Sign by Dealighted - Coupons and Deals

10 novembro 2006

O mijador noturno e as velhas do condomínio

(Mão Branca)

Ele morava sozinho, trabalhava até tarde e quando voltava para casa gostava de beber uma ou duas doses de cachaça, coisa fina, de Salinas, antes de dormir. Chapava o sono dos justos até as duas da manhã, quando, incondicionalmente, levantava noctâmbulo para fazer xixi.

Colocava o bingulim para fora e jorrava a cachoeira. Chhhh. A média era de quarenta e sete segundo. Quanto mais bebia, mais mijava.

Numa reunião do condomínio, as velhas do edifício se revoltaram.

- Não é possível. – Gritou dona Jô. – Precisamos punir esse miserável. Toda noite acordo com o barulho daquele homem horroroso urinando como um cavalo.

- É isso mesmo. – Concordaram outras sete senhoras. De onde surgiu tanta velha?

- Devemos impor a lei do silêncio noturno, - Dona Jô, a líder - proibindo urinadas barulhentas.

- E os peidinhos também. – Completou dona Tereza, que chegara agora e já tomava parte. As outras senhoras a olharam envergonhadas. – Ele solta uns peidinhos apertados durante o xixi. Prá, parará.

- Certo. – Contornou dona Jô. – A lei do silêncio abrange flatos repetidos.

- E peidinhos. – Lembrou dona Tereza.

- E peidinhos. – Assentiu a líder. – Vamos votar?

O homem leu no elevador a Ata: “Por sugestão das comissão das senhoras do Condomínio, foi votado e acordado que, após as dez horas da noite, toda urinada masculina deverá ser realizada sem barulho. As senhoras sugeriram que os homens, principalmente o do apartamento 505 – ele próprio – façam suas necessidades sentados no vaso sanitário” . Quase caiu para trás de susto e, recuperado, apoiou-se para rir do absurdo daquela convenção.

Bebeu o de sempre e foi dormir, mas preocupado em não fazer barulho quando acordasse para urinar. Sempre tivera esse hábito, levantava da cama e procurava o vaso sanitário de olhos fechados para soltar a urina. A única coisa que fazia conscientemente era tentar manter o jato no meio da água para ter certeza que não estava errando o alvo. Daí vinha o barulho.

Agora, as senhoras do condomínio queriam que ele parasse de mijar em pé para resignar-se sentado como uma dama. Jamais. Só mijava sentado quando evacuava.

Às duas, levantou-se, foi ao banheiro, soltou o xixi e respirou fundo, aliviado. Só então se lembrou das velhinhas do condomínio. Ela deviam estar com os ouvidos colados aos vitrôs de seus banheiros para ver se a ordem seria obedecida. Achou engraçado e soltou uma leve risada.

No dia seguinte, logo cedo, dona Tereza aprontou o maior escarcéu na casa do síndico.

- Ele riu. Gargalhou. – Falou exaltada. – O mijador está caçoando de nós.

- Isso mesmo. – Dona Jô foi a segunda a aparecer. – Está nos achincalhando.

Antes que as outras sete senhoras aparecessem, o síndico resolveu conversar com o morador do 505. Foi ao seu apartamento e relatou a situação.

- Desculpe-me, – Explicou o homem. – mas não consigo controlar. Quando vejo, já estou mijando.

- Então mije sentado! – Pediu o síndico.

- Mije você, oras. – Respondeu de bate-pronto. Fechou a porta, ofendido.

De noite, bebeu mais que o costume pois ficou chateado com a história. Que audácia! Com que autoridade queriam definir sua maneira de mijar? Enquanto remoia sua irritação, mandava a cachaça para dentro.

Acordou, como de costume, às duas. Foi trôpego para a privada mas não mijou, vomitou até as tripas. Arrotos entrecortavam o fluxo de bebida mal-digerida que escorria da garganta. Gemeu como um bebê durante o processo e acabou abraçado à privada até de manhã.

A campainha tocou. Arrastou-se até a porta. Ele sabia que era alguma das velhas, aquelas bruxas. A dor de cabeça da ressaca parecia rachar seu crânio. O sala girava enquanto ele tentava destrancar a porta. Pelo mal-estar que sentia, tinha certeza que não agüentaria mais desaforos e mandaria todos para os quintos dos infernos.

Era a dona Tereza. Com olhar de reprovação, trazia às mãos uma xícara coberta por um lenço.

- Veja você, em que estado se encontra. – Entrou pelo apartamento empurrando o combalido homem ao sofá. – Descanse. Beba isso. – Destampou a xícara. – É chá de boldo.

O homem bebeu um gole. Não entendia bem o que acontecia, mas sentiu-se melhor com o líquido quente.

- Está com dor de cabeça? – Perguntou dona Tereza, voltando da cozinha com um grande copo de água e uma novalgina. – Engula, encoste a cabeça e durma um pouco. – Antes de sair olhou para trás para conferir se tudo estava bem. – A ressaca vai passar.

O homem tirou uma soneca. Acordou com dona Jô o observando.

- Finalmente. – Sumiu pela cozinha e voltou com pães fumegantes numa cesta. – Coma o miolo, para limpar o estômago.

Naquela noite o homem não bebeu mas acordou às duas horas como de hábito. Foi ao banheiro, sonâmbulo. Puxou o pênis para fora e, de súbito, acordou por completo. Sentou-se no vaso sanitário e fez o serviço. Apagou a luz e voltou para a cama, sentindo-se muito bem.

- Boa noite. – Ele sonhou que ouviu saindo do vitrô de seu banheiro antes de dormir

27 outubro 2006



Há tantas coisas germinando na noite, que nem sei como enumerá-las. À noite nascem as revoluções tanto as que vão triunfar como as que só se realizam em pensamento, e são quase todas. Os revolucionários viram-se, inquietos, na cama. E também os que se converterão, pela manhã, a religiões novas. E os amorosos. Análises emocionais levadas ao extremo da tortura arrastam-se pela horas lentas da noite. Como a noite é rica! A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos.

Demétrio quis prolongar a noite obturando todas as frestas do quarto, para que não entrasse a luz. Luz não entrou. Demétrio gozou da noite plena, continuada, e todos os pensamentos lhe floresciam. Construiu sistemas filosóficos. A escuridão era propícia a teorias políticas. Nenhum crítico foi mais perspicaz do que Demétrio, na literatura e nas artes. Aquela noite era fantástica. Demétrio quis experimentar as sensações de horror, êxtase, humilhação, glória, poder e morte. Morreu, mesmo no escuro. Tendo sentido a morte em seu interior físico, não pôde mais tirá-la de si. É o único morto, conscientemente morto, de que já ouvi falar nesta vida. A noite é fantástica.

Contos Plausíveis, in Andrade, C. D. (1992): Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, pg. 1240.

Diálogo Filosófico (Carlos Drummond de Andrade)

  • As coisas não são o que são, mas também não são o que não são - disse o professor suíço ao estudante brasileiro.
  • Então, que são as coisas? - inquiriu o estudante.
  • As coisas simplesmente não.
  • Sem verbo?
  • Claro que sem verbo. O verbo não é coisa.
  • E que quer dizer coisas não?
  • Quer dizer o não das coisas, se você for suficientemente atilado para percebê-lo.
  • Então as coisas não têm um sim?
  • O sim das coisas é o não. E o não é sem coisa. Portanto, coisa e não são a mesma coisa, ou o mesmo não.

O professor tirou do bolso uma não-barra de chocolate e comeu um pedacinho, sem oferecer outro ao aluno, porque o chocolate era não.

Contos Plausíveis, in Andrade, C. D. (1992): Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, pg. 1261.




23 outubro 2006


Quando a literatura veste e dá contornos à filosofia. Entendeu, Señor Cornijo ?

UM APÓLOGO
(Machado de Assis)


ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a
agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

01 outubro 2006


SURDO MUDO
(Edwood Lautrec)

Muda nada, gira o mundo
Some o raso e vem o fundo
Muda o mundo, Cala o mudo
Fala nada , Falta tudo
Tudo nada, Mundo mudo
Falta fala, Surdo e mudo
Ouve nada, Mundo surdo
Fala tudo, Nada ouve
Surdo tudo, Mudo surdo
Vejo tudo, Cego nada
Vejo mundo, Nada muda
Calado não ouço, Vejo e não faço
Eixo quieto, para tudo, Mundo cego
Surdo e mudo.

09 setembro 2006

08 setembro 2006


QUALQUER UM
(Mão Branca)

- Não mato qualquer um. – Falei antes de qualquer coisa. O homem do outro lado da linha calou-se para me ouvir. – Preste atenção: só vou explicar uma vez! – Fiz uma pausa. – Você me dá todas as informações sobre o caso. Quero nomes, endereços e fatos. Vou investigar. Se o canalha que você quer morto realmente merecer morrer, eu me livro dele. Se não merecer, mato você por ser um filho da puta querendo matar gente inocente. Fui claro?
- Sim. – Sua voz era firme, bom indício.
- O pagamento será em dinheiro.
- Metade depois do serviço? - Perguntou o homem.
- E se eu resolver te matar, como vai me pagar?
Ele titubeou, finalmente.
- Certo. À vista.
- Conte-me tudo. – Pedi.
Disse chamar-se Alexandre Marques. Era engenheiro, dono de construtora, com um sócio que estava comendo sua mulher. Até então, nada de mais, só não é corno quem não sabe, eu jamais finalizaria alguém por traição. O problema era que os dois tramavam acabar com ele para ficarem com todo o empreendimento.
- A empresa é grande? – Quis saber o nível do meu contratante.
Falou-me o capital social. Milionário. Eram gentes de posse. Melhor assim, de pé-rapado eu tava de saco cheio.
Contou que descobriu a mulher e o amante contratando um assassino de aluguel para matá-lo, por isso resolveu me contratar para matá-los antes.
- Não sou um assassino de aluguel. – Retruquei. – Sou uma espécie de justiceiro. – Quase ri de mim mesmo, justiceiro? Que nada, eu matava por prazer mesmo, adorava ver os olhos da vítima tornarem-se turvos, a pupila dilatando sem sensibilidade à luz, a energia da vida fluindo livre do corpo maléfico e devasso.
- O assassino – Mudou o assunto – já deve estar atrás de mim.
Outro matador? Isso era perigoso. Qualquer cara com uma arma é um adversário a ser considerado. Pegar canalhas sexuais ou bandidos fuleiros era fácil, quase sempre estavam desarmados e morriam de medo dos meus trabucos, mas assassinos de aluguel eram normalmente ferozes e disciplinados, atacando de tocaia, sem misericórdia. Igual eu fazia.
- Como descobriu?
- Interceptei um telefonema ao matador. Meu sócio contava minha rotina.
Resolvi aceitar o caso.
- Esteja com meu pagamento na sexta-feira numa sacola plástica de supermercado ao lado do Pão de Açúcar do Lago Norte. – Expliquei uns detalhes e a hora e anunciei o montante. Ele nem se espantou, era rico. Eu havia multiplicado por quatro meu cachê. – Até lá seguirei as vítimas. Dê-me os endereços e horários.
Anotei e sai à caça. Morava o sócio no Lago Sul e meu contratante com a mulher no Park-Way, numa mansão de encher os olhos. Toquei a campainha e conversei com a empregada, uma mulatinha deliciosa.
- A patroa taí?
- Saiu com o doutor. – Brejeira, rebolava ao falar.
- E você, que horas sai? – Fiz meu olhar Dom Juan. Ela sorriu e respondeu. Zanzei pela vizinhança esperando o fim do expediente da empregada. Fumei um delicioso baseado pernambucano, bem verdinho, deixou-me bastante louco. Peguei a mulata em frente à mansão e demos um passeio. Em dois dias eu já era seu amante e sabia de tudo o que acontecia na casa.
Ela me contou que a patroa, Dona Irani, era meio vagabunda mas não parecia ter outro homem. Se tivesse, era bem discreta. O patrão, este sim, era enrolado até a cueca com outras mulheres.
Escondido no quarto da empregada, dormi na mansão no quarto dia. Sai durante a noite e xeretei nos telefones, nas agendas, nas carteiras, bolsas, gavetas, bolsos de roupas e até nos lixos. Pouco descobri, além de um número de telefone sem nome. Chamou-me a atenção pois era meu número antigo de celular, que eu havia trocado no sistema de rodízio que faço para nunca ser rastreado pela polícia. Sempre que mudava o número, ligava para os antigos contratantes para informar o novo celular e perguntar se alguém tinha “vendido” meus serviços, ou seja, encontrado algum novo canalha para eu apagar.
Pedi à Neide, a empregada, as contas de telefone da casa. Ela não aceitou a princípio, mas as flores com que a presenteei junto ao pedido fizeram-na ceder. Descobri que foi do telefone do patrão que saíram várias ligações para meu celular. Ele parecia já estar tentando me contatar há tempos.
Acessei a caixa de mensagens do antigo número:
- Preciso te contratar. – Escutei o patrão gravado na secretária eletrônica. – O marido da minha amante quer me matar. Retorne a ligação. – E citava um número desconhecido. Disquei para ele.
- Alô! – Disse um homem.
- Armando? – Perguntei.
- Não, aqui é Flávio.
- Armando Pinto?
- Ah, vá se foder! – Retrucou Flávio e desligou.
Perguntei à Neide quem era Flávio.
- Uai, - Ela sempre começava as frases com brejeirices. Gracinha. – é o sócio do patrão. – Olhou-me como se eu fosse um idiota. Comecei a achar que alguém realmente estava querendo me fazer de idiota.
Liguei mais uma vez para Flávio.
- Armando Pinto?
- Vá se foder! – Gritou Flávio.
- Aqui é o agente Horácio da Sexta Delegacia. Do Paranoá. – Metalizei a voz. – Há algum Armando Pinto que perdeu o telefone? Ou foi roubado? – Enfatizei a última parte.
- Sim, agente – Titubeou Flávio. – meu telefone foi roubado há uns meses, mas já apareceu. – Ouvi um sorriso simples. – Como por milagre.
- Exatamente quando o aparelho sumiu, senhor Armando? – Perguntei e ele me indicou uma data correspondente à que meu contratante havia ligado para meu número antigo. E disse o nome completo, Flávio Frias.
Se minha interpretação estivesse correta, e eu quase nunca me enganava, aconteceu que meu contratante roubou o telefone do sócio e ligou para um assassino de aluguel do próprio telefone, fazendo-se passar pelo sócio, para que o assassino retornasse a ligação no celular do sócio, assim ele próprio atenderia e acertaria o assassinato dele mesmo. Deixava tudo registrado nas contas. Não fazia sentido!

A não ser que ele próprio denunciasse tais ameaças à polícia e, quem sabe, contratasse outro matador para “fazer” o sócio antes de sofrer qualquer atentado. Desde o começo queria pagar só depois do serviço, ou seja, não queria pagar.
Liguei para a Sexta.
- Agente Horácio, por favor.
Um grito e ele atendeu.
- Faz uma pesquisa para mim? – Pedi. Concordou com um grunhido de “manda”. Falei sobre a ameaça a Alexandre Marques por parte de Flávio Frias.
- Tem registro sim. – Uns sons de teclado de computador – Ele contou que a mulher o trai com o sócio Flávio Frias e querem, em conluio, matá-lo para ficar com a empresa. – Horácio parecia ler o papel. – Assinado e registrado num BO.
Desliguei. Estava feito o esquema: meu contratante estava resguardado pelos próprios meninos da lei, vítima de ameaça pelo sócio que fodia sua mulher e trocava telefonemas com um possível matador de aluguel. O único erro que cometeu foi ligar para meu antigo número pelo próprio celular.
Pensei na “dona” Irani e em Flávio. Seriam mesmo amantes? Bem, tanto fazia. Que trepassem gostoso.
Na sexta-feira fui de moto ao Lago Norte. Estacionei na quadra 04 e atravessei a viela entre cercas de chapas de ferro até o Pão de Açúcar, lugar apertado de uns quatrocentos metros de extensão. Procurei pelo Baixinho, um moleque de rua. Logo apareceu.
- Ué? Cadê a moto?
- Hoje é diferente, Baixinho. – Expliquei que naquele dia ele não iria conferir o dinheiro e o levar para mim do outro lado da viela. Iria apenas conferir o dinheiro e me chamar ali mesmo.
- Duzentos? – Quis saber quanto iria ganhar pelo trampo.
- Quinhentos, meu chapinha. – Sorriu com os dentes perfeitos. Era de rua mas limpinho. E nada bobo.
O “doutor” Alexandre Marques, dono de empresa, rico, safado, tentou armar uma arapuca para se livrar da mulher e do sócio, ficando livre com toda a empresa. Iria conseguir perfeitamente seu intento, porém deu o azar de encontrar o matador errado. Provavelmente não acreditou em mim quando expliquei meus termos. Muitos possíveis contratantes desistem depois de ouvir meu discurso inicial. Ele provavelmente achou que fosse besteira ou, talvez, pagou para ver, imaginou que eu não fosse mesmo meter as caras na investigação. Ou que eu fosse burro.
Na hora marcada, início da noite, o engenheiro surgiu num Civic. Apontei-o com a cabeça, Baixinho disparou até o carro e soltou a matraca.
- O dinheiro tai, tio? – Enfiou a cabeça pela janela. – Cadê a sacola de supermercado? Anda, deixa eu ver. Abre. Tá armado, tio? Levanta as pernas. Levanta a camisa. – As ordens se sucediam. Era engraçado ver um marmanjo amedrontado com uma criança. – Abra o porta-malas. – Foi atrás conferir e olhou em minha direção. Confirmou com a cabeça.
O engenheiro estava tão certo que seu plano daria certo que foi entregar o dinheiro ao segundo matador sem nenhuma proteção. Pensou que só trataria com o moleque de rua como expliquei ao telefone. Azar o dele. Fui até o carro e entrei no banco de passageiro.
- Ai. - Ele se assustou. Foi engraçado.
- Calma. – Acendi o isqueiro e incendiei a ponta de um baseado paraguaio, do bom. – Sou eu. – Peguei o saco com o dinheiro. Nem conferi, confiei no Baixinho. Saquei cinco notas de cem e estendi para fora da janela. O moleque as pegou como um raio e sumiu no estacionamento. - Anda com o carro.
- Para onde?
- Só – Prendi a fumaça no pulmão. Saiu um barulho engraçado e um pouco de fumaça pelo nariz. – anda.
Ele saiu pelo Lago Norte, subiu a serra para Sobradinho, passou por Planaltina, seguiu para São João da Aliança e continuava calado. Eu fumava tranqüilamente, apontando as ruas a seguir. Até cumprimentei os canas da barreira policial. É impressionante o que o medo faz as pessoas aceitarem sem resistir, principalmente se o atacante está de luvas de plástico branco e um berro preto engatilhado.
- Para onde? – Finalmente perguntou. E ainda se repetiu.
- Para o inferno. – Nem me mexi no banco, para aumentar o efeito da frase. Notei que ele começou a tremer. Ri mentalmente. – Diminua. – Ele tirou o pé do acelerador. Logo paramos no acostamento. Virei-me e perguntei: - Você tentou me enganar?
- Pensei que aquele papo de justiceiro fosse brincadeira. – Falou com a voz firme. Havia recuperado a confiança. – Você vai me matar?
- O que você acha?
- Eu tenho muito dinheiro. – A voz estava inexpressiva, apenas constatava o fato. Para ele tudo se resumia aos valores sustentados pelo dinheiro. Honra e moral eram valores desconhecidos, esquecidos no velho mundo dos pais e avós, ou mesmo inaceitáveis na batalha diária pela sobrevivência no meio capitalista e portanto selvagem que se espalhou por todos os cantos. Com dinheiro resolveria qualquer problema, ninguém resistiria, afinal todos eram tão podres e mesquinhos que renegariam aos mais importantes valores em troca de aumentar os dividendos financeiros. Sendo rico, tinha o que quisesse.
- Eu tenho uma arma. – Apontei o trinta e oito para o nariz pequeno de Alexandre. Ficaria ainda menor com o estouro da bala. – Quer uma chance? Te dou uma chance. – Ele continuava impávido, porém o suor diminuiu. Eu sempre atentava para os detalhes, eles me previam as ações das vítimas. – Confesse.
- Como?
- Ligue agora para a polícia e confesse que você tramou a morte do seu sócio e da sua mulher. – Seus olhos perderam o foco, analisava as possibilidades. – Sim, você será preso, mas é melhor que morrer. – Ajudei em seus pensamentos.
- Certo. – Sacou o telefone e discou um número. – Aqui é Alexandre Marques. Quero confessar um crime.
Tomei o aparelho e desliguei.
- Tive uma idéia melhor. Vamos para a delegacia. – Sorri. – Sou policial. O senhor está preso!
Pareceu desabar o engenheiro, seus olhos brilharam. Sorriu, até. Viu-se apanhado numa armadilha da polícia para arrancar sua confissão.
- Sim. – Mantive o sorriso. – Saia do carro para ser algemado.
Ele contornou o Civic visivelmente feliz. Chegou-se para mim com as mãos estendidas.
- Pode algemar.
- Vire-se de costas, senhor. – Imaginei ver dúvida em seus olhos, mesmo assim ele se virou tranqüilamente e juntou as mãos às costas.
Acertei o tiro na nuca.
A bala saiu pelo rosto e o desfigurou. Caiu mortinho como desejou à própria esposa e ao sócio. Eu sentia algum remorso? Hum, não. Prazer? Hum, sim. Vergonha? Sim, principalmente por sentir prazer em estourar os miolos de um canalha e sem remorso algum. Nunca entendi essa minha compulsão.
Tirei as roupas do cadáver, guardei o relógio e a carteira e joguei tudo dentro do carro. O morto peladão deixei no banco de trás. A polícia acharia todo aquele sangue no carro e imaginaria que ele morreu. Voltei ao volante e andei com o carro. Já rodávamos na pista menos de três minutos depois que paramos no acostamento. Meu presunto estava nu e quase pronto para a desova.
Procurei a primeira estradinha perto do córrego Buritizinho. Entrei por uma picada de chão e desliguei os faróis. Andei vagarosamente, via pouco a frente. Logo parei o carro e arrastei o corpo para fora. Saquei o canivete e fiz dezenas de talhos na pele, abri a barriga e puxei fora o intestino e outros órgãos. Deixei tudo exposto à luz da lua. Naquela mesma noite todos os insetos da região se alçariam sobre o cadáver. Trariam bilhões de micróbios. De manhã estaria duro e seco, meio comido pelas formigas e ratos. Antes do meio dia estaria levemente decomposto. Ao cair da tarde seria atacado por urubus, musaranhas, gambás, até cachorros-do-mato, onças ou chupacabras, não importa, o certo é que na noite seguinte já será um monte de ossos espalhados pelo mato, que ficarão secos e quebradiços em poucos dias, graças ao sol e novamente aos insetos.
O casal jamais seria responsabilizado, sem cadáver não há crime, mesmo com os indícios do sangue no banco. Eu queria deixar claro para a família que não deveriam procurá-lo, ele já conversava com o capeta.
Voltei pilotando o carro com uma mão e outro baseado na outra. Antes havia queimado a carteira e espalhado as roupas pelo acostamento. Um homem sumia da face da terra.
Parei o carro no estacionamento do Pão de Açúcar, fechei-o com um bip, atravessei a viela e joguei a chave no quintal de uma casa. Cheguei na moto, soltei o capacete, montei e o celular tocou. Estranho, duas ligações num mesmo mês?
- Não mato qualquer um. – Falei antes de qualquer coisa.

07 setembro 2006

(Língua do cão - Cristiano Quintino)


POLILÍNGÜE
Minha língua pátria é presa
cercada de sanções, nações
corruptas e corruptoras.

Minha língua presa anseia a solta,
livre de imposições,
ágil e motora.

Minha língua solta é erótica:
espasmos após tensões.
Flerta, provocadora.

Minha língua erótica é ferina.
Cospe imaginações
E alguém ora: antiquelíngua fecundadora.

Minha língua ferina é frouxa.
Fala de arrebatações,
da vida viva e aterradora.

Minha língua frouxa se come
com batata, à portuguesa e com tesão;
com boca degustadora.

Minha língua multi-sabor é sempre suja
de violência e de paixão
entrega-se è outra, devoradora.

Minha língua suja disfarça-se em pê:
pêquer pêô pêcéu, pêchão.
É língua lúdica, voadora.

Minha língua do pê é feita de trapo,
que se esconde com exatidão
p’ra tocar, redentora.

Minha língua de trapo é língua de sogra:
faz festa, conselho e diversão.
Toca onde não se quer, desafiadora.

Minha língua é a língua do cão:
baba e lambe e late sem compaixão,
língua cachorra.

28 agosto 2006

"...fazer poema, lá na Vila,
é um brinquedo..."
(Palpite Infeliz - Noel Rosa)


O poeta, contista e publicitário Kinho Vaz
é um multi-criador carioca,
legítima cria de Vila Isabel.
Sua poesia gerou filhotes, que são
as caprichadas letras para as músicas
dos amigos compositores.

"Fazer o Quê?", composta em parceria
com Raquel Koehler, ocupa agora
o 1º lugar entre as "10 Mais Ouvidas da Semana"
do site do Clube dos Compositores do Brasil.

27 agosto 2006

Drogaria Granado - Tijuca / RJ - Foto de Giovanni Darienzo



CRÔNICA DO EXÍLIO
(Alexandre Campinas)


Valei-me por suas flechas, São Sebastião do Rio de Janeiro !


Essa cidade minha. Que me corta a alma a cada canção. Saudades que evocam toda a recordação de um tempo feliz. Uma vida feliz. Um passado cidade. De ônibus elétricos no subúrbio e mão firme de mãe na minha mão. Tempo de sonho e esperança, poesia e canção.


“Vamos carioca e sai do teu sono devagar. O dia já vem vindo e o sol já vai raiar.”


Vai raiar em Copacabana, em frente a Constant Ramos onde nos sentávamos meu avô e eu após a visita a colônia de pescadores. Ele a decepar e eviscerar peixes. Ali mesmo, em pleno calçadão. Eu, a sorver vida.


“São Jorge teu padrinho te dê cana pra tomar. Xangô teu pai te dê muitas mulheres para amar.”


Viva o Tom e a Miucha. Viva o poetinha. Viva o suburbano Aldir do Light e dessa deliciosa vida merda da qual eu também faço parte e adoro. Profundamente adoro. Barão de Drumond e Boulevard. Floresta de densa mata dos cantos e pássaros. Paineiras. Uma cascata escondida na curva que descortina a pintura da Lagoa, da Gávea e do campo do Flamengo nos fundos do Jóckei. Ou seria o Jóckei nos fundos do campo do mais querido ? Assim como fosse um quintal com cavalinhos...


Cidade eu sou perdidamente apaixonado por você. Eu sou você, sou meu pranto no Samba do Avião. Sou enlevo na Valsa de uma Cidade, sou cidadão ouvindo Cidade Maravilhosa. Te olho, suburbanamende tímido, do Excelsior e te exploro inteira, do Caju ao Maracanã. Da Central do Brasil ao Encantado, nome lúdico da infância vivida. Cidade que confunde a minha salgada saudade de lágrimas ao teu doce contorno mulher. Tenros seios, montanhas onde mama a minha dor. Boa dor de saber-se dono do que não é. Pipas na Ilha do Governador. Uma santa. Sensual e ondulada Teresa. Uma gente, Ipanema. Uma gente, Vila Valqueire. Iguais. Um povo todo irmão. Todo igual.


Outra ilha e a mais amada fantasia. Um baobá por Maria Gorda, a profunda raiz de Paquetá, inesquecível amor. Eterno amor. Da Ribeira ao Catimbáu, do Iate ao Municipal. Gostosa tatuagem da minha vida. Amada tortura a qual eu, órfão de ti, me submeto mergulhado em prazer e gozo.


Santa, curta, Sofia. Santo Afonso, de pé sobre o adro de seu templo, velando a minha Tijuca querida. Conjunção carnal de ruas, e cinemas que já não o são desembocando na praça de nome de herói sulamericano. Chafariz e ginasta. Café Palheta e longa tênia em tuas carnes.


Desejo de chegar-te de qualquer lugar, rodas baixando sobre a ponte. Renascer a cada toque suave na noturna e iluminada pista do Santos Dumont.

“... dizem que sou démodé, saudosista, blasé, retro... e eu sou ...”

(Os versos que aparecem entre aspas são de músicas de Vinícius de Moraes e também de Aldir Blanc)
CANALHA, UM ELOGIO DE PRIMEIRA
(Alexandre Campinas)

Antônio Carlos Magalhães não gostou
de uma crônica do escritor
e compositor Aldir Blanc,
publicada no JB.

O senador deixou a lógica de lado
e valeu-se - como sempre - da velha
tática do sofisma por ignorância de questão
aliado ao xingamento reles.

Truculento, deselegante e com a usual sutileza de um estouro de manada de aliás no cio, chamou o genial carioca de canalha.

Na impossibilidade do JB (não quis) publicar a crônica-resposta do Aldir, a
comunidade Aldir Blanc no Orkut, e vários blogs de admiradores e companheiros
fazem o desagravo na rede.

Os blogs

Cartas de Hades e Reino de Hades (Mariana Blanc)
São Coisas Nossas
Pentimento e
Buteco do Edu

já publicaram. Agora e a vez do Quintal Literário.

Jogo feito:


"BOLÔ-FEDEX

Leva, meu samba, meu mensageiro, esse recado...


O Sena-Sênior ACM, vulgo Malvadeza, me acusou de ser “um elemento lulista infiltrado” no JB. E concluiu seu arrazoado (?) me chamando de canalha.


Senadô-Skindô, por mais que eu viva nenhum elogio me trará orgulho maior do que ser chamado de canalha por V. Excrescência. Quem lê minha coluna sabe que o pau canta à direita, à esquerda e, claro, no centro, com igual prodigalidade. Espero que a grande famiglia pefelista já tenha providenciado junta médica competente para lubrificar os parafusos do Cacicão. A julgar pelas suas mais recentes declarações, as encrencagens, desculpem, engrenagens, estão precisando de uma lubrificada urgente: ginkgo biloba, piracetan, talvez um viagrinha... O senador, craque em prestidigitação, mais uma vez misturou as bolas: combatividade é muito diferente de baba paranóica escorrendo gravata parlamentável abaixo.


A ojeriza é mútua. Estou farto de maquiavelhos de fraldão deitando regras. Toda essa mixórdia envolvendo valeriodutos, mensaleiros, sanguessugas e saúvas, começa com políticos da sua estirpe. O mecanismo é manjado. Se as denúncias favorecerem meu partido, palmas, vamos apurar. Agora, se a canoa virar, o denunciante passa a bandido e fim de papo, vai ser preciso buscar a propina em outro guichê. A máscara-de-pau que descrevo acima é suprapartidária. Os que não a exibem são as exceções que confirmam as regras vigentes. Quando as regras rompem os diques e escorrem periferia abaixo, não há Lembo Pétala-Macia que evite derramamento de sangue - na maioria dos casos, inocente. Mas o meu negócio não é discurso, é galhofa. Já que falei em bolas misturadas... Dizem que um velho político pefelista, preocupado com as más performances nos palanques, procurou um médico, antigo cupincha de castelo e carteado.


- Tô com um problema, num sabe? Bem na... plataforma de lançamento.


- Hein?


- Pois é. Gases. Uma coisa impressionante. Além das explosões e dos odores, tem hora que chego a levitar. Uma assessora já foi arremessada contra meu contador de caixa 2. Estão hospitalizados. Isso não pode continuar.


O amigo explicou que aquela não era a especialidade dele, mas que pensaria no assunto, conversaria com colegas renomados, faria até pesquisa na internet.


No comício seguinte, o esculápio apareceu com um vidro misterioso, sem rótulo, e entregou ao político:


- É pra...


Mas o tumulto, o puxa-saquismo, os vivas, a euforia bem remunerada impediram a necessária e urgente troca de informações. Cerca de meia hora depois, o SSJE (Secretário para Superfaturamento Junto a Empreiteiras) agarrou o ilustre médico pelo paletó.


- Corre que o Chefe tá pegando fogo nas... nas partes baixas.


- O quê?!?


O socorrista encontrou o parlamentável feito um bebê, sem calças, com uma brutal reação alérgica na proa da região pélvica.


- Mas... Eu mandei você beber a poção e você esfregou nos...


- No calor da luta política, eu confundi peido público com pêlo púbico."

Aldir Blanc

17 agosto 2006

(Tentando o Impossível - René Magritte)




GUERRA DE MUDOS
(Kinho Vaz)

Eu vi a chama do prazer

Ardendo nos seus olhos.

Vi lábios selando desejos,

Beijos que não se pronunciam.

Vi mãos aflitas, contorcidas,

Combatendo os dedos na ansiedade

Como as fileiras de Atenas,

Cerrando ódio aos heróis de Esparta.



Vi tudo isso

E não dei um só passo,

Senão aquele que me trouxe de volta

À realidade.

28 julho 2006



Ai, Ching !
(Luiz)


As coisas Zen,
as coisas têm,
as coisas tão
tão sem sentido,
sem nem sim nem não,
assim, bem...
I Ching.

07 julho 2006


PERVERSOS PRECOCES
Éramos uma legião de demônios precoces. Não valíamos a bala que roubávamos na quitanda. Nem os sacos que enchíamos com urina, para arremessar nos ônibus lotados. Uma turba vadia, de liberdade indecente, como a nossa condição. Tínhamos a fragilidade das rolinhas que abatíamos por lazer e fome. E a resistência das pequenas eras que crescem nas frestas das calçadas. Éramos seres sem compromissos. Pequenos e pobres como as possibilidades disso mudar. O nosso tempo só contava após a escola, onde despertávamos remelentos, desgrenhados e sacudidos pelos berros do inspetor. Não éramos rebeldes, pois ainda não conhecíamos a rebeldia. Mas conseguíamos agregar criatividade à ousadia de um jeito agressivo. Tanto que os adultos nunca descartaram a possibilidade de nos mandar para um reformatório. Puro exagero. A nossa perversidade era ingênua. Não tinha nenhum efeito prático, senão o de nos divertir. Como foi divertido roubar o Ford Bigode do seu Manduca. Uma paixão do velho. Mantido como uma amante. O carro ficava parado o tempo todo, na sua porta. Dali só saía uma vez por mês, dirigido pelo seu Manduca. Sempre num sábado. Ninguém, nunca, descobriu porquê. O velho entrava no carro e a gente provocava para ele reagir. Já vai passear de carroça, Manduca? Sai da frente suas pestes. Sai senão passo por cima, bando de bostinhas. A gente ria dos insultos, mas gostava mesmo de correr ao lado do carro atiçando o velho. Pisa aí Manduca caduca. Essa porra não corre mais que a gente não? Corre mais que o cu da tua mãe, estrupício. Ainda atropelo um! Filhos da puta! Crias de cadela vadia! Netos de mulher da zona... E xingava o que podia, enquanto conseguíamos ficar emparelhados com a janela do carro. Era sempre assim, uma vez por mês, todos os meses. Até o dia em que tivemos a idéia de esconder o Ford Bigode. Uma maldade que quase custou a vida ao homem. Era tarde da noite. O guarda noturno já apitava ao longe. Algumas pancadas de leve na lataria fizeram a maçaneta ceder. Abrimos. Um ficou na direção, o resto empurrou. Paramos o carro umas duas quadras adiante. Fechamos a porta e voltamos pra casa. No dia seguinte estávamos lá, sentados no meio fio, quando o seu Manduca apareceu arrumado para sair. Olhou o espaço vazio na rua e tonteou. Tirou o chapéu panamá e começou a se abanar. As palavras não saíram. Uma brancura de morte tomou conta do seu rosto. A camisa de linho engomada encharcou. Os joelhos dobraram e fizeram o velho escorregar pela parede até o chão. Acode que seu Manduca tá passando mal! Corre que o velho tá morrendo aqui! E toda gente acudiu rápido. Todo mundo saiu de casa pra ver. Porque gente pobre é assim: nem sempre pode ajudar, mas não deixa de conferir. Nós, farsantes, corríamos de cima a baixo atendendo aos pedidos. Pegando água com açúcar pra acalmar. Buscando vinagre, pra esfregar nos pulsos. Uma colher de sal, pra levantar a pressão. Café sem açúcar pra avivar o velho. Deu certo. Manduca falou. Roubaram meu carro! Puta que pariu! Cadê meu carro? Calma seu Manduca, vamos chamar a polícia. Polícia? Fodeu! Vamos ser castigados duas vezes. No cassetete dos meganhas e no fio de ferro da nossa mãe. Agora não teria jeito. Iríamos conhecer o reformatório. Que merda! Mas se o diabo atenta, o anjo da guarda protege. Veio a idéia de procurar o carro. Deve tá perto, seu Manduca. Aquela carroça não andava porra nenhuma. Carroça é a puta que o pariu seu bostinha! Cala boca, peste. Não tá vendo que o velho tá passando mal. A gente só quer ajudar. Vão ajudar a sua mãe a lavar a boceta, seus filhos da puta! Vocês devem ter alguma coisa com isso. Mas se eu descubro eu mato um puto desses! Calma, seu Manduca, calma. Sai pra fora daqui seus coisa ruim. Vão acabar de matar o velho. A gente só quer ajudar, tia. Podemos correr por aí procurando o carro. Então vai, vão ver se acha a porra desse carro por aí, merda! Saímos voando e estridentes, como um bando de biquinhos de lacre. Mas não podíamos voltar logo, para não parecer coisa feita. Fomos para o campo do América, assistir à pelada da manhã. Subimos ao Santo Antônio para ver a turma cruzando pipa. Mergulhamos no açude da fábrica abandonada. E só então voltamos correndo para a nossa rua. Achamos! Achamos! Achamos o carro do seu Manduca. Tá aonde? Lá embaixo, na rua do querosene. Vamos lá pra ver. E todo mundo foi. Seu manduca na frente. Todo mundo atrás. Era o fato do dia. Aquilo valia mais que lavar as roupas da madame. Que catar o feijão da semana. Que remendar as cuecas do marido. Era festa em dia comum. Todo mundo viu seu Manduca abraçar o carro. Erguer as mãos e agradecer a Deus. Beijar o capô. Conferir a lataria, os pneus. E depois entrar para levar seu precioso Ford Bigode pra casa. Dá carona, seu Manduca? Sai pra lá que aqui vocês não sentam esse cu sujo! Aqui não! E arrancou com o carro, deixando o povo pra trás. Menos a nós, que saímos correndo ao seu lado, atazanando a sua vida.
Houve outras ocasiões onde deixamos a maldade depor contra a nossa inocência. Como aquela, em que simulamos um assassinato para a minha mãe. Morávamos num porão. Chovia muito, o dia todo. Ficamos presos naquele subsolo úmido e apertado. Pequeno demais para a nossa imaginação criminosa. Minha mãe estava no quintal. Armada com um vergalhão de ferro lutava para que o ralo não entupisse e transbordasse imundices para o nosso lar subterrâneo. Possivelmente chorava, por aquilo e por nós. Pois ainda não era meio dia e já havíamos dado àquela mulher curvada pelos sacrifícios da vida, muitos motivos para chorar. Quebramos a sua cama, jogando bola com os travesseiros. Acabamos com uma caixa de fósforos, um vidro de esmalte e um tubo de laquê, num ritual de incineração de formigas. A mistura provocou uma pequena explosão que deixou careca de cílios e sobrancelhas o meu irmão caçula. Era pouco. Decapitamos o São Jorge do meu pai, alvo do nosso estilingue. Gastamos o último gás do bujão, fazendo goma de farinha para colar a cabeça do santo. Destruímos dois cabides, transformados em rústicos arcos para flechas. Uma dessas varou a porta de vidro da cristaleira. Soltamos o azulão da gaiola para brincar de caçá-lo. Ele fugiu. Passou rasante pela cabeça da minha mãe, que largou um grito de espanto. Ai, meu Deus! Que isso! Puta que pariu! O que eu fiz para merecer isso? Hoje eu pego um de jeito! Berrou mais ameaças para nós e continuou sua luta com o ralo. Não tinha a menor idéia do que aconteceu e do que iria acontecer lá embaixo. Ficamos quietos uns segundos, até que voltamos a escutar seus palavrões dirigidos às baratas que subiam em suas pernas. O céu seguiu trovejando pesado. Devia ser Deus, assumindo o seu desgosto com a gente. Ou então tentando alertar àquela pobre mulher. Chamar a sua atenção para os pequenos seres diabólicos, presos no seu submundo. Nós, que naquele instante chegamos à caixa dos remédios. Descobrimos o vidro de mercurocromo e sorrimos em perversa conivência. O irmão caçula foi deitado no chão. Segurava a lâmina do facão de peixe com o sovaco. O falso sangue foi espalhado a esmo, pelo corpo e pelo lugar. Estava pronta a farsa. Era só ver no que dava. Socorro mãe! Corre aqui. Acode mãe. Ajuda! Rápido! Corre! Depressa, mãe!Ela veio rápida, entre palavrões. Desceu se equilibrando para não cair nos degraus toscos e molhados. Parou estatelada diante da cena. Deu um grito aterrador e desabou, sem sentidos. Ai o meu cacete! Matamos a mamãe. E agora? Mãe é brincadeira. Ele não morreu não. Acorda, mãe! Joga água nela. Já ta molhada. Na cara, seu bosta. Vai afogar ela. Joga logo essa merda aí! Enquanto isso, o ralo transbordava e o esgoto descia em cachoeira até nós. O cheiro tomou conta de tudo. E nos ajudou a fazer minha mãe voltar a si. A primeira coisa que fez foi abraçar assustada o filho caçula. Chorou soluçando. Pegou seu rosto entre as mãos para conferir a cria. Notou a ausência dos cílios. As sobrancelhas chamuscadas. Que isso? Fomos saindo de fininho para um canto. Ela se levantou e começou a tomar pé da realidade. Olhou ao redor e viu tudo pelos ares. Viu a cama quebrada. Conferiu a parede enegrecida pelo fogo. Alisou a cristaleira partida. Levou as mãos à boca e fez o sinal da cruz, quando viu o São Jorge com a cabeça colada ao contrário. Voltou-se para o chão sujo de mercurocromo, como o corpo do meu irmão. Puxou os cabelos com todo aquele mal feito, completado pelo rio de fezes que descia as escadas. Arregalou os olhos de um jeito conhecido. Perigoso, para nós. Torceu o canto da boca. Puxou o ar com força e explodiu. Seus filhos de uma puta! Desgraçados. Pestes do inferno. Isso é coisa que se faça? Mas eu mato, hoje mato um. E vai ser agora! Vem cá! Vem cá! Não adianta correr! Eu caço vocês no inferno. Interna essas crianças, mulher! Vai cuidar da sua vida fofoqueira. Então vá se foder! Saímos correndo para a rua, com chuva e tudo. Atrás de nós voavam panelas, pratos e baldes. Minha mãe tentava nos acertar como podia. Mas não corria como nós. Sumimos na chuva. Subimos o morro, entramos no mato. Passamos o dia fugindo dela. Molhados, com fome e rindo da nossa maldade. Mais tarde ela se acalma. Aí a gente volta.
Também sofreu a Júlia maluca. Que não era maluca de verdade. Mas ficava assim por nossa conta. Uma idosa sozinha no desamparo coletivo. Vivia de passar roupas pra fora. Todo dia saía com a trouxa na cabeça. Parte do seu corpo. Uma mulher pequena que cumpria o seu destino malabarista. Era vingativa. Gostava de dar o troco. A gente aprontava com ela e tinha que ficar atento. Ela não esquecia. Quando menos se esperava, vinha com uma tesoura cortar a linha da nossa pipa. Ou surgia do nada, para rasgar a nossa bola com a faca. Quando tinha sucesso na vingança, escancarava a boca sem vida e gritava rouca. Comigo vocês se fodem! Comigo vocês se fodem! A Júlia ficou chamada de maluca por um trauma. Tinha medo de macumba. Se encontrasse um frango morto e um toco de vela numa esquina, fazia um escarcéu. Apertava os olhinhos miúdos. Botava mais rugas no rosto. E falava correndo, batendo as mãos, compulsiva. Valha-me Deus, Nosso Senhor! Tira o capeta do meu caminho! Me guarda nas asas dos seus anjos! Me tenha na sua bondade. Expulsa o demo daqui. Tira o coisa ruim da minha frente que os caminhos do mundo são seus. Trabalho na sua fé. Vivo da sua caridade. É sua a minha alma, na vida que é meu castigo e na morte que será meu prêmio... E repetia a ladainha depressa. Pulando no mesmo lugar. Sem parar de pular. Sem deixar a trouxa de roupas cair da cabeça. Como se a trouxa fosse um apêndice. Uma grande verruga da sua cabeça. Fica nesse transe até a torrente de frases minguar. Então se benzia repetidamente, enquanto atravessava a rua correndo. Com toda a molecada atrás imitando e gritando. Júlia Maluca! Cabeça de trapo! Júlia Maluca! Cabeça de trapo! Vão daqui! Vai embora cambada! Pode esperar. Vocês vão se danar. Comigo vocês se fodem! A Júlia morria de medo dos santos de macumba. Até de Cosme e Damião. Uma vez fomos vender ferro velho, catado pelas ruas. Lá no depósito encontramos uma máquina de escrever muito antiga. Trocamos tudo por ela, aceita? Fica faltando meio quilo. Depois a gente paga, pode? Vão pagar como pirralhos? Com mais ferro, a gente cata e trás pro senhor. Vá... Levem esta bosta e me sumam da vista. Aquela máquina de escrever deu origem a muita coisa. Principalmente as que não prestam. Mas a pior delas foram os cartões de Cosme e Damião. Fizemos um montão. Entregamos na escola, na feira, onde a gente passava. Convidamos para distribuição de doces, roupas e brinquedos no dia dos santos. Era comum se fazer isso. A gente dizia que uma moça tinha mandado. Todo mundo acreditou. O dia todo mundo já sabia, 27 de setembro. Marcamos hora e local. Colocamos o endereço da Júlia. Vai dar uma merda só! Agora ela vai ficar maluca de vez. Muito antes da hora marcada, a fila já ia longe. Tinha de tudo. Adulto, criança, velho. Dia de Cosme e Damião é assim, faz todo mundo virar criança. Bota todo mundo na rua atrás de doce. Não parou de chegar gente. E a Júlia lá dentro. Passando roupa. Sem tempo de botar a cara na rua. Chegou a hora marcada no cartão. Nada da porta abrir. O povo ficou impaciente. Bateu na porta. Bateu palma. Berrou chamando o dono da casa. Queremos doce! Olha a hora! Abre essa porta aí. Salve Cosme Damião, gente! E nós lá, rolando de rir. Achando aquilo o máximo. Orgulhosos do feito. Vão derrubar a porta da Júlia. Vão querer matar a velha de pancada. A Júlia abriu a porta e se encolheu de espanto. Tentou fechar, mas o povo não deixou. Cadê o nosso doce, dona? Que doce? O de Cosme e Damião. Eu não mexo com essas coisas! Mas tá aqui no cartão, o número é da sua casa. Mas aqui não vai ter porra nenhuma. A gente tá aqui desde cedo, dona, isso é ruindade! Faz isso não, moça. Mas eu não tenho doce nenhum. E sei lá que cartão é esse. Aí pessoal, tá dizendo que não tem nada. Como nada? Esse tempo todo aqui pra nada? Tá brincando com as crianças? Assim você vai ficar corcunda, bruxa velha. Vá rogar praga no caralho. Vamos lá, pessoal, tomo mundo junto: queremos doce! Queremos Doce! Mentirosa! Bruxa velha! Vaca murcha. Filha da puta...A turma ficou louca. Só não invadiu a casa da Júlia, porque alguém chamou a polícia, que limpou a área na bordoada. A velha ficou mal vista pela vizinhança. Já tinha medo dessas coisas. Depois daquilo, nunca mais saiu de casa em dia de Cosme e Damião. Mas teve uma vez que a coisa ficou séria mesmo. Quase matamos a Júlia de verdade. De susto no coração. Estávamos à-toa na rua. A noite já estava alta. Parou um carro na esquina. Carro de bacana. Desceu uma mulher enorme de gorda. Trazia um sacolão de lona. Armou um grande despacho para os santos da encruzilhada. Tinha de tudo. Cachaça, frango, farofa amarela, vela preta e vermelha, pipoca, champanhe... Um verdadeiro banquete. Bonito de ver. Tudo arrumado em cima de um pano vermelho e preto. Cores de Exu. Cores do Flamengo. O carro saiu, a gente chegou perto. Olha o pano! Dá pra gente fazer bandeira do Mengo! Tá louco? Amanhã vai pro lixo mesmo! Isso faz mal, menino, é pros santos. Os santos não vão comer o pano, vão? Mas é deles, vai cair a sua mão. Mas vamos deixar isso tudo aí? Quem ia gostar de ver era a Júlia Maluca... Nossos olhos se acenderam com a idéia. Como se todos pensassem a mesma coisa. Pronto! Já não se tinha mais medo dos santos. Pegar já não fazia a mão cair. E a bandeira do Flamengo podia esperar mais um pouco. Vamos sacanear a Júlia! Como? A gente bota isso tudo na porta dela. E o castigo? Castigo é o caralho, você acredita nessa porra? Sei lá! Então não pega, só vigia. Tá bom!Apagamos as velas. Juntamos as pontas do pano rubro-negro e transportamos o despacho. Montamos tudo na porta da Júlia. O despacho completo. Grande, imponente. Todo certinho. Bonito, se não fosse o lado macabro. Pronto. Estava armado o circo. Era só esperar a hora do show. Cedinho estávamos lá. Culpados na cena do crime. A Júlia abriu a porta e saiu do mundo. O sangue fugiu. A pele eriçou. O grito não conseguiu sair. Ficou preso no peito arfante. A trouxa de roupas passadas caiu. Pela primeira vez na vida, desgrudou da sua cabeça. Caiu sobre o despacho. Atrás veio ela, a Júlia. Se debatendo toda. Botando espuma pela boca. Revirava os olhos. Agonizando. Tornou-se parte do seu medo. Parecia o frango da macumba, acabando de morrer. Acode gente, a Júlia tá tendo um ataque. Socorro! Venham ajudar a velha! Todo mundo veio. Mas ninguém queria botar a mão nela. Estava sobre um despacho. Com isso não se brinca. Tava se debatendo. Aquilo era coisa de santo. Vivia esconjurando eles. Tava sendo castigada. É um ataque! Não, é santo mesmo. Vivia brincando com eles, pegaram ela! E se não for? Vai deixar ela morrer? Temos que ajudar! Vai lá você. Eu não boto a mão aí. Joga um balde d’agua, tia. Cala a boca peste, que isso tem dedo de vocês. Tem não tia. Então sai daqui e não atrapalha. A Júlia vai morrer, tia? Não fala besteira, menino. Quer que a gente chame a polícia? Só se for pra prender vocês. Mas a gente não fez nada. Quem não conhece que compre. Vão lá na venda e pede ligar pro hospital. Pede uma ambulância. Diz que é urgente. Corre, peste. Vai logo. E nós fomos voando. Um riso de deboche, pelo acontecido. Um frio na barriga, pelo medo da velha morrer. A ambulância veio e levou a Júlia. Ela não morreu, mas jurou que iria nos matar. Como todos os outros que passaram pela nossa infância. E sofreram com a nossa cruel criatividade.

01 julho 2006



HAIKAIZINHOS BESTAS
Vontade danada
de comunicar conciso.
Sei: Matsuo baixou.
****
Ventilador preto,
antigo, de bisavó.
Um vento a ventou.
****
Nenhum homem é
uma ilha. Besteira, que
eu sou Paquetá.
****
Fred baila no ar
e um anjo de pernas tortas
diz: - joão, vem dançar !
****
Queimou soutiens;
moda com revolução.
Sobraram peitinhos.
****
Travesseiro espera
a cabeça oca, de tanto,
prum milhão de sonhos.
****

04 junho 2006


"... o teatro não nasceu na Grécia. A meu ver, o que nasceu na Grécia foi o teatro grego..."
(Se não é o "Gênio máximo da humanidade", está entre eles.)
A FILOSOFIA DO PENETRAL
(Romance d'A Pedra do Reino, 1971.)

Há muito tempo que eu desejava me instruir sobre aquela profunda Filosofia clementina, para me ajudar em meus logogrifos. Por isso, avancei:
- Clemente, esse nome de "penetral" é uma beleza! É bonito, difícil, esquisito, e, só por ele, a gente vê logo como sua Filosofia é profunda e importante! O que é que quer dizer "penetral", hein?
Clemente, às vezes, deixava escapar "vulgaridades e plebeísmos" quando falava, segundo sublinhava Samuel. Naquele dia, indagado assim, respondeu:
- Olhe, Quaderna, o "penetral" é de lascar! Ou você tem "a intuição do penetral" ou não tem intuição de nada! Basta que eu lhe diga que "o penetral" é "a união do faraute com o insólito regalo", motivo pelo qual abarca o faraute, a quadra do deferido, o trebelho da justa, o rodopelo, o torvo torvelim e a subjunção da relápsia!
- Danou-se! - exclamei, entusiasmado. - O penetral é tudo isso, Clemente? -Tudo isso e muito mais, Quaderna, porque o penetral é o "único-amplo"! Você sabe como é que "a centúria dos íncolas primeiros", isto é, os homens, sai da "desconhecença" para a "sabença"?
- Sei não, Clemente! - confessei, envergonhado.
- Bem, então, para ir conhecendo logo o processo gavínico de conhecimento penetrálico, feche os olhos!
- Fechei! - disse eu, obedecendo.
- Agora, pense no mundo, no mundo que nos cerca!
- O mundo, o mundo... Pronto, pensei!
- Em que é que você está pensando?
- Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode, num pé de catingueira, numa Onça, numa mulher nua, num pé de coroa-de-frade, no vento, na poeira, no cheiro do cumaru e num jumento trepando uma jumenta!
- Basta, pode abrir os olhos! Agora me diga uma coisa: o que é isto que você pensou?
- É o mundo!
- É não, é somente uma parte dele! É "a quadra do deferido", aquilo que foi deferido a você, como "íncola"! É "o insólito regalo"! É "o côisico", dividido em duas partes: a "confraria da incessância" e "a força da malacacheta", representada, aí no que você pensou, pelas pedras. Agora pergunto: tudo isso pertence ou não pertence ao penetral?
- Não sei não, Clemente, mas pela cara que você esta fazendo, parece que pertence.
- Claro que pertence, Quaderna! Tudo pertence ao penetral! Tudo se inclui no penetral! Entretanto, para completar "o túdico" você, na sua enumeração do mundo, deixou de se referir a um elemento fundamental, a um elemento que estava presente e que você omitiu! Que elemento foi esse, Quaderna?
- Sei não, Clemente!
- Foi você mesmo, "o faraute"!
O Faraute não, o Quaderna! - disse eu logo, cioso da minha identidade.
- O Quaderna é um faraute! - insistiu Clemente.
Como aquilo podia ser alguma safadeza, reagi:
- Epa, Clemente, vá pra lá com suas molecagens! Faraute o quê? Faraute uma porra! Faraute é você! Não é besta não?
- Espere, não se afobe não, homem! Faraute não é insulto nenhum! Eu sou um faraute, você é um faraute, todo homem é um faraute!
- Bem, se é assim, está certo, vá lá! E o que é um faraute, Clemente?
- Ora, Quaderna, você, leitor assíduo daquele Dicionário Prático Ilustrado que herdou de seu Pai, perguntar isso? Vá lá, no seu querido livro de figuras, que encontra! "Faraute" significa "intérprete, língua, medianeiro"! O curioso é que "a quadra do deferido" e o "rodopelo" pertencem ao penetral, mas o faraute, seja "nauta-arremessado" ou "tapuia-errante", também pertence! Não é formidável ? É daí que se origina "o horrífico desmaio", o "tonteio da mente abrasada"! Inda agora, quando pensou no mundo, você não sentiu uma vertigem não?
- Acho que não, Clemente!
- Sentiu, sentiu! É porque você não se lembra! Quer ver uma coisa? Feche os olhos de novo! Isto! Agora, cruze as mãos atrás da nuca! Muito bem! Pense de novo naquele trecho do insólito regalo em que pensou há pouco! Está pensando?
- Estou!
- Agora, me diga: você não está sentindo uma espécie de tontura não?
Eu, que sou impressionável demais, comecei a oscilar, sentindo uma tonteira danada, na cabeça. Pedi permissão a Clemente para abrir os olhos, porque já estava a ponto de cair da sela. O Filósofo, triunfante, concedeu:
- Abra, abra os olhos! Como é? Sentiu ou não sentiu a vertigem? Sabe o que é isso? É a "oura da folia", início da "sabença", da "conhecença"! A oura causa o "horrífico desmaio". Este, leva ao "abismo da dúvida", também conhecido como "a boca hiante do contempto". O abismo comunica ao faraute a existência do "pacto" e da "ruptura". A ruptura conduz à "balda do labéu". E é então que o nauta-arremessado e tapuia-errante torna-se único-faraute. Isto é, o faraute é, ao mesmo tempo, faraute do insólito-regalo, faraute do rodopelo e faraute do faraute! Está vendo? O que é que você acha do penetral, Quaderna?
- Acho de uma profundeza de lascar, Clemente! Para ser franco, entendi pouca coisa, mas já basta para me mostrar que sua Filosofia é foda! Mas o que é, mesmo, penetral?
- Vá de novo ao "pai-dos-burros"! "Penetral" é "a parte mais recôndita e interior de um objeto". Mas, na minha Filosofia, essa noção é ampliada, porque além de abranger a quadra do deferido e o rodopelo, o penetral abrange também o faraute, através da subjunção da relápsia! Mas, no momento em que se fala friamente do penetral, tentando capturá-lo em categorias de uma lógica sem gavionice negro-tapuia, ele deixa de ser apreendido! Faça apelo aos gaviônicos restos de sangue Negro e Tapuia que você tem, Quaderna, e entenda que o penetral "é o penetral", que o penetral "é"! O côisico, coisica: os cavalos cavalam, as árvores arvoram, os jumentos jumentam, as pedras pedram, os móveis movelam, as cadeiras cadeiram, e o faráutico, machendo e feminando, é que consegue gentere farauticar! É assim que o túdico tudica e que o penetral penetrala - e esta, Quaderna, é a realidade fundamental!
- Arra diabo! - disse eu, de novo embasbacado. - E tudo isso já estava na Mitologia Negro-Tapuia, Clemente?
- Estava, estava! Aliás, está, ainda! É por isso que o "Gênio da Raça Brasileira" será um homem do Povo, um descendente dos Negros e Tapuias, que, baseado nas lutas e nos mitos de seu Povo, faça disso o grande assunto nacional, tema da Obra da Raça!
Claro que era em si mesmo que Clemente estava pensando. Mas Samuel contestou logo:
- Nada disso, Quaderna! O "Gênio da Raça Brasileira" deverá ser um Fidalgo dos engenhos pernambucanos! Um homem que tenha nas veias o sangue dos Conquistadores ibéricos que fundaram, com a América Latina como base, o grande Império que foi o orgulho da Latinidade católica! Portugal e a Espanha não tinham dimensões para realizar aquilo que, neles, foi somente uma aspiração! Mas o Brasil é um dos sete Países perigosos do mundo! Por isso, cabe a nós instaurar, aqui, esse Império glorioso que Portugal e a Espanha não puderam realizar!
- Mas como deverá ser escrita a Obra da Raça Brasileira? - perguntei. - Em verso ou em prosa ?
- A meu ver, em prosa! - disse Clemente. - E é assunto decidido, porque o filósofo Artur Orlando disse que "em prosa escrevem-se hoje as grandes sínteses intelectuais e emocionais da humanidade"!
Samuel discordou:
- Como é que pode ser isso, se todas as "obras das raças" dos Países estrangeiros são chamadas de "poemas nacionais"?
- O Almanaque Charadístico diz, num artigo, que os Poetas nacionais são, sempre, autores de Epopéias! - tive eu a ingenuidade de dizer.
Os dois começaram a rir ao mesmo tempo:
- Uma Epopéia! Era o que faltava! - zombou Samuel. - Vá ver que Quaderna anda pelos cantos é conspirando, para fazer uma! Sobre o quê, meu Deus? Será sobre essas bárbaras lutas sertanejas em que ele andou metido? Não se meta nisso não, Quaderna! Não existe coisa de gosto pior do que aquelas estiradas homéricas, cheias heróis cabeludos e cabreiros fedorentos, trocando de golpes, montados em cavalos empastados de suor e poeira, a ponto de a gente sentir, na leitura, a catinga insuportável de tudo!
Clemente uniu-se ao rival, se bem que por outro caminho. Disse:
- Além disso, a glorificação do Herói individual, objetivo fundamental das Epopéias, é uma atitude superada e obscurantista! E se você quer uma autoridade, Carlos Dias Fernandes também já demonstrou, de modo lapidar, que, nos tempos de hoje, a Epopéia foi substituída pelo Romance!

28 maio 2006


O livro Grande Sertão: Veredas completa 50 anos. Quintal Literário homenageia um dos maiores escritores da língua portuguêsa, João Guimarães Rosa.
A TERCEIRA MARGEM DO RIO
(Guimarães Rosa - do livro:Primeiras Estórias)
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

27 maio 2006


ESTRELA CADENTE


O sedan importado deslizava suavemente na grande avenida da minha cidade. Na madrugada, com chuva fina e ar-condicionado gelando dava gosto ouvir o Sinatra cantando MY WAY. Combinava. Complementava o cenário. Nos meus quarenta anos eu me sentia como um astro: A câmera fazendo um travelling em semi-círculo, lento, saindo de uma porta em direção a outra passando pela frente do carro.

Foi uma bela noite. O restaurante sofisticado da zona sul, repleto. Quarenta anos. Um sem fim de brindes. Champanhe francês e uísque doze anos, salmão defumado ao molho de amêndoas e batatinhas sauteé.

Eu estava cheio. De vida.

Amigos, parentes, esposa linda e perfumada, filho esperto e inteligente demais para os seus seis anos. Inesquecível.

Tudo ia de vento em popa. Negócios excelentes, casa de veraneio na região serrana, umas amantezinhas sem importância a quem eu presenteava com uma corrente de ouro aqui, um anel de pedra semi-preciosa ali, gargantilha acolá, coisa pouca. Prazer rápido. As influências políticas davam-me confiança para ir a frente cada vez mais. Charutos, antes holandeses ou dominicanos (que nunca fumei porcaria, nem nos tempos de dureza) agora belos havanas.

De tudo isso eu me recordo hoje enquanto cato guimbas pela calçada e esmolo a bebida do dia. “Vai trabalhar, vagabundo !” É mais um insulto que engulo, empurrado pela aguardente barata que já nem queima mais a goela. No começo eu sentia descer ardendo até provocar o refluxo ácido e doído lá do estômago. Hoje não mais. Ainda tenho estômago ? Ou isso também caiu em desuso, atrofiado, utilizado apenas quando tenho pesadelos com as mesas de antigamente, de lagostins e cavacas ?

Ainda uso o paletó antigo. Rota lembrança do que foi outrora um belíssimo corte italiano. Fico esperando que um companheiro de infortúnio me aborde a qualquer momento e pergunte: “Como vai, caro colega ?”

O tempo de estabilidade foi curto. A mosca azul envenenou meus dias. Penso: poison (eu sabia bem o francês). Por ganância associei-me a um mega-empresário e deputado. Um negócio de importação muito precioso: “ilegal narcotics”, digamos assim (eu sabia o inglês também).

A grandeza do sócio acabou por sobrepujar-me. Eu, que sempre mandei, diante da desproporção da sociedade passei a obedecer. Nem eu entendia o porquê mas fato é que sentia-me inferiorizado. Daí para as facilidades do álcool e das drogas foi um pulo. Uma descida rápida, comum a todos esses casos.
Obviamente a Maria Cristina descobriu a história das amantezinhas desimportantes que alcançaram descomunal importância na hora da partilha das poucas coisas que ainda não havia colocado em nome dela. Burro. Pato. Foi um litígio fácil. Para ela. O garoto, que então percebi nunca ter estado verdadeiramente próximo a ele, mostrou-se mais esperto do que eu me ufanava. E, agora rapaz, ficou ao lado da força. Com Maria Cristina e o deputado. Sim, o mesmo.


Agora olho para o céu e a vejo passar. Ajoelho e formulo aos brados o meu petitório. Passa um casal de namorados na pracinha da periferia. Ele interrompe as juras de amor entremeadas de solicitações sensuais que sei estar fazendo, pois o percebo na rigidez de seus bicos sob a javanesa o quanto sua nuca e colo se arrepiam, olha para mim e comenta com ela: “Bêbado imbecil. Fazendo pedido para bala traçante...” e seguem para o pipoqueiro.

Estou cheio, da vida.


“And now, the end is near;
And so I face the final curtain...”