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30 abril 2006



TEXTO ATRIBUÍDO AO RUBEM FONSECA
(Casa da Maite - Site Erótico)

Em texto inédito , Rubem Fonseca conta uma insólita experiência, que deu o que pensar, vivida durante a gravação da série Mandrake, baseada em seu personagem.

"Fui assistir à filmagem do último episódio da série Mandrake, produzida pela Conspiração, baseada no personagem que aparece em vários dos meus livros, notadamente A grande arte, e que será lançada pela HBO em outubro. O episódio referido origina-se do conto Dia dos namorados. Um sujeito sai procurando prostituta na Avenida Atlântica e acaba levando para um motel o travesti Viveca. Ao perceber isso, ele se recusa a pagar e recrimina o travesti. A motivação desse indivíduo, um homem casado, é ambígua. Talvez ele soubesse que era um travesti e na hora tenha se arrependido, o fato é que o travesti pega uma gilete, diz que vai se matar e começa a golpear o braço.

Mas eu dizia que fui assistir à filmagem de O dia dos namorados. Eu já presenciara outras filmagens. Todo mundo sabe que sou um cineasta frustrado e que tudo que é ligado a cinema me interessa: direção, fotografia, som, montagem, mixagem, a interpretação dos atores, e, evidentemente, o roteiro. Gosto de ver uma filmagem, ver o diretor em ação, o fotógrafo, os atores, e os assistentes de direção, principalmente os terceiros assistentes de direção, quase sempre mulheres, melhor seria dizer meninas, tão jovens elas são. É um trabalho duro, que exige atenção permanente, resistência física e talento, sim, também talento, e que é recompensado com uma pequena menção nos créditos do filme.

Nesse dia o trabalho da terceira assistente exigia uma atenção redobrada, pois a filmagem estava sendo feita na rua, com um monte de curiosos em torno. Mesmo assim duas mulheres se aproximaram para olhar a movimentação que ocorria antes da ordem de "ação" do diretor. Perguntaram, "qual é a novela?" Quando respondi que não era uma novela de TV e sim um filme, elas perderam o interesse e se retiraram. (Isso merece um texto à parte).

Conversei com todos ou quase todos os membros da equipe e os atores. Uma tenda de maquiagem tinha sido improvisada numa rua lateral menos movimentada e dela surgiu, usando um vestido feito de clipes de metal, Viveca, a estrela do episódio, uma mulher alta, bonita, talvez excessivamente carnuda. Ao seu lado estava Marcos Palmeira, o protagonista da série. "Este aqui é o pai do Mandrake", disse Marquinhos, apresentando-me à estrela. "Ele é o criador de todos nós", disse Viveca, "tira uma foto comigo". Ela apanhou uma câmera digital e pediu a alguém da equipe que fizesse uma foto nossa. Agarrou o meu braço e carinhosamente grudou em mim seu seio criado pelo engenho e arte humanos.

Depois alguém me perguntou, "você que não gosta de tirar foto com ninguém, tirou com o travesti?" Respondi, "tirei exatamente porque era um travesti, um homem que saiu do armário e enfrenta a discriminação gritando desesperadamente. Pelo mesmo motivo que me levou a dar apoio explícito ao projeto de lei da Marta Suplicy, legalizando a união civil entre homossexuais". Se há uma coisa odiosa, é a discriminação, de qualquer tipo.
"Por que alguém se torna um travesti", indagaram.

Por que uma pessoa assume uma identidade indefinida sexualmente e não reconhecida socialmente? Freud passou ao largo disso em Totem e tabu. E a simplória visão psicanalítica do complexo de Édipo, entre o desejo de penetrar sua mãe, ou de ser penetrado pelo seu pai, não esclarece o problema. Muita gente tem escrito sobre o assunto, abordando os aspectos médico, ético, jurídico, psicanalítico, do transexualismo. Volta e meia surge a explicação da "mulher fálica".

Talvez os transexuais sejam iluminados pela sabedoria de Tirésias, essa figura da mitologia grega que, como punição, foi transformado pela deusa Atena em mulher. Tirésias permaneceu mulher durante sete anos, ao fim dos quais voltou a ser homem. Quando lhe perguntaram o que era melhor, ser homem ou ser mulher, ele respondeu que era ser mulher, pois os prazeres do amor eram melhor fruídos pela mulher do que pelo homem. Isso nos remete a uma série de perguntas. O transexual, então, desde cedo, sabe misteriosamente que será mais feliz e verdadeiro como mulher do que como homem? Mas como operar esse milagre, como superar os obstáculos físicos sem os recursos da cirurgia, entre nós denominada de "cirurgia de transgenitalização", e sem o socorro de hormônios? A primeira operação conhecida ocorreu na Dinamarca, em 1952, e depois disso não se sabe quantas foram feitas em todo mundo. Milhares, milhões? E mudar de aparência é suficiente?
Obviamente o problema não se resolve com uma simples modificação estética. E a ablação do pênis precisa ser feita? Umas acham que sim, para que nada de masculino reste nelas, outras se recusam a fazer isso, as profissionais do sexo principalmente, pois muitos clientes gostam também de ser sodomizados.

É preciso não confundir o transexual com o travesti e o homossexual. O travesti é um fetichista, pode ser homossexual ou não. O homossexual apenas sente atração pelo mesmo sexo. E o transexual sente uma total inadequação entre a sua anatomia e o seu sentimento de identidade sexual. Mas acho que isso nada esclarece."

28 abril 2006


LOUCO POR DESCULPA
Entrou no ônibus com aquele olhar vidrado das pessoas que têm problemas demais na cabeça, ou daquelas que têm juízo mole. Mostrava um semblante aéreo, quase abobalhado. Passou direto pela catraca e nem fez menção de pagar.
- Ô meu chapa, vai pagar não?
- Desculpe.
- É cada maluco que me aparece...
- Já pedi desculpas. Por que o maluco?
- É só jeito de falar... Você foi passando direto... Tem que pagar!
- E só por isso eu sou maluco?
- Pensei que fosse.
- Mas eu não sou.
- Tá certo, você não é maluco.
- Então você me deve desculpas.
- Não me leve a mal, mas eu nunca peço desculpas.
- Olha aqui: eu agi errado e pedi desculpas. Você me ofende e não quer pedir?
- Não peço mesmo, são meus princípios.
- Princípios uma vírgula. Isso é falta de civilidade.
- Está me chamando de ignorante?
- Ignorante, grosso, mal educado ou o que você bem entender.
- Agora quem deve desculpas é você.
- De jeito nenhum. Quem não sabe pedir desculpas, não tem direito de exigi-las.
- Ai meu Deus, eu mereço...
- Merece mesmo. Pensa que todo mundo gosta de levar desaforo pra casa?
- Que desaforo, meu amigo?
- Você me chamou de maluco.
- Tá certo, faz o seguinte, o maluco sou eu.
- É mesmo. Pra fazer gracinha com quem não conhece tem que ser maluco
.- Tudo bem eu sou maluco. Agora vai sentar que você está obstruindo a passagem.
- Só depois de ouvir suas desculpas.
- Não vou pedir desculpas nenhuma.
- Vai sim.
- E quem vai me obrigar, você?
- Se eu não obrigar, o Tetéco obriga
.- Tetéco? Isso lá é nome de gente?
- Não, mas com ele vai ser pior. Você vai perder mais que a chance de pedir desculpas.
- Eu vou perder é a paciência já, já. Com você, com o tal do Tetéco e com o raio que os parta.
- Quero ver mostrar essa valentia olhando pro Tetéco.
- Então vá lá chamar o seu Tetéco e não me encha o saco.
- Tá bom. Fala aqui pra ele não encher o saco.

Quando os passageiros do ônibus viram a arma na mão do sujeito, seguiram o manual de sobrevivência nas cidades grandes: voltaram seus rostos para a janela e passaram a olhar o movimento lá fora, fingindo que nada estava acontecendo. O motorista nem olhou pra trás, nem esboçou reação. Apenas seguiu dirigindo, sem parar em nenhum ponto.

- Que isso, cara. Abaixa essa arma.
- Eu falei que era melhor me pedir desculpas.
- Tá bom, eu peço, mas abaixa isso.
- Agora é tarde. Vai ter que pedir desculpas pra mim e dá um dinheirinho aqui pro Tetéco.
- Então era isso que você queria, assaltar o ônibus?
- Claro que não. Eu só queria as suas desculpas. Mas o meu amigo aqui, o Tetéco, tem esse fraco por dinheiro, fazer o quê?
- Toma, leva a grana, mas aponta isso pra lá...
- Bota tudo aí na sua bolsa.
- Posso tirar meus documentos?
- Claro, tiras as chaves de casa também. Mas deixa o dinheiro.
- Tá tudo aí, tá tudo aí...
- Certo, com o Tetéco você já se entendeu. Agora falta o que me deve?
- O que você quer mais?
- Esqueceu? Tetéco, fala pra ele o que falta...
- Não aponta isso pra mim, por favor.
- Então paga o que me deve...
- Tá bem, desculpa.
- O quê? Não ouvi direito?
- Desculpa.
- Mas o que aconteceu com você? Ainda há pouco estava falando grosso e agora mal se houve a sua voz. Grita pra tudo mundo ouvir: DESCULPA, VOCÊ NÃO É MALUCO!
- Tá, eu grito, eu grito! DESCULPA, VOCÊ NÃO É MALUCO!
- Sou sim. Quer dizer, sou sem ser.
- Ai, meu Deus, o que você quer mais?
- Só dizer que eu não sou doido, mas sou Maluco sim. Esse é o Tetéco e eu sou o Maluco! Dá tchau pro moço, Tetéco e vamos nessa.
- Motorista, pára no próximo!
Desceu do ônibus com aquele olhar vidrado das pessoas que têm problemas demais na cabeça, ou daquelas que têm juízo mole. Mostrava um semblante aéreo, quase abobalhado. Passou direto pela confusão das ruas como se não visse ninguém.

VIXE MARIA
(Edwood Lautrec)

Santificado seja vosso nome
Santificado seja vosso nome
ai ai ai minha machadinha
santificado seja vosso nome
santificado seja vosso nome
serra, serra serrador
santificado seja vosso nome
santificado seja vosso nome
vamos todos cirandar
santificado seja vosso nome
mas livrai-nos do mal... MIAU!!!

22 abril 2006


CRÔNICA DO EXÍLIO
(Alexandre Campinas)

Valei-me por suas flechas, São Sebastião do Rio de Janeiro !

Essa cidade minha. Que me corta a alma a cada canção. Saudades que evocam toda a recordação de um tempo feliz. Uma vida feliz. Um passado cidade. De ônibus elétricos no subúrbio e mão firme de mãe na minha mão. Tempo de sonho e esperança, poesia e canção.

“Vamos carioca e sai do teu sono devagar. O dia já vem vindo e o sol já vai raiar.”

Vai raiar em Copacabana, em frente a Constant Ramos onde nos sentávamos meu avô e eu após a visita a colônia de pescadores. Ele a decepar e eviscerar peixes. Ali mesmo, em pleno calçadão. Eu, a sorver vida.

“São Jorge teu padrinho te dê cana pra tomar. Xangô teu pai te dê muitas mulheres para amar.”

Viva o Tom e a Miucha. Viva o poetinha. Viva o suburbano Aldir do Light e dessa deliciosa vida merda da qual eu também faço parte e adoro. Profundamente adoro. Barão de Drumond e Boulevard. Floresta de densa mata dos cantos e pássaros. Paineiras. Uma cascata escondida na curva que descortina a pintura da Lagoa, da Gávea e do campo do Flamengo nos fundos do Jóckei. Ou seria o Jóckei nos fundos do campo do mais querido ? Assim como fosse um quintal com cavalinhos...

Cidade eu sou perdidamente apaixonado por você. Eu sou você, sou meu pranto no Samba do Avião. Sou enlevo na Valsa de uma Cidade, sou cidadão ouvindo Cidade Maravilhosa. Te olho, suburbanamende tímido, do Excelsior e te exploro inteira, do Caju ao Maracanã. Da Central do Brasil ao Encantado, nome lúdico da infância vivida.

Cidade que confunde a minha salgada saudade de lágrimas ao teu doce contorno mulher. Tenros seios, montanhas onde mama a minha dor. Boa dor de saber-se dono do que não é. Pipas na Ilha do Governador. Uma santa. Sensual e ondulada Teresa. Uma gente, Ipanema. Uma gente, Vila Valqueire. Iguais. Um povo todo irmão. Todo igual.

Outra ilha e a mais amada fantasia. Um baobá por Maria Gorda, a profunda raiz de Paquetá, inesquecível amor. Eterno amor. Da Ribeira ao Catimbáu, do Iate ao Municipal. Gostosa tatuagem da minha vida. Amada tortura a qual eu, órfão de ti, me submeto mergulhado em prazer e gozo.

Santa, curta, Sofia. Santo Afonso, de pé sobre o adro de seu templo, velando a minha Tijuca querida. Conjunção carnal de ruas, e cinemas que já não o são desembocando na praça de nome de herói sulamericano. Chafariz e ginasta. Café Palheta e longa tênia em tuas carnes.

Desejo de chegar-te de qualquer lugar, rodas baixando sobre a ponte. Renascer a cada toque suave na noturna e iluminada pista do Santos Dumont.


“Dizem que sou démodé, saudosista, blasé, retro... e eu sou ...”

(Os versos que aparecem entre aspas são de músicas de Vinícius de Moraes e também de Aldir Blanc)

POESIA - VINICIUS DE MORAES

CONJUGAÇÃO DA AUSENTE

...Tua graça caminha pela casa
.Moves-te blindada em abstrações. Como um T. Trazes
A cabeça enterrada nos ombros qual escura
Rosa sem haste. És tão profundamente
Que irrelevas as coisas mesmo de pensamento.
A cadeira é cadeira e o quadro é quadroPorque te participam.
Fora, o jardim
Modesto como tu, murcha em antúrios
A tua ausência. As folhas te outonam, a grama te
Quer. És vegetal, amiga...
Amiga! Direi baixo teu nome
Não ao rádio ou ao espelho, mas à porta
Que te emoldura fatigada, e ao
Corredor que pára
Para te andar adunca, inutilmente
Rápida. Vazia a casa
Raios, no entanto, desse olhar sobejo
Oblíquos cristalizam tua ausência.
Vejo-te em cada prisma, refletindo
Diagonalmente a múltipla esperança
E te amo, e te venero, e te idolatro
Numa perplexidade de criança.

POESIA - FERNANDO PESSOA

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Interessante colagem em forma de entrevista. Feita por Rodrigo Souza Leão.

POESIA - FERREIRA GULLAR

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
alomoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
_ que é uma questão
de vida ou morte _
será arte?

21 abril 2006



VIRGEM DOS OLHOS DE VIDRO
(Taiguara - Excepcional cantor, intérprete, letrista, músico, arranjador e REVOLUCIONÁRIO)

Milhares de pessoas pra manter no ar
um jato, um cosmonauta, um comercial
Milhares de aventuras que não vão brilhar
nos olhos dela...
nos olhos dela...
Dezenas de novelas pra mostrar no ar
angústia, desventura, solidão e dor
Verdades de mentira que não vão abrir
os olhos dela
os olhos dela...
Lá fora o mundo evita as ilusões
Lá fora há uma procura de prazer
Lá fora, o namorado, que era dela
encontra aquela que, ao ser sua
vai ser mais sua
Milhares de pessoas pra manter no ar
o sonho aprisionado da menina só
que perde o seu amor
e espera da TV, que ela lhe diga
que ela lhe diga...
Milhares de pessoas pra manter no ar,
um jato, um cosmonauta, um comercial
Verdades de mentira que não vão secar
os olhos dela...
os olhos dela...


O VAZIO
(Claudinei Souza)

Contemplo o vazio que me cerca...
Não a minha alma vazia mas,
o vazio que me cerca.
Acostumei-me a ver as pessoas diante das janelas de grandes torres, de enormes
construções.
Cansei-me e me cansaram. Me extraíam a oportunidade de poder enxergar o horizonte ou
algo além do que janelas.
Me exilei em uma cidade menor. Não, nunca mais em uma grande metrópole!
Infelizmente escolhi morar nas alturas...
Agora observo as pessoas que transitam pela calçada, as caixas d'água e as antenas que
infestam os telhados da vizinhança.
Sinto novamente a solidão.
A solidão de não mais ver aquilo que só o oculto me proporcionava imaginar como algo
quase irreal.

Estive no céu...E com o patrão mesmo!
(Da Argentina, Raúl Gentili)

Hoje em día, quase todo mundo, quem más, quem menos, conta que teve alguma experiência sobrenatural. Um amigo meu, por exemplo, relata que, durante uma operação que sofreu há uns anos, pôde ver o trabalho do cirurgião, das enfermeiras e tudo o mais, como se observasse a cena desde o teto, enquanto o seu abdome era aberto, por assim dizer, de par em par, como –segundo sempre as palavras dele proprio- quem abre as janelas do quarto após uma noite de sono. Meu amigo leva jeito pra poeta...-Realmente –acrescenta o versificador aprendiz -, tive a sensação de estar assistindo ao açougueiro preparar esse franguinho pra grelha do domingo.... embora ele tenha sérios problemas se de imágens metafóricas se tratar. Também assistí na televisão, esse portentoso veículo cultural, aos depoimentos de uma porção de pessoas, quem dizíam ter passado pelo corredor que separa, ou talvez une, este vale de lágimas com o infinito, o desconhecido.Há quem declara que ouvíu e víu, num sonho, mas que parecía real, a sua vovó, morta tempo há, lhe chamando, e a lhe perguntar por outros seres queridos, a lhe contar que o sítio onde ela estava era muito lindo, e tal.Um cara relataba que a esposa, da qual era viúvo fazía longos anos, lhe aparecéu no momento de ele sofrer um acidente de carro. Insiste em que quase lho cegou uma luz forte e branca, enquanto ouvía uma voz cálida a dizer o seu nome, e que, se aproximando da luminosidade, viu um vulto de mulher que lho cumplimentava.

-Soube que era minha esposa de imediato –acrecentava o homem, emocionado. Ela, únicamente morta podería me saudar co´uma doçura semelhante...

Um rapazinho contou que, também na hora duma operação, neste caso do cérebro, veio procurá-lo um outro menino, vestido de branco, lhe pegar a mão, e convidá-lo pra ir jogar num parque, sempre seguindo o relato do moleque, muito bonitinho, com uns animalzinhos lindos, e bons, que também brincavam com eles. Disse que o garoto lhe falou que o seu nome era Jesus.Consultado o médico responsável da atencão do rapaz para saber a sua opinião sobre a matéria, o profissional depôs, lacónico, o seguinte:

-Os fármacos...

Pois é, amigos, está na hora de confessar que eu também viví uma dessas experiências. E acho este o momento propício pra dar a minha testemunha. Espero, sim, que o meu depoimento não seja, no futuro, objeto desta desajeitada ironía que eu, por falta de outros recursos literarios melhores, vejo-me obrigado a usar. Aliás, rogo vocês me poupem a dor de reviver as malfadadas circunstâncias em que fato dessa índole ocorreu-me. Nada acrescenta, nem tira, nem aclara, nem obscurece, nem atrasa, nem adianta que eu dilate estas linhas com o relato desses acontecimentos, já que será suficiente iniciar minha estória dizendo que, logo depois de transpor aquele túnel que tudos quem viveram coisa parecida nomeiam, me encontréi de repente num local bastante iluminado, amplo e vazío, com exceção dum piano de cauda preto, onde um cara de chapéu de palha e oculos tocava, enquanto um outro, muito mais velho, escutava, com olhos perdidos, a música. Éste último tinha um aspecto singular. Barba longa , cabelo comprido e também branco, e uma espécie de roupão da mesma cor. Sentado numa cadeira alta, encostado de cotovelos na capa do piano, tinha na mão um grande copo de uísque, que balançava fazendo rolar os pedaços de gelo com esse tilín tilín engraçado.

Quando o pianista acabou de tocar, o velho bebeu um grande gole, olhou pro músico e, admirativo, mas porém triste, disse:
-Poxa, mestre, isso sim que é Criação, hein, não tuda esta cagada que eu fiz –e girava o indicador num gesto apontando o arredor tudo.
-Não se vexe –respondeu, bondoso, o músico -, ninguém é perfeito.
-Bom, presumívelmente, eu devía ser, não concorda?
O pianista olhou pro velho compassivamente, ascendeu um charuto, e não disse nada. Simplesmente sorríu
-Devía sím –afinal falou o Tom, pois dele se tratava, nem mais nem menos que do Jobím -, mas não deu...
-Não, não deu não.
Nesse momento os dois perceberam o meu ingresso, e, detendo a conversa, olharam pra mim.
-Lá vem mais um freguês pro senhor –falou o músico.
-Que espere .o velho bebeu seu uísque. –Toca mais uma, maestro, por gentileza. É que hoje tive um día cansativo demais, entende?
-Mas, o freguês... respondéu o Tom.
-Que espere. Tem tempo.
-Com certeza –o Tom metade ría, metade tossia pelo charuto.
–Embora, sabe, o rosto eu acho familiar, creio que conheço esse cara dalguma parte. Sei lá, eu já conhecí tanta gente na vida... –enquanto assim falava o pianista, a música demorava.Afinal, o velho, com grande aborrecimento, olhou pra mim e disse:
-Então, meu filho, qué é que houve...?
-Isso é o que eu gostaría estar sabendo. Onde estou? Qué é o que está acontecendo? Quém é você?
Ainda mais irritado, o velho voltou falar para o pianista.
-Ha! Não lhe disse eu? Não lhe disse? –e agora me olhando, bradou, enquanto alçava a mão apontando pra fora. –Vá lá, vá lá encher o saco a outra parte. Me deixa em paz hoje, viu. Se quiser, volte amanhá. Não tou afim de responder tolices.
-Calma, calma... –tranquilizava o Tom.
-Mas como calma. Não posso nem beber um uísque tranqüilo, nem ouvir um pouco de música, que já tem que vir alguém a interromper. Na verdade, seu Tom, tou até com vontade de renunciar. Não agüento mais, juro.
-Porém, eu acho que você fez um trabalho bonito. Lá, na terra, todos esses passaros, o mar, o mato, o peixe, tanta coisa linda.
-Sim, também há guerra, morte, inveja, maldade, destruição, exploracão... Por qué é que você não menciona tudo isso?
-Prá não incomodar ao senhor.
-Obrigado. Porém, não esqueço que é tudo a minha obra.
-E cá, no céu, temos os amigos que vieram. O Vinicius, a Narinha, meu querido Drummond, tanta gente...
-Tá, tá, tá legal, seu Tom, tem razão.
-...a vida tem sempre razão... –cantarolou o mestre, se acompanhando com uns acordes do piano.
O velho voltou a pregar em mim a sua mirada
.-Bom, garoto, mas, então, qué foi?-Acabo de lhe dizer que estou querendo saber que é o que aconteceu comigo e qué lugar é este.-Você não sabe?-Não.-Nem apenas imagina?
-Imaginar, imagino, mas estou com medo daquilo que imagino...
-Ah, rapaz! Essa sempre foi a tua atitude. E muito caro a pagaste.
E sem sequer esperar minha resposta o velho falou pro Tom:
-Com medo até do que imaginava... pode crer, seu mestre? É que já se viu babaquice tamanha?-Cómo “imaginava”?
–esse tempo passado arrepiou-me -, então eu... eu... morrí?
-Coisa semelhante –respondeu o velho, enigmático. –Se eu quero...
-E então, este lugar é... é o Paraíso?
-Propriamente. Suponho que já estará sabendo quém sou eu.
-Não.
-Mas, olhe... este visual... não lhe diz nada?
-Sinceramente não.
O velho olhou pro Tom com gesto desorientado, e com desalento. Como resposta, o mestre só alçava os ombros, com os olhos faiscando pelo riso apenas contido.
-Imagiiinaaa... –cantarolaba agora, brincando no piano.
-Bom, vamos ver –tentou ser paciênte o velho -, você chega aquí, neste lugar, o Paraiso, e se encontra com alguém de vestes longas, barba longa, cabelo comprido, tudo de branco, sim?
-Sim.
-Tá, então, quém é que eu sou?
De repente, uma luz relampejou no meu coração.
-Já sei! –disse. –É o Profeta Gentileza!!
Tom, que nesse momento tinha abandonado o teclado e bebía o seu uísque, cuspiu o conteúdo inteiro da boca, obrigado pela incontrolável gargalhada que a minha confussão lhe causou. Eu continuei:
-Mas não sabía que o senhor tinha morrido –e tentando ajeitar minha melhor expressão de desconsolo, lhe tendí a mão.
–Sinto muito –porém, reconheço que abalava um pouco minh´alma o fato de eu estar lhe dando o pêsame... ao proprio finado!!!
-Não, meu filho –agora era o Tom quem falava, recuperado o fôlego e a compostura, devido a que o velho parecía ter emudecido, eu não sabía se por tristeza ou fúria, ou por ambas as duas -, quem você tem diante não é um homem.
-Sei lá –respondí, ardente defensor das liberdades individuais –eu não sou quem pra mexer com as preferências sexuais de ninguém...
-O que o mestre quer dizer e que eu sou o Eterno, o Todopoderoso, o Senhor das Esferas!! Conhece agora? Ou também não ouvíu falar do Senhor das Esferas?
-Na verdade, o que eu conheço, o que já tenho lido, e uma estorinha sobre um tal de “Senhor dos Anéis”, mas do senhor das esferas, eu não, ainda não tive notícia.
-Há muito que sacaram esse livro?
-Ah, não, isto é demais prà gente –choramingou o velho –seu mestre, faz favor de falar com esta besta. Eu vou pro banheiro –e caminhou até um dos limites do local, se perdendo numa espécie de núvem dourada.
-É Deus, o nosso criador, rapaz, e o criador do universo mesmo. Seja mais respeitoso com ele –me falou o Jobím
.-Se é por pedido seu, mestre, eu vou respeitar, mas, se for pelo que já ví e viví lá embaixo... se tuda aquela sacanágem é culpa dele, sinceramente, eu até estou achando que fui gentil demais.
-Não, não se engane, moço...
-O senhor tem certeza que esse cara é Deus? Eu, por mim, confesso, acho que não passa dum velho vagabundo. E com esse disfarçe. Se até parece carnavalesco...
-Não blasfeme.
-Não, mas, você viu como ele trata as almas que vem à sua presença? Ou não viu a forma dele me destratar? Afinal, se o que ele disse é verdade, e eu acabo de morrer, creio merecer um pouco mais de respeito. Já bastante tive de suportar em vida, entende?
-Os caminhos do senhor são inescrutáveis, meu filho.
-Sim, sim -ironizei. -Aliás, não sei de qué me surpreendo. É só ver o que ele faz com os vivos... por qué devía ser melhor com os mortos?
-Não se engane. É este um lugar em que tudo é formoso, perfeito e, sobre tudo, eterno.
-Será. Mas a formosura, a perfeição, e a eternidade são necessárias na terra, mas, eu bem sei que Deus nada se importa com aquilo.
-Não concordo. A mão dele se vê em tudo o que existe, em tudo o que acontece.
-É verdade –quase lhe gritei ao mestre, batendo na capa do piano. –Se o senhor tivesse visto...
-Eu também vi muito lá, menino.-... o último que eu assistí lá foi uma enorme destruição de vidas, de lugares onde a gente viver, e agora muitas pessoas morrem de fome, ou de enfermidades, desassistidas. E tudo em nome da liberdade. Ou pior ainda, em nome daquele sujeito que foi agora se trancar no banheiro.-Essas coisas, nemhuma dessas coisas que aconteceram na historia da humanidade são culpa dele. Não é ele quem faz
.-Ah, sim? –respondí. –Então que não venha depois a reclamar pelas coisas boas. Se ele não faz o mal, também não será responsável do bem, suponho...-Soar, soa justo, mas, não sei se seja verdade...
Sempre soube que o Jobím era um espíritu superior, e, mesmo irritado como eu estava, não deixava de admirá-lo. Também era um homem de fé. Perdão, quero dizer um´alma de fé.Nesse momento, a núvem dourada abriu-se e o velho aparecéu, abaixando o seu roupão, e veio ter com nós.
-E então Tom, agora ele entendeu ou não?
-Tou achando que não, infelizmente. É que o menino está zangado mesmo, não está? –respondeu Jobím, e eu assentía com a cabeça. -Então, não fica mais remedio... vou usar com ele o tratamento de rotina.
-O qué? –alcançei a perguntar.
Imediatamente toda aquela cena que me rodeava sumiu, fez-se oscuridade total, sentí que era absorvido por um turbilhão, e que começava a viajar a uma velocidade inconcebível, e, aos poucos, foi nascendo uma luz branca, que cresceu perante os meus olhos, a medida que eu me aproximava dela. De repente, a queda deteve-se e fiquei em frente daquela luz, na qual pude ver, num só instante, a minha vida passar, mas também como se as emoções e os sentimentos de cada experiência fossem revividas, revisitadas, enquanto ouvía uma voz, que reconhecí como pertencente ao velho do salão do piano, a falar:
-Lembras aquela ocasião na que pudeste ser generoso, e não, não foste capaz de soltar esse dinheiro que pôde salvar teu amigo da ruina? Lembras ou não?
-Sim –minha voz tremía
.-E esta mulher que esperava casar com você, e te esperou anos, jogando sua vida pela janela fora, e você sempre sabendo que jamás íam casar, e que mantiveste ao lado teu por simples conveniência? Lembras também?
-Também...A partir daí, um a um ví e reviví essa sucessão de fatos que por amor à brevidade eu chamo minha existência.
-Então, meu filho, cómo é que você se declara destas acões que acabas de rever? Mereces vir morar no Paraíso?
Compreendí que não era justamente o Éden o que minha biografía tería por recompensa, e, em verdade, o medo cedeu o lugar à irritacão, e já não pude mais me conter, sabendo que o inferno, ou coisa semelhante, me aguardava sem remedio.
-E então, você, se pretendía que eu me comportasse como um anjo, por qué me fizeste um homem? Pretendías que eu não tivesse cobiça? Pra qué, então puseste a fome no meu estômago, o frio na minha pele, por qué deixaste o meu coração se encher de desejos? Reclamas pureza, me castigas por aquela voluptuosidade...? E quem foi, então, que pendurou aqueles bonitos adornos que o meu corpo trazía entre as pernas? Com quais argumentos reclamas que não tenha sido perfeito? Me houvesses feito perfeito, então! Ou me fizeste imperfeito só pra depois me atormentar? É isso, não é? Um santo pedes? Um asceta? Por qué me fizeste humano, então? Eu tinha que pensar em comer, em sustentar esse corpo que me deste, em satisfazer desejos que TU puseste em mim, não outro, tu foste quem me obrigava a manté-lo, a cuidá-lo, a tentar reproduzí-lo, em nome do qual eu fiz as piores baixarías das que fui capaz, e, por outro lado, me castigas agora por eu ter sido materialista, e por ter tido desejos “carnais”. Por qué me fizeste de carne, então? Ah, o que acontece é que tu és perverso de verdade, perverso mesmo. Tu és mau, tu és a maldade... e esta criação tua é a mais grande merda que eu ja vi não só na vida, senão agora também na morte...
De repente, terá sido coisa de menos de um segundo, se forem válidos os tempos da terra para medir os aconteceres celestiáis, e a luz desapareceu, voltou aquele primeiro lugar, o piano, as núvens, o Jobím e o velho, quem agora não bebía senão que olhava pra mim mudo, estupefato. O Tom acariciava seu instrumento e fazía a segunda voz de “Inútil Paiságem”. O velho e eu ficamos assim, a olhar um pra o outro, ele, na atitude que ja descreví, e eu, tentando entender qué significava esse abrupto cambio de cena.Afinal, olhou pro Tom Jobím e lhe disse, ainda assombrado:
-O maestro tá ouvindo o mesmo que eu ouço, ou será que fiquei danado de vez?
-Não, não, tou ouvindo, e, suponho, é o mesmo que o senhor.
-É que já se viu ousadía semelhante?
-É que o moço ainda não viveu o suficiente –advogava por mim o mestre.
-Você também não tinha vivido o suficiente e este velho cafajeste o tirou do mundo e o trouxe pra cá –retorquí falando pro Jobím, mas olhando desafiante ao outro.
Nesse momento o velho fixou em mim uns olhos terríveis, a sua face vía-se corada pela raiva prestes a estourar. Ouviram-se no céu terriveis trovões, o chão tremeu, enquanto ele bradava:
-Fora!! Fora daquí! Não quero ver você por aquí nunca mais! Nunca, mas nunca, você porá os seus pés neste lugar. Nem sonhe com isso!! Sou eu quem diz.E quando eu digo nunca é mesmo isso: ¡¡Nunca!!
Com essa última palavra voltou a oscuridade, desta vez total, e o terror invadiu-me, já que de novo me sentía cair.
-Bom –tentava me resignar, mas o que sentía, eu não tenho palavras que possam descreverem, pois, vocês entenderão, era um espanto ultramundano -, agora sim que vou pro inferno mesmo.
E, com efeito, achava sinceramente que essa viagem ía acabar naquelas regiões que o Dante pintou de maneira admirável, mas não, eu me encontrei de novo no meu corpo, sofrendo dores horrendas, como câimbras, mas muito mais fortes, da cabeça à ponta dos pés. Porém, com vida.
Daquela experiência já passara longo, longuíssimo tempo, e inumeráveis vezes tenho me perguntado se não haverá sido um sonho apenas, um pesadelo. As dúvidas que tinha então, e que com tanta paixão expusera ao Senhor continúam morando no meu peito, agora, confesso, amenizadas pelo passo dos anos. Cada tanto, falo delas com alguma pessoa que se aproxima de mim pra conversar, embora vejo últimamente que estas são cada vez menos.E já que estou dizendo, vou dizer tudo: quase estou me arrependendo do que disse a Deus naquela ocasião.
Hoje em día, o cansaço tem tomado conta por completo do meu ser. Quisera ¡Pela glória e tudos os Céus! descansar. Mas ainda ressoa nos meus ouvidos aquele ¡¡Nunca!! derradeiro que o Criador me lançasse. Mais que nada, porque há um tempão tenho compreendido que era verdade, e que Ele cumple, invariavelmente, suas promessas...
A semana que vem, vou completar cento trinta e três anos.

(MEU MESMO) 1º DIA DO ANO NOVO
(Rose Amaral)


Os fatos que passo a relatar são verídicos e confesso que só acreditei porque aconteceram comigo. Nada sério, apenas a vida e sua graça. Fortemente, não gosto de fazer qualquer voto para o Ano Novo, mas este ano me veio de fazer um: AGRADECER, SEMPRE, TUDO! Assim, o fiz.

Bom, acordei no primeiro dia de janeiro de 2005, às 8 horas da manhã, com o barulho de uma monstruosa escavadeira quebrando furiosamente o asfalto, em frente meu apartamento. Como? Tudo seria previsível, mas trabalho da Prefeitura em pleno 01/01, às 8:00 da manhã? E em frente minha casa?

Pensei, imediatamente, em reformular meu voto de agradecimento constante e incondicional. Porque foi aí que me dei conta das implicações de minha decisão; fiquei me imaginando em meio a uma tragédia, a uma catástrofe, com as mãozinhas levantadas, balançando de lá para cá e de cá para lá, cantando “Obrigada, Senhor!”.Achei ridículo!

Assim que a brutal escavadeira deu uma trégua em seu ensurdecedor barulho, ouvi outro ruído muito estranho vindo da área de serviço. Corri até lá e presenciei minha máquina de lavar roupas surtando. Não, aquilo mais parecia um ataque epilético; ela se debatendo, tremia do botão do painel até os pés de apoio, girando pela área de serviço. De repente, a tampa explodiu para cima e o restante para baixo. Deduzi, rapidamente, que seria melhor acudi-la e pequei um copo para salvá-la da espuma. Na primeira retirada, bati com o copo no tanque e ele se espatifou...

Lembrei:

-“Obrigada, Senhor!”.

Constatei que minha máquina de lavar havia sofrido um acidente terrível, talvez incalculável.

-“Obrigada, Senhor!”.

Voltei ao quarto, ainda em choque pelo que vi, quando me deparei com o meu telefone completamente bêbado. Eu explico: um ou dois dias antes eu havia derrubado um copo, inteirinho, de cerveja em cima dele (não por desavenças, mas por descuido). Daí para frente ele ficou bêbado e fora de qualquer área, mas aos trancos e algumas pancadinhas ele funcionava precariamente.

Eu sabia que devia fazer alguma coisa e fiz. Primeiro raciocinei sobre o telefone alcoolizado e conclui que se ele havia resistido ao álcool, que mal faria uma aguinha? Não pensei duas vezes (alias, taí coisa que não gosto de fazer) e busquei todo o material, abri o telefone (confesso que quase não aguentei o bafo), retirei com cuidado as pecinhas móveis e as coloquei em uma posição em que as identificaria com facilidade na hora da reposição.

Com toda cautela, iniciei os procedimentos; mas no afã de fazer um trabalho bem feito e não deixar sequelas acabei por chutá-las para fora do local de identificação.

-“Obrigada, Senhor!”.

Mas, o carinho no trato e cuidados com meu telefone foi tanto que pensei em lhe dar um banho de sal grosso no final. Mas, não o fiz. Depois da execução quase cirúrgica, olhei para a cama e me parabenizei pela competência na escolha do material utilizado: chave de ofendas, alicate de unhas, cotonetes, fio dental, tesourinha e claro, água. Terminada a limpeza interna, senti algo novo: percebi, claramente, que nunca havia estado tão próxima do humano de uma máquina. Senti por pouco que não éramos um. Enxuguei-o com amor e coloquei-o para secar tomando sol. Claro, todos dizem que sol de 6:00 às 10:00 é ótimo e eu estava dentro do prazo. Bom, não sei se ele funcionará, mas que é o telefone mais limpo da cidade, eu garanto!

Já no final da manhã do dia 1º, depois de uma máquina acidentada, de um telefone bêbado, de uma escavadeira vinda do além, ponderei que estava iniciando o ano com toda a oportunidade de que precisava para garantir o exercício do meu voto para 2005.

-“Obrigada, Senhor!”.

O MENOR CONTO DO MUNDO
“Fujamos! Os caçadores de letras estão aq...”

20 abril 2006


A ARMADILHA


Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.
Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.
Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe que não se afastasse.
Também a Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa, ao fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul.
Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante:
— Estava à sua espera — disse, com uma voz macia. Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada.
O outro teve que insistir:

— Afinal, você veio.
Subtraído bruscamente às recordações, ele fez um esforço violento para não demonstrar espanto:
— Ah, esperava-me? — Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse à tona uma irritação antiga: — Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante, mau farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando, mudando de lugar e nome.
— Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.
— Então, como fez para adivinhar a data da minha chegada?
— Nada adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, nesta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.
Por instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam.
Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:
— Antes que me dirija outras perguntas — e sei que tem muitas a fazer-me
— Quero saber o que aconteceu com Ema.
— Nada — respondeu, procurando dar à voz um tom despreocupado.
— Nada?
Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação. Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro venceram-no.
— Abandonou-me — deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: — Disso você não sabia!
Um leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:
— Calculava, porém desejava ter certeza.
Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre os ligariam.
O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria, desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse.

Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa:
— Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo. Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.
— Não, além de desarmado, você não veio aqui para matar-me.
— O que está esperando, então?! — gritou Alexandre. — Mate-me logo!
— Não posso.
— Não pode ou não quer?
— Estou impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.
Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão.
Ao levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.
Lançou-se na direção dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:
— Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei precaução de colocar telas de aço nas janelas.
A fúria de Alexandre chegara ao auge:
— Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!
— Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.
— Gritarei, berrarei!
— Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos.
E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:
— Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.

18 abril 2006


INDIGESTA
(Edwood Lautrec)
Mais do que nunca , minha caneta teima,
em vomitar toda sua tinta,
É o ecossistema da poesia.
Pois sem essa tinta,
A fotossíntese dessa folha não ocorreria,
E minha clorofila mental então toda acabaria.
E se não fosse em poesia;
A minha caneta de teimosia não vomitaria,
E como se fosse um laxante,
Em diarréia azulada ela
Toda estouraria.

MIF

O universo está entrando em colapso e a existência, idem. É a hora do Big Crunch !

(Conto de Evaldo Magalhães)

O universo estava prestes a entrar na Idade da reversão, período que duraria os mesmos bilhões de anos até aquele momento e o faria reduzir-se, aos poucos, a um minúsculo ponto de singularidade, feito de matéria hiperconcentrada e perdido no Vazio (embora não houvesse alguém para encontrá-lo). Dali em diante, era impossível prever quanto tempo levaria até que, mais uma vez, houvesse o sopro, o clic na chave do reator invisível. Outra gigantesca explosão ecoaria pelo Nada, dando início à enésima volta no ciclo intérminável dos acontecimentos - àquele caos motocontínuo de luzes, gases, matéria escura e poeira cósmica que iria se organizando, com o passar do recém-criado tempo, em galáxias, estrelas, planetas e seres vivos, inteligentes e/ou estúpidos. Tudo isso tentando, em diferentes níveis de complexidade e com as mais diversas estratégias, afastar-se a uma distância segura do indefectível Verbo. E então, frustrada ao final da correria, a família universal, como em incontáveis ocasiões, sucumbiria num único instante ao derradeiro e repetido colapso. E assistiria ativamente à contração de seu lar, revivendo ao contrário a enganosa escapada pelo espaço-tempo.

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Dominus, o andróide, olhava fixamente o cronômetro quasárico no laboratório central de Zelgrub, em uma das milhares de câmaras intraterrenas do planeta, a leste das escarpas de Calixus. Ele sentia no peito algo bem próximo à Angústia - doença psicofísica que lhe fora relatada inúmeras vezes por humanóides de diversos planetas, e cujo sintoma mais comum era "um enorme bolo de vazio no plexo solar". Era estranho o sentimento de que todos os seres "superiores" à base de carbono sintético ou verdadeiro, ambos dotados de pensamento (e os últimos capazes de criar vidas artificiais como a sua, a partir da prática da matemática combinatória), estivessem ausentes naquela hora. Todos mortos. "Solidão", pensava Dominus, enquanto ajustava obsessivamente controles no painel à sua frente. "Solidão com uma boa dose de medo", balbuciou, conclusivo.

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Na superfície do globo, contudo, havia uma contradição fundamental ao raciocínio do andróide. Em uma tenda de fibra de vidro, reluzente na quietude desértica sob os raios de Cintila, a estrela do sistema G-232, abrigava-se um homem; não um calixusiano, mas um terráqueo. Bêbado por doses e mais doses de cartúnia, com olhos enfadados passeando eletricamente pelos cantos, como que à procura de mosquitos inexistentes, Malt Stuponic soltava um filete de saliva pelo canto da boca, enquanto pronunciava, com dificuldade, palavras ininteligíveis até para si mesmo. "Bltassnersdtst", era o que se podia entender. Um som agudo e sincopado vinha do relógio em seu pulso. Era como uma marcha fúnebre, eletrônica e minimalista, marcando os segundos finais do universo como o próprio medidor de tempo o concebia. Mas Stuponic não dava atenção. Estava mais sintonizado com o grande, frio e inelutável Destino que o aguardava, e a tudo o que conhecia, do que com qualquer outro pensamento. "Fim", ele finalmente pode ouvir-se.

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Ex-funcionário do Instituto Quasar de Pesquisas do Caos (IQPC), o último ser de carbono verdadeiro do mundo ainda vivo e pensante sabia que, dali a pouco, começaria, grosso modo, a encolher, num trágico e lento processo de rejuvenescimento. Antes mesmo de ser um bebê, se ainda estivesse respirando, Stuponic passaria fome, sentiria mais terror do que naquele momento e, o que é pior, não encontraria pai, mãe, tios, avós, primos, irmãos, sobrinhos, sobrinhas, amigos ou inimigos para diminuir seu desconforto. "Fim", ele repetiu. Stuponic pegou outra garrafa de cartúnia e abriu-a com os dentes amarelados que, de podres, não resistiram e se quebraram. Cuspiu porcamente os pedaços e levou a bebida à boca, com um desespero contido. Foi uma longa talagada com os olhos apertados, dos quais lágrimas insistiam em escapar.

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Em Zelgrub, Dominus pensava seriamente em recorrer a uma garrafa semelhante à tomada, naquele mesmo momento, na superfície de Calixus, pela corporifição da antítese à idéia de que estaria sozinho no universo. Tamborilando os dedos nas botas luminosas e esfregando o baixo ventre, com a outra mão, o andróide relutava em abrir o congelador, para o qual olhava fixamente. Ele titubeou ainda por alguns segundos _ pensou nos porres de Gerhdt, seu mestre, e nas bordoadas que dava na esposa após algumas doses. Mas isso não o impediu. Deu um longo e saudoso suspiro e retirou nervosamente a garrafa do compartimento gelado, onde se lia "Faça uma boa viagem". Convicto de que seria um excelente remédio para a Angústia, Dominus sacou a rolha e sugou o líquido de uma só vez com um canudo, por aquele arremedo de boca que haviam projetado para seu rosto. Finda a operação "boa viagem", atirou a garrafa na parede e relaxou na poltrona, exatamente como fazia Gerhdt, antes de matar-se. Aliás, foi esta a imagem que ocorreu à conturbada mente do andróide. O corpo do mestre esticado sobre a cama, ao lado da esposa e do filho de cinco anos, todos mortos pela ingestão dos comprimidos "Além".

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Tão logo os cientistas do IQPC anunciaram a comprovação da permanência da alma após a morte, oito luas cheias de Calixus antes daquele dia, todo o mundo correu às farmácias para comprar os tais comprimidos, que garantiriam uma entrada sem problemas no "reino encantado do além", como dizia a bula. Até os andróides, os superinteligentes bichinhos de estimação dos humanóides, haviam embarcado na febre do post mortem _ o pessoal do IQPC afirmara que mesmo produtos da biotecnologia poderiam possuir almas resistentes à inativação dos corpos, desde que "desenvolvidas" em complicadas práticas ascéticas. O suicídio coletivo fora completo, em todos os planetas do universo. Isso porque, no dia seguinte à descoberta da "vida após a vida", os mesmos cientistas revelaram a data e a hora de início do temido processo de reversão, o Big Crunch, cinicamente apelidado pela mídia intergalática de Bang Big. Por obra de Deus, ou fosse lá que força misteriosa comandava aquela bagunça toda chamada universo, no entanto, sobraram um homem bêbado e decadente e um andróide psicotizado, que acabara de enveredar pelo caminho do álcool. Um sem saber da existência do outro.

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Stuponic largou a garrafa de cartúnia na mesa à sua frente e tombou, salivando e ruminando palavrões contra si mesmo. Ele sentia um misto de tristeza e loucura que jamais experimentara em sua torpe vida de cientista. "Caralho !", gritou. "Sempre achei graça em tentar prever as coisas, hic, agora sei exatamente o que vai acontecer comigo e, hic, estou ficando louco", ele disse - ou, melhor, pensou nisso e tentou dizer. O terráqueo dormiu por umas oito horas e acordou espantado, sentindo-se alguns segundos rejuvensecido - o Bang Big tivera início. A sensação de reversão só não livrou-o de amargar uma dor de cabeça cósmica. "Preciso dar uma volta e encontrar comida", pensou.

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O único humano ainda vivo nas faces de todos os mundos do mundo entrou em seu módulo para viagens de curta duracão e deu a partida. Planou sobre o deserto como uma águia faminta. Stuponic tinha a esperança de encontrar uma escotilha aberta na planície - que algum caluxiano mais afoito, na ânsia de morrer, tivesse esquecido de fechar. Depois de voar horas e horas, tomando-se o sentido inverso dos relógios analógicos, claro, ele finalmente avistou uma abertura, 200 metros abaixo de onde estava. Quando preparava-se para aterrisar, viu um ser de macacão prateado deixando a fenda e mirando, aparentemente tão surpreso quanto ele, o aparelho no céu. Emocionado, Stuponic perdeu o controle da nave, que entrou em espiral durante a descida e chocou-se violentamente contra o chão. Dominus observou a cena, tirou do bolso um aparelho de detecção de vida que, apontado para os destroços, a poucas dezenas de metros de onde se encontrava, recusou-se a emitir o sinal positivo. O andróide deu de ombros e entrou pela escotilha. A porta foi se fechando. "Solidão", ele queixou-se, esfregando a mão em seu suposto plexo solar.

17 abril 2006


Gregório de Matos, o Boca do Inferno

A Uma que lhe chamou “Pica Flor”

Se Pica flor me chamais

Pica flor aceito ser

mas resta agora saber

se no nome que me dais

meteis a flor que guardais

no passarinho melhor.

Se me dais este favor

sendo só de mim o Pica

e o mais vosso, claro fica

que fico então Pica flor.

13 abril 2006



IDÉIAS DO CANÁRIO
(Joaquim Maria Machado de Assis)

Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.

No princípio do mês passado, — disse ele, — indo por uma rua,sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de urna loja de belchior.Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.

A loja era escura, atulhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.

Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário.

A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.

— Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?

E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:

— Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo.

— Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?

— Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou vendo que confundes.

— Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.—

Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.

Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito.

— Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?

— Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?

O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.

— As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.

— Quero só o canário.

Paguei lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.

Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabeto a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.

Não tendo mais família que dois criados, ordenava lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas.

Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.

Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias.

Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.

Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto.

— Mas não o procuraram?

Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.

Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:

— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?

Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam cuidados de amigos?

Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular.

— Que jardim? que repuxo?

— O mundo, meu querido.— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior.

— De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?

POLILÍNGÜE
(Alexandre Campinas)

Minha língua pátria é presa
cercada de sanções, nações
corruptas e corruptoras.

Minha língua presa anseia a solta,
livre de imposições,
ágil e motora.

Minha língua solta é erótica:
espasmos após tensões.
Flerta, provocadora.

Minha língua erótica é ferina.
Cospe imaginações
E alguém ora: antiquelíngua fecundadora.

Minha língua ferina é frouxa.
Fala de arrebatações,
da vida viva e aterradora.

Minha língua frouxa se come
com batata, à portuguesa e com tesão;
com boca degustadora.

Minha língua multi-sabor é sempre suja
de violência e de paixão
entrega-se è outra, devoradora.

Minha língua suja disfarça-se em pê:
pêquer pêô pêcéu, pêchão.
É língua lúdica, voadora.

Minha língua do pê é feita de trapo,
que se esconde com exatidão
p’ra tocar, redentora.

Minha língua de trapo é língua de sogra:
faz festa, conselho e diversão.
Toca onde não se quer, desafiadora.

Minha língua é a língua do cão:
baba e lambe e late sem compaixão,
língua cachorra.

ÚTEROS DE CARPETE

(Kinho Vaz)

O dia nasce nos golpes sucessivos do badalo. Um som que se entranha pelos poros estimulando uma leve consciência. Os olhos permanecem fechados. O corpo entorpecido pelo resto de sono. As juntas resistem a qualquer movimento. Reclamam. Têm vozes que berram na mente um grito de socorro. Fazem muito barulho. Os ouvidos despertam. Apuram o mundo. Sintonizam canais em busca de um som. Reconhecem o sino do mosteiro. Que bate firme. Que bate fundo. Que bate estaca. Crava na percepção o limiar da realidade. Anuncia o tempo em seu ritmo imperativo. Os olhos se opõem. Reagem. Apertam as pálpebras. Entrelaçam os cílios como uma rede de proteção. Última linha de defesa. Pronta para impedir que nada saia, que nada entre. Barreira do limbo. O corpo todo se esforça para reabrir o portal dos sonhos. Submergir novamente na paz oceânica. Se entregar à sensação do abandono pleno. Vagar no vácuo. Ignorar a vida. Mas é tarde. Não há caminho de volta. As buzinas já avisam que o sinal abriu. Os motores já começam a arrotar os soberbos desjejuns. Os passos apressados surgem como ecos. Pisam com estrondo num chão que parece metálico. Propagam o aviso do seu caminhar em ondas que se multiplicam. Que se espalham como notícia ruim. É a horda dos aceitos que chega, caminhando a sua indiferença. Trazem também as vozes. Não esta. As outras, que falam de tudo. Que sorriem. Que xingam. Que cantam. Que aumentam e diminuem. Que profanam a vida latente no útero de carpete. Chegam disparando o sinal de alerta. Deixam o espírito em estado de vigília. Fazem a razão se espalhar em picadas miúdas e doloridas. Surreais como uma chuva de alfinetes. Fustigam o corpo até que vem um tremor mais forte. Esse, provocado pelas portas do comércio subindo com seus disparos de metralhadora. São as matracas que anunciam o ritual da purificação. O momento da maquiagem que disfarça a cicatriz. Do curativo inútil na ferida gangrenada. É o instante que introduz os sons da desfaçatez. Do barulho da água lançada ao calçamento. Do chiado agudo das vassouras esfregando o assoalho do purgatório. Compondo com o sino do mosteiro o arranjo de uma ópera-bufa. Uma peça de paródia, onde baianas sem máculas lavam as escadarias do templo usando cântaros de creolina. O cheiro forte invade as narinas. Queima os pulmões. Faz os olhos chorarem sem querer, vertendo privações. A língua pastosa descola do céu da boca. Desperta insossa e ressecada. Incapaz de decifrar o sal da lágrima. O estômago pesa sua inatividade. Pondera a possibilidade do alimento. Lembra a urgência da fome. Está tão contorcido e vazio quanto o saco plástico que ontem continha a cola de sapateiro. A química de onde se aspira instantes de paz. Momentos de ternura com lares, leitos e leite quente ao deitar. Tudo que não é real. Nada que se faça tão presente como o cutucão do cabo da vassoura. Cócegas nas costelas. Nem tão alto como o grito de “ta na hora!”. Beijo de bom dia. O primeiro pontapé é recebido como um carinho. Confundido com o delírio do sonho. Pensa ser a mãe que nunca existiu, chamando para a escola que nunca houve. O segundo chute vem mais forte. Não deixa dúvidas de quem está chamando. Nesse ponto a vassoura muda de função. Assume o papel de fórceps. Busca uma brecha na cápsula de trapo. Vasculha o interior do casulo como um instrumento de curetagem. E com precisão cirúrgica se transforma num tridente. Símbolo do mal. Começa a atiçar a carne com suas fibras de piaçaba. Provoca mais dor. É mais um motivo para acordar. Para desinfetar dali. Para abortar a tentativa de fugir à realidade. Para continuar sobrevivendo. Então se dá a revelação. O mistério da vida gerada nas ruas. O instante sagrado onde os mundos se tocam. O útero de carpete se rompe. Dá à luz o improvável. Expulsa do seu interior um pequeno ser. Quase humano. Que apanhou e chorou para nascer. Como toda gente. Mas que não terá colo, nem seio, nem berço.
Nem a promessa de voltar a nascer amanhã.
Haikaizinho besta de Alexandre Campinas

Vontade danada
de comunicar conciso.
Sei: Matsuo Baixou.


Matsuo Basho é o criador do haikai.