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01 junho 2010

(Em tempo: Tetelo "Batman", Alexandre e Kinho Vaz)



PERVERSOS PRECOCES
Éramos uma legião de demônios precoces. Não valíamos a bala que roubávamos na quitanda. Nem os sacos que enchíamos com urina, para arremessar nos ônibus lotados. Uma turba vadia, de liberdade indecente, como a nossa condição. Tínhamos a fragilidade das rolinhas que abatíamos por lazer e fome. E a resistência das pequenas eras que crescem nas frestas das calçadas. Éramos seres sem compromissos. Pequenos e pobres como as possibilidades disso mudar.

O nosso tempo só contava após a escola, onde despertávamos remelentos, desgrenhados e sacudidos pelos berros do inspetor. Não éramos rebeldes, pois ainda não conhecíamos a rebeldia. Mas conseguíamos agregar criatividade à ousadia de um jeito agressivo. Tanto que os adultos nunca descartaram a possibilidade de nos mandar para um reformatório. Puro exagero. A nossa perversidade era ingênua. Não tinha nenhum efeito prático, senão o de nos divertir.

Como foi divertido roubar o Ford Bigode do seu Manduca. Uma paixão do velho. Mantido como uma amante. O carro ficava parado o tempo todo, na sua porta. Dali só saía uma vez por mês, dirigido pelo seu Manduca. Sempre num sábado. Ninguém, nunca, descobriu porquê. O velho entrava no carro e a gente provocava para ele reagir. Já vai passear de carroça, Manduca? Sai da frente suas pestes. Sai senão passo por cima, bando de bostinhas. A gente ria dos insultos, mas gostava mesmo de correr ao lado do carro atiçando o velho. Pisa aí Manduca caduca. Essa porra não corre mais que a gente não? Corre mais que o cu da tua mãe, estrupício. Ainda atropelo um! Filhos da puta! Crias de cadela vadia! Netos de mulher da zona... E xingava o que podia, enquanto conseguíamos ficar emparelhados com a janela do carro. Era sempre assim, uma vez por mês, todos os meses. Até o dia em que tivemos a idéia de esconder o Ford Bigode. Uma maldade que quase custou a vida ao homem. Era tarde da noite. O guarda noturno já apitava ao longe. Algumas pancadas de leve na lataria fizeram a maçaneta ceder. Abrimos. Um ficou na direção, o resto empurrou. Paramos o carro umas duas quadras adiante. Fechamos a porta e voltamos pra casa. No dia seguinte estávamos lá, sentados no meio fio, quando o seu Manduca apareceu arrumado para sair. Olhou o espaço vazio na rua e tonteou. Tirou o chapéu panamá e começou a se abanar. As palavras não saíram. Uma brancura de morte tomou conta do seu rosto. A camisa de linho engomada encharcou. Os joelhos dobraram e fizeram o velho escorregar pela parede até o chão. Acode que seu Manduca tá passando mal! Corre que o velho tá morrendo aqui! E toda gente acudiu rápido. Todo mundo saiu de casa pra ver. Porque gente pobre é assim: nem sempre pode ajudar, mas não deixa de conferir. Nós, farsantes, corríamos de cima a baixo atendendo aos pedidos. Pegando água com açúcar pra acalmar. Buscando vinagre, pra esfregar nos pulsos. Uma colher de sal, pra levantar a pressão. Café sem açúcar pra avivar o velho. Deu certo. Manduca falou. Roubaram meu carro! Puta que pariu! Cadê meu carro? Calma seu Manduca, vamos chamar a polícia. Polícia? Fodeu! Vamos ser castigados duas vezes. No cassetete dos meganhas e no fio de ferro da nossa mãe. Agora não teria jeito. Iríamos conhecer o reformatório. Que merda! Mas se o diabo atenta, o anjo da guarda protege. Veio a idéia de procurar o carro. Deve tá perto, seu Manduca. Aquela carroça não andava porra nenhuma. Carroça é a puta que o pariu seu bostinha! Cala boca, peste. Não tá vendo que o velho tá passando mal. A gente só quer ajudar. Vão ajudar a sua mãe a lavar a boceta, seus filhos da puta! Vocês devem ter alguma coisa com isso. Mas se eu descubro eu mato um puto desses! Calma, seu Manduca, calma. Sai pra fora daqui seus coisa ruim. Vão acabar de matar o velho. A gente só quer ajudar, tia. Podemos correr por aí procurando o carro. Então vai, vão ver se acha a porra desse carro por aí, merda! Saímos voando e estridentes, como um bando de biquinhos de lacre. Mas não podíamos voltar logo, para não parecer coisa feita. Fomos para o campo do América, assistir à pelada da manhã. Subimos ao Santo Antônio para ver a turma cruzando pipa. Mergulhamos no açude da fábrica abandonada. E só então voltamos correndo para a nossa rua. Achamos! Achamos! Achamos o carro do seu Manduca. Tá aonde? Lá embaixo, na rua do querosene. Vamos lá pra ver. E todo mundo foi. Seu manduca na frente. Todo mundo atrás. Era o fato do dia. Aquilo valia mais que lavar as roupas da madame. Que catar o feijão da semana. Que remendar as cuecas do marido. Era festa em dia comum. Todo mundo viu seu Manduca abraçar o carro. Erguer as mãos e agradecer a Deus. Beijar o capô. Conferir a lataria, os pneus. E depois entrar para levar seu precioso Ford Bigode pra casa. Dá carona, seu Manduca? Sai pra lá que aqui vocês não sentam esse cu sujo! Aqui não! E arrancou com o carro, deixando o povo pra trás. Menos a nós, que saímos correndo ao seu lado, atazanando a sua vida.


Houve outras ocasiões onde deixamos a maldade depor contra a nossa inocência. Como aquela, em que simulamos um assassinato para a minha mãe. Morávamos num porão. Chovia muito, o dia todo. Ficamos presos naquele subsolo úmido e apertado. Pequeno demais para a nossa imaginação criminosa. Minha mãe estava no quintal. Armada com um vergalhão de ferro lutava para que o ralo não entupisse e transbordasse imundices para o nosso lar subterrâneo. Possivelmente chorava, por aquilo e por nós. Pois ainda não era meio dia e já havíamos dado àquela mulher curvada pelos sacrifícios da vida, muitos motivos para chorar. Quebramos a sua cama, jogando bola com os travesseiros. Acabamos com uma caixa de fósforos, um vidro de esmalte e um tubo de laquê, num ritual de incineração de formigas. A mistura provocou uma pequena explosão que deixou careca de cílios e sobrancelhas o meu irmão caçula. Era pouco.

Decapitamos o São Jorge do meu pai, alvo do nosso estilingue. Gastamos o último gás do bujão, fazendo goma de farinha para colar a cabeça do santo. Destruímos dois cabides, transformados em rústicos arcos para flechas. Uma dessas varou a porta de vidro da cristaleira. Soltamos o azulão da gaiola para brincar de caçá-lo. Ele fugiu. Passou rasante pela cabeça da minha mãe, que largou um grito de espanto. Ai, meu Deus! Que isso! Puta que pariu! O que eu fiz para merecer isso? Hoje eu pego um de jeito! Berrou mais ameaças para nós e continuou sua luta com o ralo. Não tinha a menor idéia do que aconteceu e do que iria acontecer lá embaixo. Ficamos quietos uns segundos, até que voltamos a escutar seus palavrões dirigidos às baratas que subiam em suas pernas. O céu seguiu trovejando pesado. Devia ser Deus, assumindo o seu desgosto com a gente. Ou então tentando alertar àquela pobre mulher. Chamar a sua atenção para os pequenos seres diabólicos, presos no seu submundo. Nós, que naquele instante chegamos à caixa dos remédios. Descobrimos o vidro de mercurocromo e sorrimos em perversa conivência. O irmão caçula foi deitado no chão. Segurava a lâmina do facão de peixe com o sovaco. O falso sangue foi espalhado a esmo, pelo corpo e pelo lugar. Estava pronta a farsa. Era só ver no que dava. Socorro mãe! Corre aqui. Acode mãe. Ajuda! Rápido! Corre! Depressa, mãe!Ela veio rápida, entre palavrões. Desceu se equilibrando para não cair nos degraus toscos e molhados. Parou estatelada diante da cena. Deu um grito aterrador e desabou, sem sentidos. Ai o meu cacete! Matamos a mamãe. E agora? Mãe é brincadeira. Ele não morreu não. Acorda, mãe! Joga água nela. Já ta molhada. Na cara, seu bosta. Vai afogar ela. Joga logo essa merda aí! Enquanto isso, o ralo transbordava e o esgoto descia em cachoeira até nós. O cheiro tomou conta de tudo. E nos ajudou a fazer minha mãe voltar a si. A primeira coisa que fez foi abraçar assustada o filho caçula. Chorou soluçando. Pegou seu rosto entre as mãos para conferir a cria. Notou a ausência dos cílios. As sobrancelhas chamuscadas. Que isso? Fomos saindo de fininho para um canto. Ela se levantou e começou a tomar pé da realidade. Olhou ao redor e viu tudo pelos ares. Viu a cama quebrada. Conferiu a parede enegrecida pelo fogo. Alisou a cristaleira partida. Levou as mãos à boca e fez o sinal da cruz, quando viu o São Jorge com a cabeça colada ao contrário. Voltou-se para o chão sujo de mercurocromo, como o corpo do meu irmão. Puxou os cabelos com todo aquele mal feito, completado pelo rio de fezes que descia as escadas. Arregalou os olhos de um jeito conhecido. Perigoso, para nós. Torceu o canto da boca. Puxou o ar com força e explodiu. Seus filhos de uma puta! Desgraçados. Pestes do inferno. Isso é coisa que se faça? Mas eu mato, hoje mato um. E vai ser agora! Vem cá! Vem cá! Não adianta correr! Eu caço vocês no inferno. Interna essas crianças, mulher! Vai cuidar da sua vida fofoqueira. Então vá se foder! Saímos correndo para a rua, com chuva e tudo. Atrás de nós voavam panelas, pratos e baldes. Minha mãe tentava nos acertar como podia. Mas não corria como nós. Sumimos na chuva. Subimos o morro, entramos no mato. Passamos o dia fugindo dela. Molhados, com fome e rindo da nossa maldade. Mais tarde ela se acalma. Aí a gente volta.


Também sofreu a Júlia maluca. Que não era maluca de verdade. Mas ficava assim por nossa conta. Uma idosa sozinha no desamparo coletivo. Vivia de passar roupas pra fora. Todo dia saía com a trouxa na cabeça. Parte do seu corpo. Uma mulher pequena que cumpria o seu destino malabarista. Era vingativa. Gostava de dar o troco. A gente aprontava com ela e tinha que ficar atento. Ela não esquecia. Quando menos se esperava, vinha com uma tesoura cortar a linha da nossa pipa. Ou surgia do nada, para rasgar a nossa bola com a faca. Quando tinha sucesso na vingança, escancarava a boca sem vida e gritava rouca. Comigo vocês se fodem! Comigo vocês se fodem! A Júlia ficou chamada de maluca por um trauma. Tinha medo de macumba. Se encontrasse um frango morto e um toco de vela numa esquina, fazia um escarcéu. Apertava os olhinhos miúdos. Botava mais rugas no rosto. E falava correndo, batendo as mãos, compulsiva. Valha-me Deus, Nosso Senhor! Tira o capeta do meu caminho! Me guarda nas asas dos seus anjos! Me tenha na sua bondade. Expulsa o demo daqui. Tira o coisa ruim da minha frente que os caminhos do mundo são seus. Trabalho na sua fé. Vivo da sua caridade. É sua a minha alma, na vida que é meu castigo e na morte que será meu prêmio... E repetia a ladainha depressa. Pulando no mesmo lugar. Sem parar de pular. Sem deixar a trouxa de roupas cair da cabeça. Como se a trouxa fosse um apêndice. Uma grande verruga da sua cabeça. Fica nesse transe até a torrente de frases minguar. Então se benzia repetidamente, enquanto atravessava a rua correndo. Com toda a molecada atrás imitando e gritando. Júlia Maluca! Cabeça de trapo! Júlia Maluca! Cabeça de trapo! Vão daqui! Vai embora cambada! Pode esperar. Vocês vão se danar. Comigo vocês se fodem! A Júlia morria de medo dos santos de macumba. Até de Cosme e Damião. Uma vez fomos vender ferro velho, catado pelas ruas. Lá no depósito encontramos uma máquina de escrever muito antiga. Trocamos tudo por ela, aceita? Fica faltando meio quilo. Depois a gente paga, pode? Vão pagar como pirralhos? Com mais ferro, a gente cata e trás pro senhor. Vá... Levem esta bosta e me sumam da vista. Aquela máquina de escrever deu origem a muita coisa. Principalmente as que não prestam. Mas a pior delas foram os cartões de Cosme e Damião. Fizemos um montão. Entregamos na escola, na feira, onde a gente passava. Convidamos para distribuição de doces, roupas e brinquedos no dia dos santos. Era comum se fazer isso. A gente dizia que uma moça tinha mandado. Todo mundo acreditou. O dia todo mundo já sabia, 27 de setembro. Marcamos hora e local. Colocamos o endereço da Júlia. Vai dar uma merda só! Agora ela vai ficar maluca de vez. Muito antes da hora marcada, a fila já ia longe. Tinha de tudo. Adulto, criança, velho. Dia de Cosme e Damião é assim, faz todo mundo virar criança. Bota todo mundo na rua atrás de doce. Não parou de chegar gente. E a Júlia lá dentro. Passando roupa. Sem tempo de botar a cara na rua. Chegou a hora marcada no cartão. Nada da porta abrir. O povo ficou impaciente. Bateu na porta. Bateu palma. Berrou chamando o dono da casa. Queremos doce! Olha a hora! Abre essa porta aí. Salve Cosme Damião, gente! E nós lá, rolando de rir. Achando aquilo o máximo. Orgulhosos do feito. Vão derrubar a porta da Júlia. Vão querer matar a velha de pancada. A Júlia abriu a porta e se encolheu de espanto. Tentou fechar, mas o povo não deixou. Cadê o nosso doce, dona? Que doce? O de Cosme e Damião. Eu não mexo com essas coisas! Mas tá aqui no cartão, o número é da sua casa. Mas aqui não vai ter porra nenhuma. A gente tá aqui desde cedo, dona, isso é ruindade! Faz isso não, moça. Mas eu não tenho doce nenhum. E sei lá que cartão é esse. Aí pessoal, tá dizendo que não tem nada. Como nada? Esse tempo todo aqui pra nada? Tá brincando com as crianças? Assim você vai ficar corcunda, bruxa velha. Vá rogar praga no caralho. Vamos lá, pessoal, tomo mundo junto: queremos doce! Queremos Doce! Mentirosa! Bruxa velha! Vaca murcha. Filha da puta...A turma ficou louca. Só não invadiu a casa da Júlia, porque alguém chamou a polícia, que limpou a área na bordoada. A velha ficou mal vista pela vizinhança. Já tinha medo dessas coisas. Depois daquilo, nunca mais saiu de casa em dia de Cosme e Damião. Mas teve uma vez que a coisa ficou séria mesmo. Quase matamos a Júlia de verdade. De susto no coração. Estávamos à-toa na rua. A noite já estava alta. Parou um carro na esquina. Carro de bacana. Desceu uma mulher enorme de gorda. Trazia um sacolão de lona. Armou um grande despacho para os santos da encruzilhada. Tinha de tudo. Cachaça, frango, farofa amarela, vela preta e vermelha, pipoca, champanhe... Um verdadeiro banquete. Bonito de ver. Tudo arrumado em cima de um pano vermelho e preto. Cores de Exu. Cores do Flamengo. O carro saiu, a gente chegou perto. Olha o pano! Dá pra gente fazer bandeira do Mengo! Tá louco? Amanhã vai pro lixo mesmo! Isso faz mal, menino, é pros santos. Os santos não vão comer o pano, vão? Mas é deles, vai cair a sua mão. Mas vamos deixar isso tudo aí? Quem ia gostar de ver era a Júlia Maluca... Nossos olhos se acenderam com a idéia. Como se todos pensassem a mesma coisa. Pronto! Já não se tinha mais medo dos santos. Pegar já não fazia a mão cair. E a bandeira do Flamengo podia esperar mais um pouco. Vamos sacanear a Júlia! Como? A gente bota isso tudo na porta dela. E o castigo? Castigo é o caralho, você acredita nessa porra? Sei lá! Então não pega, só vigia. Tá bom!Apagamos as velas. Juntamos as pontas do pano rubro-negro e transportamos o despacho. Montamos tudo na porta da Júlia. O despacho completo. Grande, imponente. Todo certinho. Bonito, se não fosse o lado macabro. Pronto. Estava armado o circo. Era só esperar a hora do show. Cedinho estávamos lá. Culpados na cena do crime. A Júlia abriu a porta e saiu do mundo. O sangue fugiu. A pele eriçou. O grito não conseguiu sair. Ficou preso no peito arfante. A trouxa de roupas passadas caiu. Pela primeira vez na vida, desgrudou da sua cabeça. Caiu sobre o despacho. Atrás veio ela, a Júlia. Se debatendo toda. Botando espuma pela boca. Revirava os olhos. Agonizando. Tornou-se parte do seu medo. Parecia o frango da macumba, acabando de morrer. Acode gente, a Júlia tá tendo um ataque. Socorro! Venham ajudar a velha! Todo mundo veio. Mas ninguém queria botar a mão nela. Estava sobre um despacho. Com isso não se brinca. Tava se debatendo. Aquilo era coisa de santo. Vivia esconjurando eles. Tava sendo castigada. É um ataque! Não, é santo mesmo. Vivia brincando com eles, pegaram ela! E se não for? Vai deixar ela morrer? Temos que ajudar! Vai lá você. Eu não boto a mão aí. Joga um balde d’agua, tia. Cala a boca peste, que isso tem dedo de vocês. Tem não tia. Então sai daqui e não atrapalha. A Júlia vai morrer, tia? Não fala besteira, menino. Quer que a gente chame a polícia? Só se for pra prender vocês. Mas a gente não fez nada. Quem não conhece que compre. Vão lá na venda e pede ligar pro hospital. Pede uma ambulância. Diz que é urgente. Corre, peste. Vai logo. E nós fomos voando. Um riso de deboche, pelo acontecido. Um frio na barriga, pelo medo da velha morrer. A ambulância veio e levou a Júlia. Ela não morreu, mas jurou que iria nos matar.

Como todos os outros que passaram pela nossa infância. E sofreram com a nossa cruel criatividade.

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