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28 maio 2006


O livro Grande Sertão: Veredas completa 50 anos. Quintal Literário homenageia um dos maiores escritores da língua portuguêsa, João Guimarães Rosa.
A TERCEIRA MARGEM DO RIO
(Guimarães Rosa - do livro:Primeiras Estórias)
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

27 maio 2006


ESTRELA CADENTE


O sedan importado deslizava suavemente na grande avenida da minha cidade. Na madrugada, com chuva fina e ar-condicionado gelando dava gosto ouvir o Sinatra cantando MY WAY. Combinava. Complementava o cenário. Nos meus quarenta anos eu me sentia como um astro: A câmera fazendo um travelling em semi-círculo, lento, saindo de uma porta em direção a outra passando pela frente do carro.

Foi uma bela noite. O restaurante sofisticado da zona sul, repleto. Quarenta anos. Um sem fim de brindes. Champanhe francês e uísque doze anos, salmão defumado ao molho de amêndoas e batatinhas sauteé.

Eu estava cheio. De vida.

Amigos, parentes, esposa linda e perfumada, filho esperto e inteligente demais para os seus seis anos. Inesquecível.

Tudo ia de vento em popa. Negócios excelentes, casa de veraneio na região serrana, umas amantezinhas sem importância a quem eu presenteava com uma corrente de ouro aqui, um anel de pedra semi-preciosa ali, gargantilha acolá, coisa pouca. Prazer rápido. As influências políticas davam-me confiança para ir a frente cada vez mais. Charutos, antes holandeses ou dominicanos (que nunca fumei porcaria, nem nos tempos de dureza) agora belos havanas.

De tudo isso eu me recordo hoje enquanto cato guimbas pela calçada e esmolo a bebida do dia. “Vai trabalhar, vagabundo !” É mais um insulto que engulo, empurrado pela aguardente barata que já nem queima mais a goela. No começo eu sentia descer ardendo até provocar o refluxo ácido e doído lá do estômago. Hoje não mais. Ainda tenho estômago ? Ou isso também caiu em desuso, atrofiado, utilizado apenas quando tenho pesadelos com as mesas de antigamente, de lagostins e cavacas ?

Ainda uso o paletó antigo. Rota lembrança do que foi outrora um belíssimo corte italiano. Fico esperando que um companheiro de infortúnio me aborde a qualquer momento e pergunte: “Como vai, caro colega ?”

O tempo de estabilidade foi curto. A mosca azul envenenou meus dias. Penso: poison (eu sabia bem o francês). Por ganância associei-me a um mega-empresário e deputado. Um negócio de importação muito precioso: “ilegal narcotics”, digamos assim (eu sabia o inglês também).

A grandeza do sócio acabou por sobrepujar-me. Eu, que sempre mandei, diante da desproporção da sociedade passei a obedecer. Nem eu entendia o porquê mas fato é que sentia-me inferiorizado. Daí para as facilidades do álcool e das drogas foi um pulo. Uma descida rápida, comum a todos esses casos.
Obviamente a Maria Cristina descobriu a história das amantezinhas desimportantes que alcançaram descomunal importância na hora da partilha das poucas coisas que ainda não havia colocado em nome dela. Burro. Pato. Foi um litígio fácil. Para ela. O garoto, que então percebi nunca ter estado verdadeiramente próximo a ele, mostrou-se mais esperto do que eu me ufanava. E, agora rapaz, ficou ao lado da força. Com Maria Cristina e o deputado. Sim, o mesmo.


Agora olho para o céu e a vejo passar. Ajoelho e formulo aos brados o meu petitório. Passa um casal de namorados na pracinha da periferia. Ele interrompe as juras de amor entremeadas de solicitações sensuais que sei estar fazendo, pois o percebo na rigidez de seus bicos sob a javanesa o quanto sua nuca e colo se arrepiam, olha para mim e comenta com ela: “Bêbado imbecil. Fazendo pedido para bala traçante...” e seguem para o pipoqueiro.

Estou cheio, da vida.


“And now, the end is near;
And so I face the final curtain...”

DENTRO DA NOITE



— Então causou sensação?
— Tanto mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela coitadita! parecia louca por ti e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora... Evidentemente havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo geral é contra o teu procedimento.
— Contra mim?
Podia ser contra a pureza da Clotilde.
Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, às onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio com o ar desvairado...
— Eu tenho o ar desvairado?
— Absolutamente desvairado.
— Vê-se?
— É claro. Pobre amigo! Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura fria, e com um olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá. Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queirós, o mais elegante artista desta terra, num trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso?
O trem rasgara a treva num silvo alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes das casas ainda abertas, os silvedos
empapados d'água e a chuva lastimável a tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da banqueta próxima - o que falava mais - dizia para o outro:
— Mas como tremes, criatura de Deus! Estás doente?
O outro sorriu desanimado.
— Não; estou nervoso, estou com a maldita crise.
E como o gordo esperasse:
— Oh! meu caro, o Prates tem razão! E teve razão a família de Clotilde e tens razão tu cujo olhar é de assustada piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado.
— Mas que é isto, Rodolfo?
— Que é isto! É o fim, meu bom amigo, é o meu fim. Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te da Jeanne Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos convidava para as fumeries de ópio? Sabiam ambos que acabavam a vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar com um homem que se sente doido.
— Tomas morfina, agora? Foi o desgosto decerto...
O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais - a não ser eu, e eu dormia profundamente... Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de explicações.
— Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a que amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio mulher - a beleza dos braços das Oreadas pintadas por Botticelli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beijá-los, de acariciá-los, mas principalmente de fazê-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, apertá-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los... Por quê? Não sei, nem eu mesmo sei - uma nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer O desejo, porém, ficou, cresceu, brotou, enraizou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espetá-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de cosê-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne que havia de sentir.
— Que horror!
— Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauterie da viscondessa de Lajes, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços - oh! que braços, Justino, que braços! - estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me: "Rodolfo, que olhar o seu. Está zangado?" Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. - "Oh! não! fiz. Estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço." Sabes como é pura a Clotilde. A pobrezita olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: - "Se não quer que eu mostre os braços por que não me disse há mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado?" - "É , é isso, Clotilde." E rindo - como esse riso devia parecer idiota! - continuei: "É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete." — "Está louco, Rodolfo?" — "Que tem?" — "Vai fazer-me doer" — "Não dói." — "E o sangue?" — "Beberei essa gota de sangue como a ambrosia do esquecimento." E dei por mim, quase de joelhos, implorando, suplicando, inventando frases, com um gosto de sangue na boca e as fontes a bater, a bater... Clotilde por fim estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir Ah! meu caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo, de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro: "Bem. Rodolfo, faça... mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto!". E os seus dois braços tremiam.
Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente: "Mau!"
— Ah! Justino, não dormi. Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que prazer tremendo! E apertando os varões da cama, mordendo a travesseira, eu tinha a certeza de que dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo em que forçava o pensamento a dizer: nunca mais farei essa infâmia! todos os meus nervos latejavam: voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer! Era o delírio, era a moléstia, era o meu horror..
Houve um silêncio. O trem corria em plena treva, acordando os campos com o desesperado badalar da máquina. O sujeito gordo tirou a carteira e acendeu uma cigarreta.
— Caso muito interessante, Rodolfo. Não há dúvida de que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de S. Francisco de Assis também é degeneração e o amor de Santa Tereza não foi outra coisa. Sabes que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? É mais um tipo a enriquecer a série enorme dos discípulos do marquês de Sade. Um homem de espírito já definiu o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. É um Jack hipercivilizado, contenta-se com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes.
O outro resfolegava, com a cabeça entre as mãos.
— Não rias, Justino. Estás a tecer paradoxos diante de uma criatura já do outro lado da vida normal. E lúgubre.
— Então continuaste?
— Sim, continuei, voltei, imediatamente. No dia seguinte, à noitinha, estava em casa de Clotilde, e com um desejo louco, desvairado. Nós conversávamos na sala de visitas. Os velhos ficavam por ali a montar guarda. Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o sofá. Logo ao entrar tive o instinto de que podia praticar a minha infâmia na penumbra da sala, enquanto o pai conversasse. Estava tão agitado que o velho exclamou: — "Parece, Rodolfo, que vieste a correr para não perder a festa."
Eu estava louco, apenas. Não poderás nunca imaginar o caos da minha alma naqueles momentos em que estive a seu lado no sofá, o maelstrom de angústias, de esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu senti saltar-me à garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir... Quando ao cabo de alguns minutos acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa carícia lenta que subia das mãos para os ombros, entre os dedos senti que já tinha o alfinete, o alfinete pavoroso. Então fechei os olhos, encolhi-me, encolhi-me, e finquei. Ela estremeceu, suspirou. Eu tive logo um relaxamento de nervos, uma doce acalmia. Passara a crise com a satisfação, mas sobre os meus olhos os olhos de Clotilde se fixaram enormes e eu vi que ela compreendia vagamente tudo, que ela descobria o seu infortúnio e a minha infâmia. Como era nobre, porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça. Que se havia de fazer?...
Então depois, Justino, sabes? foi todo o dia. Não lhe via a carne mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: - "Fez sangue, ontem?" E ela pálida e triste, num suspiro de rola: "Fez"... Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem, se ferira bem, se estragara bem! E no quarto, à noite, vinham-me grandes pavores súbitos ao pensar no casamento porque sabia que se a tivesse toda havia de picar-lhe a carne virginal nos braços, no dorso, nos seios... Justino, que tristeza!...
De novo a voz calou-se. O trem continuava aos solavancos na tempestade, e pareceu-me ouvir o rapaz soluçar. O outro porém estava interessado e indagou:
— Mas então como te saíste?
— Em um mês ela emagreceu, perdeu as cores. Os seus dois olhos negros ardiam aumentados pelas olheiras roxas. Já não tinha risos. Quando eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo de espaçar a hora do tormento. Era a mãe que a ia buscar. "Minha filha, o Rodolfo chegou. Avia-te." E ela de dentro: "Já vou, mãe". Que dor eu tinha quando a via aparecer sem uma palavra! Sentava-se à janela, consertava as flores da jarra, hesitava, até que sem forças vinha tombar a meu lado, no sofá, como esses pobres pássaros que as serpentes fascinam. Afinal, há dois meses, uma criada viu-lhe os braços, deu o alarme. Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa onda de soluços. Nessa mesma tarde recebi uma carta seca do velho desfazendo o compromisso e falando em crimes que estão com penas no código.
— E fugiste?
— Não fugi; rolei, perdi-me. Nada mais resta do antigo Rodolfo. Sou outro homem, tenho outra alma, outra voz, outras idéias. Assisto-me endoidecer Perder a Clotilde foi para mim o soçobramento total. Para esquecê-la percorri os lugares de má fama, aluguei por muito dinheiro a dor das mulheres infames, freqüentei alcouces. Até aí o meu perfil foi dentro em pouco o terror As mulheres apontavam-me a sorrir, mas um sorriso de medo, de horror.
A pedir, a rogar um instante de calma eu corria às vezes ruas inteiras da Suburra, numa enxurrada de apodos. Esses entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de nojo assustado diante do ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso. Dei então para agir livremente, ao acaso, sem dar satisfações, nas desconhecidas. Gozo agora nos tramways, nos music-halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas. E muito mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa. Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem doentes.
A voz do desvairado tomara-se metálica, outra.
De novo porém a envolveu um tremor assustado.
— Quando te encontrei, Justino, vinha a acompanhar uma rapariga magrinha. Estou com a crise, estou... O teu pobre amigo está perdido, o teu pobre amigo vai ficar louco...
De repente, num entrechocar de todos os vagões o comboio parou. Estávamos numa estação suja, iluminada vagamente. Dois ou três empregados apareceram com lanternas rubras e verdes. Apitos trilaram. Nesse momento, uma menina loira com um guarda-chuva a pingar, apareceu, espiou o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé logo.
— Adeus.
— Saltas aqui?
— Salto.
— Mas que vais fazer?
— Não posso, deixa-me! Adeus!
Saiu, hesitou um instante. De novo os apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando rangeu por sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira, correu para o vagão onde desaparecera a menina loira. Logo o comboio partiu. O homem gordo recolheu a sua curiosidade, mais pálido, fazendo subir a vidraça da janela. Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava incapaz de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no outro vagão, no que estava a menina loira. Mas o comboio rasgara a treva com o outro silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente. Através das vidraças molhadas viam-se numa correria fantástica as luzes das casas ainda abertas, as sebes empapadas d'água sob a chuva torrencial. E à frente, no alto da locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme sino reboava, acordando a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraça e de delírio.

21 maio 2006

s


O GRANDE REBU DA MACONHA
(do livro: Fabulário Geral do Delírio Cotidiano)

uma noite destas fui a uma reunião - em geral, o tipo do troço chato pra mim. sou, essencialmente, um solitário, um velho beberrão que prefere beber sozinho, talvez com a única esperança de escutar um pouco de Mahler ou Stravínsky no rádio. mas lá estava eu no meio da turba enlouquecedora. não vou explicar o motivo, pois isso já é outra história, talvez mais longa, e mais confusa ainda, porém, ao ficar ali parado, tomando meu vinho, ouvindo o The Doors, os Beatles ou o Airplane, misturados com todo aquele vozerio, percebi que precisava de um cigarro. estava a zero. como sempre, aliás. aí vi aqueles 2 rapazes por perto, braços caídos e oscilando; os corpos frouxos, feito gansos; pescoços girando; os dedos das mãos à vontade - em suma, pareciam feitos de borracha, um elástico que se esticava, puxava e partia. cheguei perto:

- ei, caras, um de vocês tem cigarro?

foi o que bastou pra borracha começar a saltar. fiquei ali parado, olhando, enquanto se entusiasmavam, estalando os dedos e batendo palmas.- aqui ninguém fuma, bicho! BICHO, a gente não ... fuma.- não, bicho, a gente não fuma, não desse tipo, não, bicho.flipflop. flipflap. que nem borracha.- nós vamos pra M-a-li-buuu, cara! é, nós vamos pra Malfii-bUUUU! bicho, nós vamos pra M-a-li-buuuuuu!- é isso aí, cara!- é isso aí, bicho!flípflap. ou, flapflap.

não podiam me dizer simplesmente que não tinham cigarro. precisavam me impíngir aquele lance de religião: cigarro era pra gente careta. estavam indo pra Malibu, pra algum lugar onde iam "ficar numa boa", curtindo um pouco de erva. faziam lembrar, em certo sentido, essas velhinhas paradas pelas esquinas, vendendo "0 Atalaia". essa turma toda que vai de LSD, STP, maconha, heroína, haxixe, e remédio pra tosse, sofre da comichão d`O Atalaia": você tem que estar na nossa, cara, senão sifu, tá fora. esse lance é permanente e, pelo visto, uma OBRIGAÇÃO com quem usa esses baratos. não admira que a toda hora vão em cana - não sabem ser discretos - com o que lhes dá prazer; têm que APREGOAR que estão por dentro. e, o que é pior, tendem a ligar isso com a Arte, o Sexo, com o ambiente de Protesto. o Deus do Ácido deles, Leary, lhes diz: "desistam da luta. me sigam." aí aluga um auditório aqui na cidade e cobra 5 pratas por cabeça de quem quiser ouvir ele falar. depois chega Ginsberg, junto com ele. e proclama que Bob Dylan é um grande poeta. autopropaganda dos que ganham manchetes posando de maconheíro. América.

mas mudemos de assunto, porque isso também já é outra história. este negócio, do jeito que eu conto, e do jeito que é, tem braços à beça e pouca cabeça. mas, voltando aos rapazes que estão na crista da onda, os cucas de maconha. a linguagem que usam. chocante, bicho. tem tudo a ver. o pedaço. maneiro. bacana. cafona. careta. embalo. de repente. xará. coroa. por aí, e não sei mais o quê. já ouvi essas mesmas frases - ou seja qual for o nome que se queira empregar - quando tinha 12 anos em 1932. deparar com tudo isso de novo, 25 anos depois, não contribui muito pra se simpatizar com o usuário ' ainda mais quando considera que são o que pode haver de atual. grande parte dessa gíria se deriva do pessoal que usava drogas da pesada, a turma da colher e da agulha, e também dos velhos músicos negros das orquestras de jazz. a terminologia dos que estão de fato "por dentro" já mudou, mas os pretensos modernosos, como dupla a quem pedi cigarro - esses ainda falam no estilo de 1932.

e essa história de dizer que quem fuma maconha acaba produzindo arte, é, no mínimo, duvidosa. De Quincey escreveu coisas bem razoáveis, e "O comedor de ópio", apesar de ser leitura muito agradável, tem trechos do maior tédio. e está na índole de quase todos os artistas tentar quase tudo. são curiosos, desesperados, suicidas. mas a maconha vem DEPOIS que a Arte já está ali, que o artista já existe. não é ela que produz a Arte. mas se torna, com freqüência, o pátio de recreação do artista consagrado, uma espécie de comemoração da vida, essas festinhas de embalo, e, também um campo de observação, bom pra cacete, pro artista surpreender as pessoas com a calça espiritual arriada ou, se não, tanto menos resguardadas.

na década de 1830, as festinhas de embalo e orgia sexual de Gautier eram o assunto de Paris. todo mundo também sabia que Gautier escrevia poemas nas horas vagas. hoje, as festas é que são relembradas.

saltando pra outro braço desta história: não ia gostar nem um pouco de ir em cana por uso e/ou porte de erva. seria o mesmo que ser acusado de estupro por cheirar calcinha no secador da vizinha. a erva, simplesmente, não é tão boa assim. a maior parte do efeito é causada pela predisposição mental de acreditar que a gente vai entrar numa boa. se fosse substituída por outro macete, que não fosse droga, mas tivesse o mesmo cheiro, a maioria dos usuários acabaria sentindo efeitos idênticos: "ei, xará, isto é troço FINÍSSIMO, material de primeira!"

quanto a mim, prefiro cá as minhas cervejinhas, não me meto com sujeira não por causa da polícia, mas porque esse negócio me chateia e causa pouco efeito. admito, no entanto, que o barato provocado pelo álcool e por dona "mary" seja diferente. é possível ficar alto com a erva e nem sentir; com a birita a gente, em geral, sabe muito bem o que está fazendo. eu, sou da velha guarda: gosto de saber o que faço. mas se você preferir maconha, ácido ou seringa, não tenho nada contra. o problema é seu e, se achar que assim é que deve ser, tudo bem assunto encerrado.

já basta o número de comentaristas sociais de escasso QI que existe por aí. por que deveria acrescentar o meu sarcasmo privilegiado? que não ouviu ainda essas velhas que vivem dizendo: "oh, acho simplesmente ATROZ o que essa juventude anda fazendo por aí, com todas essas drogas e sei lá mais o quê! que coisa horrível!" e aí a gente olha pra ela: sem olhos, sem dentes, sem cérebro, sem alma, sem bunda, sem boca, sem cor, sem ânimo, sem humor, sem nada, apenas um sarrafo ambulante, e a gente fica pensando o que o chá com bolinhos, a igreja e a bonita casa de esquina fizeram por ELA. e os velhos às vezes ficam bem agressivos com o que uma parte da juventude anda fazendo - "que diabo, trabalhei DURO a vida inteira!" (eles acham que isso constitui uma virtude, quando a única coisa que prova é que o sujeito não passa de um perfeito idiota) "esse pessoal quer ganhar tudo sem fazer NADA! passando o tempo todo sentado pelos cantos, estragando o corpo com drogas, esperando viver às custas da riqueza da terra!"

aí a gente olha pra ELE:que dúvida.está só com inveja. foi tapeado. perdeu os melhores anos se fodendo todo por aí. o que gostaria, mesmo, era de cair na gandaia. se pudesse recomeçar a vida. só que não pode. por isso agora quer que os outros sofram como ele sofreu.

e, de modo geral, é isso aí. o pessoal da maconha faz um bicho de sete cabeças com essa porra de erva e o público não fica atrás. e a polícia não tem mãos a medir, levando em cana e crucificando tudo quanto é maconheiro que lhes cai nas garras, e a bebida é permitida por lei até que a gente bebe demais, é preso na rua e aí então vai pra cadeia. pode se dar o que se quiser pra raça humana que ela acaba esgravatando, arranhando, vomitando e mijando em cima. se legalizarem a maconha, os e.u.a. ficarão mais cômodos, mas não muito melhores. enquanto houver tribunais, prisões, advogados e leis, serão utilizados.

pedir a eles pra legalizar a maconha equivale a pedir pra que passem manteiga nas algemas antes de colocá-las na gente. o que está te incomodando é outra coisa - por isso você recorre à maconha ou ao uísque, aos chicotes e roupas de borracha, ou músicas estridentes tocadas num volume tão alto que, porra, nem dá pra pensar. ou a hospícios, bucetas mecânicas ou 162 partidas de beisebol por temporada. ou ao vietnã, israel ou ao medo de aranhas. o amor da gente lavando a dentadura postiça amarelada na pia antes da foda.

existem respostas fundamentais a questões delicadas. nós ainda estamos brincando comas segundas porque não somos suficientemente homens nem suficientemente francos pra dizer o que precisamos. durante séculos julgou-se que talvez fosse o Cristianismo. depois de lançar os fiéis aos leões, permitimos que nos lançassem aos cachorros. pensou-se que o Comunismo pudesse ser um pouco melhor pro estômago do homem comum, mas pouco fez por sua alma. agora brincamos com drogas, supondo que há de abrir novos horizontes. o Oriente vem usando isso há mais tempo que a pólvora. descobriram que sofrem menos e morrem mais. maconhar ou não maconhar. "nós vamos pra M-a-l-i-buuu, cara! é, nós vamos pra MALLLLL-i-bUUUUU!"

com licença, vou enrolar um pouco de Bull Durham.quer dar uma tragada?

Charles Bukowski

SUICÍDIO
(Rose Amaral)


Decidir morrer é uma coisa séria. E, decididamente, não é todo mundo que tem um motivo tão forte e importante que o faça entregar a vida por tal causa. A maioria das pessoas não tem uma causa pela qual decida morrer.

As pessoas simplesmente vivem suas vidas, suas dores, suas frustrações, suas perdas até que ganham mais vida, mais força, mais experiência.

Mas, para quem quer morrer essa conversa é tola e desnecessária. Necessário, então, já que o indivíduo decidiu partir dessa para uma pior, é fazê-lo bem feito.

Embora seja muito difícil que um suicida pense no bem estar dos outros, pelo menos quanto à “sua” maior decisão, deveria tratá-la com carinho e inteireza; e não deixar para quem fica, uma série de providências que poderiam ser realizadas pelo próprio interessado.

Ao decidir morrer deveria, ao menos, providenciar a compra do caixão e utilizar-se de métodos auto-exterminantes que não dêem trabalho de limpeza. Ficar limpando a meleca de sangue para todo lado ou juntar miolos ensangüentados pelo chão, é desagradável. Principalmente, se for o chão da sala de visita e o velório for na própria casa; isso demanda urgência na faxina. É tão chato quanto ter quer sair de casa para reconhecer um corpo esborrachado no passeio sob um prédio alto, com a fuça toda deformada ou achatada no chão; coisa feia e muito desagradável.

Seria interessante o suicida escolher e vestir a roupa que vai ser enterrado, posicionando-se adequadamente dentro do caixão. Que o feche ele mesmo e aguarde com calma e deleite o momento tão esperado; afinal, não é o que tanto quer? Também já poderia deixar marcados e pagos o velório e a missa de sétimo dia, caso queira.
Tudo isso facilita muito a vida dos mais chegados e gera um clima de agradecida simpatia nos convidados.
É muito ruim, apesar de cômodo, que uma pessoa saiba que vai para outro lugar e deixe tudo bagunçado para outros arrumarem; dá uma impressão negativa de egoísmo.

Se não foram dignos da vida, que sejam dignos da morte que escolheram.

Se a vida não conseguiu lhes dar o que queriam, quando, como e onde queriam, por que não tratar bem a morte, que lhes dará o que tanto desejam?... O alívio de seu sofrimento!

Por que falo de suicídio? Porque esse é um assunto interessante. Existem algumas causas de suicídio que eu realmente respeito. A exemplo: aquele que é cometido de acordo com a crença ou convicção religiosa ou cultural do indivíduo. A outra é o resultado de uma terrível desordem bioquímica no cérebro do indivíduo que o deixa realmente incapaz de saber o que está fazendo, devido à impossibilidade ou deficiência neurotransmissora; caso raro...

Por outro lado, tenho notícias e experiência de indivíduos que não suportaram seu sofrimento e tentaram buscar alívio na morte. Se conseguiram ou não ter paz e alívio do sofrimento, nunca soube porque os que se foram não voltaram para dizer o que existe do lado de lá; os que ficaram acham que foram ridículos, que não se gostavam e que sofriam demais porque a vida não era como eles queriam.

Uma frase bastante repetida por esses candidatos à morte é: - “Eu não aceito isto, não aceito aquilo, não aceito...”. Ora, a vida não pergunta a ninguém se aceita ou não o que ela dá. Não pede permissão para aquilo que deve acontecer. As coisas acontecem por algum motivo e, muitas vezes, esses motivos são provocados pelos próprios sofredores.

Esses inconformados são também muito comodistas, não ousam mudar a situação ou a si mesmos. São grandes autoritários que não conseguem ser melhores do que exigem que os outros sejam. Sofrem muito, por vezes, não suportam estar consigo mesmos; tentam se matar e tentam levar os outros em suas próprias teias e infernos.
Muitos insinuam que mudar a eles mesmos e não os outros é impossível, preferível morrer!

E, assim, são dignos da própria arma que usam: a dó. Vampiros energéticos e tentadores do controle alheio sentam-se na poltrona da dominação. A – DÓ – MINA – A - AÇÃO: é assim que querem paralisar aqueles que escolhem ser livres e felizes fora de seus territórios afetivos ou de interesse exclusivo.

Não os considero pequenos, considero-os grandes antipáticos, grandes mesquinhos que passam a atormentar os outros com seus tormentos. Desejam ser amados, emburrados como são; mas não amam os outros como os outros são. Querem, desejam, exigem sem fazer qualquer movimento produtivo.

Cazuza fez uma música chamada Blues da Piedade, bastante apropriada:
“Agora eu vou cantar pros miseráveis que vagam pelo mundo derrotados...
querendo sempre aquilo que não têm.
Vamos pedir piedade pra essa gente careta...
que estão no mundo e perderam a viagem...
pra quem fica esperando alguém que caiba nos seus sonhos...
como insetos em volta da lâmpada.
Somos iguais em desgraça...
(Vamos pedir piedade)
pra quem vê a luz e não ilumina suas mini-certezas...
e não muda quando é lua cheia...”.


Nem quando a lua é cheia, nem quando o sol brilha, nem quando o pôr-do-sol é deslumbrante. Aliás, não conseguem realmente ver nada, a não ser suas próprias satisfações, interesses, incômodos, frustrações, decepções, desilusões.

Agarrados à dor, fazem amor com ela e pactos diabólicos com o sofrimento. Pobres diabos, mesmo; que se sentirão muito bem na companhia dos grandes demônios que tanto os excita, e de quem cuidarão por tanto tempo quanto foi o da tentação de se matar (não se preocupem, suicidas, isso foi apenas uma metáfora, nada importante...).

Por fim, acho incrível essa idéia que os suicidas têm de que se matando asseguram o fim do sofrimento e garantem a paz que tanto desejam (de onde será que saiu isso?). Incrível que pensem que seus fantasmas ficarão na lembrança de outros por muito tempo (mais depressa do que imaginam serão esquecidos, felizmente).

Incríveis suas idéias de que cometendo suicídio vingarão os outros pelo fato de não terem recebido aquilo que eles mesmos não conseguiram dar a si mesmos.

Mas, de tudo, o mais importante é lembrar as sugestões aqui feitas para aqueles que querem morrer. Tudo bem que morram, que curtam essa antipatia, mas, por favor, que também tentassem facilitar a vida das pessoas que querem e gostam de viver.

COMO CAÇADA PANTANEIRA
(Alexandre Campinas)
Estávamos todos ali. Uns sete ou oito iguais a mim em ambiente tão inóspito para nós, desadaptados bípedes, mamíferos terrestres. Flutuávamos em emoção, desajeitados no infinito manancial das possibilidades que ali estavam. À nossa escolha.

O duro era isto. A opção era a nossa maior inimiga, tínhamos que bem escolher a caça para não desaguarmos em nada. Em vergonha. Sem troféu que exibir, ou pior: prostados no solo, arranhados no ego, esmagados pela dor acachapante da falha.

Escolher qual ? Que presa seria a melhor, a mais meritória, a mais vistosa ? Esquerda, direita, boiávamos sem tino nem destino naquela situação. Em qual buscaríamos, acharíamos a gloriosa certeza de um desfecho perfeito ?

Mergulhei naquele ambiente. Estava bem fundo, de olhos abertos, assustados, temerosos olhos, diante da imensa responsabilidade de não falhar naquela primeira incursão no desconhecido. Súbita falta de ar rompeu a lógica do raciocínio e trouxe-me à tona de meus pensamentos: novamente. Não deixaria passar novamente a presa, não passaria nem uma mais, qualquer uma. Nada mais escaparia impune a minha frente.

E foi assim que a fera veio subindo, subindo, enchendo-se, agigantando-se, desafiando-me. Quase me alcançando, fiz a força de meus bíceps trabalharem, tomei-a para mim. Cavalguei socando esporas. Estirei os braços a frente do rosto, pernas hirtas e, com inteligência, usei sua própria força para subjugá-la.

Pronto. Estava feito. Que me importava o inevitável caixote no qual imediatamente em seguida meteria-me, que me importava o salgado areal na boca, ouvidos e narinas ? Peguei. Eu peguei !

Foi assim que aconteceu quando levantei, arranhado e orgulhoso, na arrebentação, de plena posse do meu primeiro jacaré em Copacabana.


“Existem praias tão lindas, cheias de luz. Nenhuma tem o encanto que tu possúis ...”

01 maio 2006


COISAS DE HOTEL
(Luiz Vilela)

Era meu vizinho, morava no quarto ao lado. Hoje, de manhã, quando a servente veio fazer a limpeza, encontrou-o morto. Eu não estava na hora, já tinha saído para o trabalho; e de tarde, quando cheguei, já tinham levado o corpo. Morreu durante a noite. Parece que ainda não sabem se foi morte natural ou suicídio.

Ele chamava-se João. Até ontem eu pensava que o seu nome fosse Alberto. Deve ser porque alguma vez ouvi, por engano, alguém se referir a ele com esse nome. Não me lembro de quem ou quando foi, mas só pode ser, porque nunca conversamos e ele nunca teve a oportunidade de me dizer o seu nome, ou eu de perguntar. Apesar de vizinhos, nunca fomos um ao quarto do outro. Mas isso não tem nada de mais, é uma situação comum num hotel; há pessoas que passam anos morando em quartos vizinhos e às vezes não trocam nem mesmo uma palavra.

Havia talvez mais de ano já que ele morava aqui. Lembro-me dele no hotel há um bom tempo, embora não me recorde exatamente da primeira vez em que o vi. A não ser quando é uma pessoa com alguma característica marcante, a gente não presta muita atenção nos hóspedes novos; uma hora a gente cruza no corredor e observa que a pessoa é nova no hotel, mas pode ser que antes disso, ontem ou anteontem, já tenhamos passado por ela mais de uma vez e nem reparado. É que há sempre gente chegando e saindo, e quem já mora no hotel há mais tempo se acostuma com esse movimento.

Ele era uma pessoa comum, não se distinguia por nada. A velha do trinta e quatro, por exemplo: esta, desde o primeiro dia em que a vi me chamou a atenção, com aquele vestido quase batendo nos pés, o coque, e a cara fantasmagórica. Até hoje, quando passo por ela, ainda a observo — de maneira discreta, evidentemente. Mas ele, não. Lembrando-me agora das vezes em que o vi, que cruzei com ele no corredor, sei dizer que ele era de estatura média, idade mais ou menos de uns trinta anos, o andar lento, sempre de terno escuro e gravata. Pouco mais do que isso eu poderia dizer. E não falo assim da cor dos olhos, ou, por exemplo, se ele tinha alguma cicatriz no rosto; falo de sua aparência. Era uma pessoa alegre? Triste? Preocupada? Não saberia dizer; pelo menos, com segurança. Cumprimentávamo-nos, e posso dizer que ele era uma pessoa educada. Mas não me lembro de alguma vez que ele tenha me sorrido, além desse vago sorriso que acompanha um bom-dia ou um boa-noite. Mas nem por isso, também, tinha cara de poucos-amigos. A impressão que me fica dele, agora que ele está morto e que me lembro das vezes em que o vi, é a de uma pessoa simpática, educada, calada.

Chego a pensar que poderíamos ter sido bons amigos. É um pensamento que me vem agora dessas impressões; na verdade, não há nada que me garanta isso, pois eu não sabia, nem sei ainda, praticamente nada a respeito dele. Nem o seu nome eu sabia... Julgo pelas impressões. É uma pessoa de quem eu teria prazer em me aproximar e puxar conversa, tornar-me amigo. Quanto a ele, não sei, não posso ter idéia do que ele pensava em relação a mim. Mas imagino que ele me encarasse também com alguma simpatia, já que, pelo menos nas aparências, tínhamos alguma coisa em comum: esse mesmo jeito calado.

Penso tudo isso agora que ele morreu e que essas coisas não poderão mais acontecer. Mas, talvez, eu já pensasse antes; apenas não cheguei a expressá-lo claramente para mim, como faço agora. É que nunca dei maior atenção à coisa. Tenho a cabeça sempre muito cheia de preocupações. Meu serviço é muito absorvente; mesmo no hotel, quando chego à noite, é difícil pensar em algo que não esteja relacionado a ele. E quando isso me cansa ou aborrece, o que geralmente faço é ir a um cinema, ou então beber com algum amigo no bar. Se estou com preguiça de sair ou sem vontade, ligo o rádio e fico escutando música até vir o sono. Nunca, nessas ocasiões, pensei no vizinho.

Para dizer a verdade, era como se ele não existisse, ou que tanto fazia ele existir como não existir. Eu sabia que havia um outro quarto ao lado do meu e que nesse quarto morava outra pessoa que era aquele homem que eu via no corredor e cum primentava; mas nunca me pus a pensar detidamente nisso. Eu tinha, ali no hotel, o meu quarto para dormir; e fora, na rua, o serviço, os amigos e as diversões. Era isso o meu mundo. O homem do quarto vizinho não entrava nele; eu não sentia necessidade dele, e por isso não pensava nele. Pode ser que o mesmo acontecesse com ele: talvez também não sentisse necessidade de mim e não pensasse em mim.

Agora ele morreu, e penso nele; mas é apenas porque sua morte me impressiona. Pois, fico lembrando, ontem mesmo passei por ele e o cumprimentei — e agora ele está morto. Mas não sinto nenhuma espécie de tristeza. Não éramos amigos. Não chegávamos a ser nem mesmo conhecidos. Simplesmente vizinhos. Como já houve outros antes dele, de que ainda me lembro ou que já esqueci, e como haverá outros depois dele. Daqui a alguns dias, talvez até amanhã mesmo, outra pessoa virá morar no lugar dele. Há sempre gente procurando quartos, e o hotel não quer perder dinheiro.