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27 outubro 2010

O Dia da Criação

(Alexandre Campinas)

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.”

(O Dia da Criação – Vinícius de Moraes)

Está sentado e lê um conto. Sorve mais um cálice de licor mineiro de jaboticaba. Os últimos movimentos de Ashes Are Burning soam pesados. Uma guitarra invasiva, doridamente penetrante, corta a pequena sala onde o charuto vai olorando em seu estertor. Charuto, jaboticaba e Renaissance. O álcool, a caudalosa progressividade sinfônica do tema musical, ele pensa, encaixam-se com perfeição na densidade daquele fumo encorpado. Não poderia ter sido melhor a sugestão do seu primo para o tipo adequado do cigar. Licor de jaboticaba e o progressivo vieram no bojo, escolhidos por ele, entretanto a indicação fora fenomenal.


Um sábado de muitos afazeres domésticos; deliciosamente comezinhos, portanto. Após o almoço (que ele preparou para a família) um robusto. Baiano “no label”. Nada que comprometa suas carcomidas finanças e o atrapalhe com divagações inoportunas, afinal é sábado.


Um curto de queima uniforme, cinza firme e razoavelmente clara, mata norte, capa escura, devidamente celofanado, excelente para a categoria de short-filler (somente à qual ele pode candidatar-se no momento), denso e rápido, sem entupimentos que atrapalhem os 40, 50 minutos da fruição desejada. Tudo isto ele poderia ter escrito, porém deixou a cargo de mim. Quer a sua hora, o momento é dele.


Nada de fabulosamente erótico lhe traz reminiscências idílicas, não matou ninguém (o que daria um lindo fechamento rubenfonsequiano a esta crônica), nenhuma divagação profundamente filosófica naquele momento.


Olhando pela janela, o mundo continua modorrentamente igual. Nada, enfim. O vazio ideal para a quantidade de tempo de que dispõe. Poderia meditar, entoar om`s sem fim, pensado os koans da vida. Nada.


A cinza esquenta o indicador e o pai-de-todos a uns dois centímetros. Deixou que ashesburninhasse tranqüilamente no cinzeiro.


Vi seus olhos piscarem espaçadamente na lentidão do sono que chega. Dormiu. Ganhou mais uma hora. Tomba o livro de suas mãos e o final do conto que lia esparrama-se em outro onirismo.


Porque é um sábado.

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