presos naquele subsolo úmido e apertado. Pequeno demais para a nossa imaginação criminosa. Minha mãe estava no quintal. Armada com um vergalhão de ferro lutava para que o ralo não entupisse e transbordasse imundices para o nosso lar subterrâneo. Possivelmente chorava, por aquilo e por nós. Pois ainda não era meio dia e já havíamos dado àquela mulher curvada pelos sacrifícios da vida, muitos motivos para chorar. Quebramos a sua cama, jogando bola com os travesseiros. Acabamos com uma caixa de fósforos, um vidro de esmalte e um tubo de laquê, num ritual de incineração de formigas. A mistura provocou uma pequena explosão que deixou careca de cílios e sobrancelhas o meu irmão caçula. Era pouco.

Decapitamos o São Jorge do meu pai, alvo do nosso estilingue. Gastamos o último gás do bujão, fazendo goma de farinha para colar a cabeça do santo. Destruímos dois cabides, transformados em rústicos arcos para flechas. Uma dessas varou a porta de vidro da cristaleira. Soltamos o azulão da gaiola para brincar de caçá-lo. Ele fugiu. Passou rasante pela cabeça da minha mãe, que largou um grito de espanto. Ai, meu Deus! Que isso! Puta que pariu! O que eu fiz para merecer isso? Hoje eu pego um de jeito! Berrou mais ameaças para nós e continuou sua luta com o ralo. Não tinha a menor idéia do que aconteceu e do que iria acontecer lá embaixo. Ficamos quietos uns segundos, até que voltamos a escutar seus palavrões dirigidos às baratas que subiam em suas pernas. O céu seguiu trovejando pesado. Devia ser Deus, assumindo o seu desgosto com a gente. Ou então tentando alertar àquela pobre mulher. Chamar a sua atenção para os pequenos seres diabólicos, presos no seu submundo. Nós, que naquele instante chegamos à caixa dos remédios. Descobrimos o vidro de mercurocromo e sorrimos em perversa conivência. O irmão caçula foi deitado no chão. Segurava a lâmina do facão de peixe com o sovaco. O falso sangue foi espalhado a esmo, pelo corpo e pelo lugar. Estava pronta a farsa. Era só ver no que dava. Socorro mãe! Corre aqui. Acode mãe. Ajuda! Rápido! Corre! Depressa, mãe!Ela veio rápida, entre palavrões. Desceu se equilibrando para não cair nos degraus toscos e molhados. Parou estatelada diante da cena. Deu um grito aterrador e desabou, sem sentidos. Ai o meu cacete! Matamos a mamãe. E agora? Mãe é brincadeira. Ele não morreu não. Acorda, mãe! Joga água nela. Já ta molhada. Na cara, seu bosta. Vai afogar ela. Joga logo essa merda aí! Enquanto isso, o ralo transbordava e o esgoto descia em cachoeira até nós. O cheiro tomou conta de tudo. E nos ajudou a fazer minha mãe voltar a si. A primeira coisa que fez foi abraçar assustada o filho caçula. Chorou soluçando. Pegou seu rosto entre as mãos para conferir a cria. Notou a ausência dos cílios. As sobrancelhas chamuscadas. Que isso? Fomos saindo de fininho para um canto. Ela se levantou e começou a tomar pé da realidade. Olhou ao redor e viu tudo pelos ares. Viu a cama quebrada. Conferiu a parede enegrecida pelo fogo. Alisou a cristaleira partida. Levou as mãos à boca e fez o sinal da cruz, quando viu o São Jorge com a cabeça colada ao contrário. Voltou-se para o chão sujo de mercurocromo, como o corpo do meu irmão. Puxou os cabelos com todo aquele mal feito, completado pelo rio de fezes que descia as escadas. Arregalou os olhos de um jeito conhecido. Perigoso, para nós. Torceu o canto da boca. Puxou o ar com força e explodiu. Seus filhos de uma puta! Desgraçados. Pestes do inferno. Isso é coisa que se faça? Mas eu mato, hoje mato um. E vai ser agora! Vem cá! Vem cá! Não adianta correr! Eu caço vocês no inferno. Interna essas crianças, mulher! Vai cuidar da sua vida fofoqueira. Então vá se foder! Saímos correndo para a rua, com chuva e tudo. Atrás de nós voavam panelas, pratos e baldes. Minha mãe tentava nos acertar como podia. Mas não corria como nós. Sumimos na chuva. Subimos o morro, entramos no mato. Passamos o dia fugindo dela. Molhados, com fome e rindo da nossa maldade. Mais tarde ela se acalma. Aí a gente volta.


Também sofreu a Júlia maluca. Que não era maluca de verdade. Mas ficava assim por nossa conta. Uma idosa sozinha no desamparo coletivo. Vivia de passar roupas pra fora. Todo dia saía com a trouxa na cabeça. Parte do seu corpo. Uma mulher pequena que cumpria o seu destino malabarista. Era vingativa. Gostava de dar o troco. A gente aprontava com ela e tinha que ficar atento. Ela não esquecia. Quando menos se esperava, vinha com uma tesoura cortar a linha da nossa pipa. Ou surgia do nada, para rasgar a nossa bola com a faca. Quando tinha sucesso na vingança, escancarava a boca sem vida e gritava rouca. Comigo vocês se fodem! Comigo vocês se fodem! A Júlia ficou chamada de maluca por um trauma. Tinha medo de macumba. Se encontrasse um frango morto e um toco de vela numa esquina, fazia um escarcéu. Apertava os olhinhos miúdos. Botava mais rugas no rosto. E falava correndo, batendo as mãos, compulsiva. Valha-me Deus, Nosso Senhor! Tira o capeta do meu caminho! Me guarda nas asas dos seus anjos! Me tenha na sua bondade. Expulsa o demo daqui. Tira o coisa ruim da minha frente que os caminhos do mundo são seus. Trabalho na sua fé. Vivo da sua caridade. É sua a minha alma, na vida que é meu castigo e na morte que será meu prêmio... E repetia a ladainha depressa. Pulando no mesmo lugar. Sem parar de pular. Sem deixar a trouxa de roupas cair da cabeça. Como se a trouxa fosse um apêndice. Uma grande verruga da sua cabeça. Fica nesse transe até a torrente de frases minguar. Então se benzia repetidamente, enquanto atravessava a rua correndo. Com toda a molecada atrás imitando e gritando. Júlia Maluca! Cabeça de trapo! Júlia Maluca! Cabeça de trapo! Vão daqui! Vai embora cambada! Pode esperar. Vocês vão se danar. Comigo vocês se fodem! A Júlia morria de medo dos santos de macumba. Até de Cosme e Damião. Uma vez fomos vender ferro velho, catado pelas ruas. Lá no depósito encontramos uma máquina de escrever muito antiga. Trocamos tudo por ela, aceita? Fica faltando meio quilo. Depois a gente paga, pode? Vão pagar como pirralhos? Com mais ferro, a gente cata e trás pro senhor. Vá... Levem esta bosta e me sumam da vista. Aquela máquina de escrever deu origem a muita coisa. Principalmente as que não prestam. Mas a pior delas foram os cartões de Cosme e Damião. Fizemos um montão. Entregamos na escola, na feira, onde a gente passava. Convidamos para distribuição de doces, roupas e brinquedos no dia dos santos. Era comum se fazer isso. A gente dizia que uma moça tinha mandado. Todo mundo acreditou. O dia todo mundo já sabia, 27 de setembro. Marcamos hora e local. Colocamos o endereço da Júlia. Vai dar uma merda só! Agora ela vai ficar maluca de vez. Muito antes da hora marcada, a fila já ia longe. Tinha de tudo. Adulto, criança, velho. Dia de Cosme e Damião é assim, faz todo mundo virar criança. Bota todo mundo na rua atrás de doce. Não parou de chegar gente. E a Júlia lá dentro. Passando roupa. Sem tempo de botar a cara na rua. Chegou a hora marcada no cartão. Nada da porta abrir. O povo ficou impaciente. Bateu na porta. Bateu palma. Berrou chamando o dono da casa. Queremos doce! Olha a hora! Abre essa porta aí. Salve Cosme Damião, gente! E nós lá, rolando de rir. Achando aquilo o máximo. Orgulhosos do feito. Vão derrubar a porta da Júlia. Vão querer matar a velha de pancada. A Júlia abriu a porta e se encolheu de espanto. Tentou fechar, mas o povo não deixou. Cadê o nosso doce, dona? Que doce? O de Cosme e Damião. Eu não mexo com essas coisas! Mas tá aqui no cartão, o número é da sua casa. Mas aqui não vai ter porra nenhuma. A gente tá aqui desde cedo, dona, isso é ruindade! Faz isso não, moça. Mas eu não tenho doce nenhum. E sei lá que cartão é esse. Aí pessoal, tá dizendo que não tem nada. Como nada? Esse tempo todo aqui pra nada? Tá brincando com as crianças? Assim você vai ficar corcunda, bruxa velha. Vá rogar praga no caralho. Vamos lá, pessoal, tomo mundo junto: queremos doce! Queremos Doce! Mentirosa! Bruxa velha! Vaca murcha. Filha da puta...A turma ficou louca. Só não invadiu a casa da Júlia, porque alguém chamou a polícia, que limpou a área na bordoada. A velha ficou mal vista pela vizinhança. Já tinha medo dessas coisas. Depois daquilo, nunca mais saiu de casa em dia de Cosme e Damião. Mas teve uma vez que a coisa ficou séria mesmo. Quase matamos a Júlia de verdade. De susto no coração. Estávamos à-toa na rua. A noite já estava alta. Parou um carro na esquina. Carro de bacana. Desceu uma mulher enorme de gorda. Trazia um sacolão de lona. Armou um grande despacho para os santos da encruzilhada. Tinha de tudo. Cachaça, frango, farofa amarela, vela preta e vermelha, pipoca, champanhe... Um verdadeiro banquete. Bonito de ver. Tudo arrumado em cima de um pano vermelho e preto. Cores de Exu. Cores do Flamengo. O carro saiu, a gente chegou perto. Olha o pano! Dá pra gente fazer bandeira do Mengo! Tá louco? Amanhã vai pro lixo mesmo! Isso faz mal, menino, é pros santos. Os santos não vão comer o pano, vão? Mas é deles, vai cair a sua mão. Mas vamos deixar isso tudo aí? Quem ia gostar de ver era a Júlia Maluca... Nossos olhos se acenderam com a idéia. Como se todos pensassem a mesma coisa. Pronto! Já não se tinha mais medo dos santos. Pegar já não fazia a mão cair. E a bandeira do Flamengo podia esperar mais um pouco. Vamos sacanear a Júlia! Como? A gente bota isso tudo na porta dela. E o castigo? Castigo é o caralho, você acredita nessa porra? Sei lá! Então não pega, só vigia. Tá bom!Apagamos as velas. Juntamos as pontas do pano rubro-negro e transportamos o despacho. Montamos tudo na porta da Júlia. O despacho completo. Grande, imponente. Todo certinho. Bonito, se não fosse o lado macabro. Pronto. Estava armado o circo. Era só esperar a hora do show. Cedinho estávamos lá. Culpados na cena do crime. A Júlia abriu a porta e saiu do mundo. O sangue fugiu. A pele eriçou. O grito não conseguiu sair. Ficou preso no peito arfante. A trouxa de roupas passadas caiu. Pela primeira vez na vida, desgrudou da sua cabeça. Caiu sobre o despacho. Atrás veio ela, a Júlia. Se debatendo toda. Botando espuma pela boca. Revirava os olhos. Agonizando. Tornou-se parte do seu medo. Parecia o frango da macumba, acabando de morrer. Acode gente, a Júlia tá tendo um ataque. Socorro! Venham ajudar a velha! Todo mundo veio. Mas ninguém queria botar a mão nela. Estava sobre um despacho. Com isso não se brinca. Tava se debatendo. Aquilo era coisa de santo. Vivia esconjurando eles. Tava sendo castigada. É um ataque! Não, é santo mesmo. Vivia brincando com eles, pegaram ela! E se não for? Vai deixar ela morrer? Temos que ajudar! Vai lá você. Eu não boto a mão aí. Joga um balde d’agua, tia. Cala a boca peste, que isso tem dedo de vocês. Tem não tia. Então sai daqui e não atrapalha. A Júlia vai morrer, tia? Não fala besteira, menino. Quer que a gente chame a polícia? Só se for pra prender vocês. Mas a gente não fez nada. Quem não conhece que compre. Vão lá na venda e pede ligar pro hospital. Pede uma ambulância. Diz que é urgente. Corre, peste. Vai logo. E nós fomos voando. Um riso de deboche, pelo acontecido. Um frio na barriga, pelo medo da velha morrer. A ambulância veio e levou a Júlia. Ela não morreu, mas jurou que iria nos matar.

Como todos os outros que passaram pela nossa infância. E sofreram com a nossa cruel criatividade.

05 março 2010

Maldito da Vila

Kinho Vaz lança
primeiro trabalho impresso



O escritor e publicitário Kinho Vaz
sai da virtualidade para trazer
aos leitores
um mundo pelo qual
todos passam e não se dão conta.

Uma realidade bruta que preferimos
não enxergar em nosso cotidiano,
fechados em nossas cavernas.



CONFIRA:

Dia 10 de março

19h - Editora Multifoco

Av. Mem de Sá, 126 - Lapa




IMPUREZA
(Kinho Vaz)


Era noite escura quando a perseguição se deu. Eu arfando na frente, fugindo das garras e dos dentes que me perseguiam. Enveredei pela floresta com todos os sentidos em alerta, quebrando galhos secos e fugindo sem apagar pistas. Correndo e querendo ser alcançado com a mesma força, em total contradição. O hálito doce que me buscava ignorava distância e tempo. Cedo ou tarde estaria misturado ao meu, me submetendo à voraz, felina e definitiva mordida de abate. Senti-me perdido, presa fácil. Animal longe do bando, em território alheio, espreitando desejos que não podiam me pertencer.


A mente roçava na superfície áspera das lembranças, enquanto se esgueirava pelo mato cerrado da realidade. Os lanhos fundos e doloridos na consciência foram inevitáveis. Quanto mais eu corria, mais perto chegava do fim. Parecia estar imitando os sentimentos, que se postavam em círculos entre o querer e o não querer, entre o lutar e o se entregar, entre o certo e o errado. Não havia saída na densa noite sem caminhos. Então eu parei de correr e esperei a hora da luta, fortalecendo minhas esperanças na crença de que a melhor sepultura para um guerreiro é o estômago do inimigo. Aos poucos comecei a sentir no vento o perfume do meu destino. Doce, delicado e inebriante como o aroma de uma fruta exótica.


Sua chegada me encontrou passivo, entregue. Mostrou-se sem pressa de concluir sua conquista. Rodeou-me lentamente, olhos fixos nos meus, diminuindo meu espaço em voltas cada vez menores, cada vez mais próximas, cada vez mais intransponíveis. Essa proximidade me enfeitiçou, me fez acreditar, ser eu, um banquete digno de tal cerimônia. Então percebi que já não poderia ir a lugar algum. Estava preso, cercado, dominado. Pronto para ser devorado em ritual premeditado pelos instintos viscerais que regem a relação entre caça e caçador. Fechei os olhos e abri os braços, preparado para o bote fatal, entregue nas mãos de um destino cruel, mas meigo, quase pueril. Meu corpo entorpeceu à proximidade do seu calor. O respirar ansioso invadiu o meu, fazendo meu coração pulsar em compassos impróprios. Passeou sua língua por todos os meus poros, apetecendo o paladar, apurando os sentidos na visão da refeição servida. Invadiu meus sonhos com um olhar carregado de promessas de menina, me fazendo sentir que aquela era a hora certa para deixar de existir. Só então começou a me devorar, calma e lentamente. Tirou-me os olhos, os ouvidos e a língua com tamanha destreza, que eu mal percebi que os perdia. Passou então a se ocupar do meu juízo, vasculhando, invadindo, dominando a intimidade dos meus pensamentos. Até que finalmente chegou ao meu sexo, fazendo um estrago delicioso. Daí pra frente, já não pude mais ver, ouvir, falar, pensar e nem sentir nada que não fosse voltado para aquela dominação.


Satisfeita, esticou o corpo na torpeza do prazer. Beijou meu rosto e esmagou minha consciência com a única frase que pronunciou:


- Boa noite, Titio. Você é muito gostoso, viu!


Pôs o dedo na boca, abraçou o seu urso de pelúcia e fechou os olhos para dormir.


19 fevereiro 2010

POLILÍNGÜE

(Alexandre Campinas)


Minha língua pátria é presa

cercada de sanções, nações

corruptas e corruptoras.


Minha língua presa anseia a solta,

livre de imposições,

ágil e motora.


Minha língua solta é erótica:

espasmos após tensões.

Flerta, provocadora.


Minha língua erótica é ferina.

Cospe imaginações

E alguém ora: antiquelíngua fecundadora.


Minha língua ferina é frouxa.

Fala de arrebatações,

da vida viva e aterradora.


Minha língua frouxa se come

com batata, à portuguesa e com tesão;

com boca degustadora.


Minha língua multisabor é sempre suja

de violência e de paixão

entrega-se à outra, devoradora.


Minha língua suja disfarça-se em pê:

pêquer pêô pêcéu, pêchão.

É língua lúdica, voadora.


Minha língua do pê é feita de trapo,

que se esconde com exatidão

p’ra tocar, redentora.


Minha língua de trapo é língua de sogra:

faz festa, conselho e diversão.

Toca onde não se quer, desafiadora.


Minha língua é a língua do cão:

baba e lambe e late sem compaixão,

língua cachorra.