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27 dezembro 2007



O instante é memória
Só se pensa quando passa
E envelhece na vidraça
Olhando o seu amor amar

Entradas que se abrem
Cores que se perdem no branco
Veias que penetram a pele
Em uma geografia perfeita do tempo

Não se procura a fruta mais bonita
A que está ao alcance já satisfaz
E a vida, com seu complexo labirinto
Deixa bilhetes em paredes que cismo em passar

As grafias aceleram os ventos da tempestade
Os retratos encharcam emoções em nossas janelas
A saudade entra como um mal-súbito
Socando o peito com batidas secas

E assim, criam rios na cara do presente
Que em um simples encontro com o passado
Perde a noção daquilo que já não se tem
Do que já não volta

De tudo aquilo que a vida já viveu.


(Ouça aqui, Oração ao Tempo, com Caetano Veloso)


19 dezembro 2007

supernova bossa
(Denner Campolina)



no horizonte de eventos singularidades

procuro o meu amor no hiperespaço...não linear

e na matéria exótica me vejo tenso

desconhecendo o feitiço do tempo...meu amor

sou corda vibro no ar

frequencia com efeito dopler...dependo do referencial!

a supernova consciencia unificada

se expande em ondas de choque...não linear

vou encontrar o meu amor no espaço tempo

me preocupar com o paradoxo do meu próprio encontro...dimensional

quem é que vai completar?

e raio gama irradiar

....a minha antimatéria...

09 dezembro 2007

"O violino de Ingres"
Man Ray - Fotógrafo surrealista



FUGA E ADÁGIO
(Kinho Vaz)

Era noite escura quando a perseguição se deu. Eu arfando na frente, fugindo das garras e dos dentes que me perseguiam. Enveredei pela floresta com todos os sentidos em alerta, quebrando galhos secos e fugindo sem apagar pistas. Correndo e querendo ser alcançado com a mesma força, em total contradição. O hálito doce que me buscava ignorava distância e tempo. Mais cedo ou mais tarde estaria misturado ao meu, me submetendo à voraz, felina e definitiva mordida de abate. Senti-me perdido, presa fácil. Animal longe do bando, em território alheio, espreitando desejos que não podiam me pertencer. A mente roçava na superfície áspera das lembranças, enquanto se esgueirava pelo mato cerrado da realidade. Os lanhos fundos e doloridos na consciência foram inevitáveis. Quanto mais eu corria, mais perto chegava do fim. Parecia estar imitando os sentimentos, que se postavam em círculos entre o querer e o não querer, entre o lutar e o se entregar, entre o certo e o errado. Não havia saída na densa noite sem caminhos. Então eu parei de correr e esperei a hora da luta, fortalecendo minhas esperanças na crença de que a melhor sepultura para um guerreiro é o ventre do inimigo. Aos poucos comecei a sentir no vento o perfume do meu destino. Doce, delicado e inebriante como o aroma de uma fruta exótica.

Sua chegada me encontrou passivo, entregue. Mostrou-se sem pressa de concluir sua conquista. Rodeou-me lentamente, olhos fixos nos meus, diminuindo meu espaço em voltas cada vez menores, cada vez mais próximas, cada vez mais intransponíveis. Essa proximidade me enfeitiçou, me fez acreditar, ser eu, um banquete digno de tal cerimônia. Então percebi que já não poderia ir a lugar algum. Estava preso, cercado, dominado. Pronto para ser devorado em ritual premeditado pelos instintos viscerais que regem a relação entre caça e caçador. Fechei os olhos e abri os braços, preparado para o bote fatal, entregue nas mãos de um destino cruel, mas meigo como um sonho bom. Meu corpo entorpeceu à proximidade do seu calor. O respirar ansioso invadiu o meu, fazendo meu coração pulsar em compassos impróprios. Passeou sua língua por todos os meus poros, apetecendo o paladar, apurando os sentidos na visão da refeição servida. Invadiu meus sonhos com um olhar carregado de promessas de menina, me fazendo sentir que aquela era a hora certa para deixar de existir. Só então começou a me devorar, calma e lentamente. Tirou-me os olhos, os ouvidos e a língua com tamanha destreza, que eu mal percebi que os perdia. Passou então a se ocupar do meu juízo, vasculhando, invadindo, dominando a intimidade dos meus pensamentos. Até que finalmente chegou ao meu coração, fazendo um estrago delicioso. Daí pra frente, já não pude mais ver, ouvir, falar, pensar e nem sentir nada que não fosse voltado para aquela dominação.

A selva me fez prisioneiro, a curiosidade me fez presa e a fraqueza me fez escravo dessa força irresistível, que desconhece a carne, o tempo e a própria razão.

13 setembro 2007


Buraco Paradoxal
(Bye, bye, Platão)

(Alexandre Campinas)


Velhas paredes, cheias de hera

num mundo de sombras

cheio de mar e tanta terra,

de gente enfiada no presente sem sal

cavado de dentro pra fora,

um buraco paradoxal.




Rasgo todo o véu,

abro com granada

o caminho pro meu céu.

Longe desse nada, longe do mal

onde tudo é muito mais

qe um buraco paradoxal.




Não quero ser mais um

colado na grande tv,

olhando projeções, coisa e tal:

ver sem perceber

que a coisa é mais embaixo,

é um buraco paradoxal.




Quero liberdade.

Por isso vou dormir,

voar para a verdade,

alma em sonho universal

pronta pra me parir

do buraco paradoxal.

11 setembro 2007


Barão de Cotegipe
(Kinho Vaz)

Um caminho pra seguir
Uma rua pra lembrar
Poeira nos olhos
Estrada de sonhos
Mundo inteiro conquistar

Jogo de bicho, jogo de bola
Vai pra escola ser alguém
Nesse mundo só dá certo
Quem estuda muito bem...

Chão, ladeiras,
Vilas vivas,
Vão ficando para trás
Azulão, Bico de lacre,
Feira livre e rolimãs

Cospe fogo, terra santa
Roda viva, comichão
Pé descalço, ratazana
Mãe chorando no porão

Velho Jorge,
Mãe Neninha
Brasa de defumador
Chama acesa no olhar
Marca viva de amor

Gente boa que se foi
Mas deixou no seu lugar
Prole rica de promessas
Um desejo de sonhar

Chão, ladeiras,
Vilas vivas,
Vão ficando para trás
Azulão, Bico de lacre,
Feira livre e rolimãs

Cospe fogo, terra santa
Roda viva, comichão
Pé descalço, ratazana
Mãe chorando no porão

16 junho 2007

Birite-se e pense com o velho Buk

O Grito - Hommer Munch

O espremedor de culhões

(Charles Bukowski)


Danforth pendurou os corpos no varal, um a um, depois de passarem
pelo espremedor. Bagley, sentado perto dos telefones pergunta:

- Quantos tem?
- 19. Pelo jeito o dia vai ser bom.
- É, pô, tá com cara. Quantos colocamos ontem?
- 14.
- Legal, legal. Continuando assim, vai ser bom mesmo. O meu grilo é
que a coisa no Vietnã é bem capaz de parar - disse Bagley.
- Deixa de ser bobo, tem muita gente lucrando e dependendo dessa
guerra.
- Mas a Conferência de Paz em Paris...
- Você hoje não está bom, Bag. Quem é que não sabe que eles passam
o dia inteiro sentados, dando risada, recebendo grana pra não fazer
nada e depois indo à noite a tudo quanto é boate? Essa cambada tá
com a vida ganha. A vontade que têm de terminar a Conferência de
Paz é igual à nossa de liquidar com a guerra. Tá todo mundo
engordando, sem se arranhar. Uma verdadeira beleza e se
encontrarem uma forma de chegar por acaso a um acordo, sempre vão
aparecer outras. A terra tá cheia de lugares prontos pra explodir.
- É, acho que vivo me preocupando à toa.

Um dos três telefones da mesa tocou. Bagley atende.
- AGÊNCIA DE EMPREGOS SATISFAÇÃO GARANTIDA. Bagley, às suas
ordens - Fica escutando - É, sim, nós temos um ótimo contador.
Salário? 300 dólares nas duas primeiras semanas, 300 cada, bem
entendido. O pagamento das duas primeiras fica pra agência. Depois
vocês reduzem pra 50 por semana ou põe na rua. Se puserem na rua
depois das duas semanas, VOCÊS é que recebem cem dólares da
gente. Porquê? Ora, que diabo, então não está vendo que a idéia é
manter a rotatividade do negócio? Pura questão de psicologia, que
nem a figura do Papai Noel no Natal. Quando? Sim, vamos mandar
em seguida. Qual é o endereço? Ótimo, perfeito, daqui a pouco ele
está aí. Não se esqueça das condições. Ele leva o contrato. Tchau.

Bagley desliga. Cantarola baixinho, sublinha o endereço.
- Tira um do varal, Danforth. Um bem magro e cansado. Não vale a
pena mandar logo o melhor.

Danforth vai ao varal e retira os pregadores dos dedos de um bem
magro e cansado.

- traz cá. Como é o nome dele?
- Herman. Herman Telleman.
- Xi, que merda, não vai dar. Parece que ainda tem um pouco de
sangue. E o olho também não perdeu toda a cor... acho eu. Escuta
aqui, Danforth, essa sua máquina tá espremendo direito? Eu não quero
que sobre culhão nenhum, todas as resistências têm que sumir, tá
entendendo? Cuida da tua parte que eu cuido da minha.
- Alguns desses caras quando chegam aqui são duros de roer. E você
sabe muito bem que nem todos têm culhão. Não é sempre que dá pra
adivinhar.
- Tá legal, vamos ver este aqui. Herman. Ei filhote!
- Que foi paizinho? - Que me diz de um empreguinho legal?
- Ah, não porra!
- O quê? Não quer um empreguinho legal?
- A troco de que, merda? O meu vellho era de Jersey, trabalhou pra
burro a vida inteira e quando morreu a gente enterrou com todo o
dinheiro que tinha, sabe quanto era?
- Quanto?
- 15 cents. O saldo de uma vida desgraçada e infeliz.
- Mas você não gostaria de casar e ter filhos, casa própria, entrar pra
classe média? Comprar carro novo de 3 em 3 anos?
- Não quero nada com o batente, velhão, ninguém vai me botar em
gaiola de mola. Quero só me espraiar por ai. Tô me lixando pro resto.
- Danforth, passa esse sacana de novo no espremedor e aperta bem os
parafusos!

Danforth agarra o artigo pela nuca, mas não antes de Telleman berrar:
- Vai foder o cu da mãe!...
- E espreme bem TODO ESSE CULHÃO DELE. ATÉ QUE NÃO SOBRE
NADA! Tá ouvindo?
- Tá certo, já ouvi! - reponde Danforth. - merda, às vezes eu acho que
você ficou com a parte do osso mais fácil de roer!
- Deixa esse negócio de osso de lado! Espreme bem e tira o culhão
desse cara. O Nixon é capaz de acabar com a guerra...
- Lá vem você com essa bobagem de novo! Acho que tu não anda
dormindo direito, Bagley. Tem alguma coisa errada contigo.
- É, é sim. Tem razão. Insônia. Fico sempre pensando que a gente devia
estar preparando soldados! Me reviro na cama a noite inteira! Que
grande negócio não ia ser!
- Bag, a gente faz o que pode com o que a gente tem, mais nada.
- Tá certo, tá certo. Ele já passou pelo espremedor ?
- DUAS VEZES, já tirei o culhão todo. Você vai ver.
- Tá legal, traz correndo pra cá. Vamos dar uma olhada.

Danforth traz Herman Telleman de volta. Não resta duvida que está
diferente. A cor dos olhos sumiu por completo e o sorriso é totalmente
amarelo, uma beleza.

- Herman? - chama Bagley.
- Sim, chefe.
- O que é que está sentindo? Ou melhor, como se sente?
- Não sinto absolutamente nada chefe.
- Você gosta de tiras?
- Tiras não, chefe - polícias. Eles são vitimas da nossa maldade, embora
às vezes nos protejam atirando, prendendo, espancando e multando a
gente. Não existe essa história de que não há tira que preste aliás,
polícia, desculpe. Já imaginou se não houvesse polícia? A gente teria
que impor a lei com as nossas próprias mãos.
- E aí, o que ia acontecer?
- Nunca parei pra pensar, chefe.
- Ótimo. Acredita em Deus?
- Ah, claro que sim chefe. Em Deus, Pátria, Família, Tradição. E no
trabalho honesto.
- Puta que pariu!
- Como disse chefe?
- Não. Nada. Agora, escuta aqui, você gosta de fazer serão?
- Ah, claro que sim, chefe! Gostaria de trabalhar 7 dias por semana, se
possível. E de ter 2 empregos se pudesse.
- Por quê?
- Por causa do dinheiro, chefe. Pra comprar TV a cores, carro novo, dar
entrada pra casa própria, pijama de seda, 2 cachorros, barbeador
elétrico, seguro de vida, assistência médica, ah, tudo quanto é tipo de
seguro, educação escolar para os meus filhos, se eu tiver, porta
automática na garagem, roupas finas, sapatos de 45 dólares, câmeras,
relógio de pulso, anéis, lavadora automática, geladeira, poltronas e
camas novas, forração de carpete em todas as peças, donativos pra
igreja, aquecimento central e...
- Tá legal. Chega. Agora, quando é que pretende usar todos esses
troços?
- Não estou entendendo, chefe.
- Quero dizer, se você trabalhar dia e noite ainda fizer serão, que tempo
te sobra pra aproveitar todo esse luxo?
- Ah, esse dia há de chegar, chefe, ele há de chegar!
- E não acha que teus filhos um dia hão de crescer e julgar que você foi
um trouxa?
- Depois de ter me esfolado vivo por causa deles, chefe? Claro que não!
- Maravilha. Agora, só mais algumas perguntas.
- Pois não, chefe.
- Não acha que toda essa escravidão permanente é prejudicial pra saúde
e pro espírito, pra alma, se quiser...?
- Ah, pô, se eu não ficasse trabalhando o tempo todo, ia acabar sentado
por aí, bebendo, pintando quadros a óleo, fodendo, indo ao circo ou no
parque pra ver os patos. Coisas desse gênero.
- Não acha que ficar sentado no parque, olhando para os patos, pode
ser muito agradável?
- Mas desse jeito eu não ganho dinheiro, chefe.
- Tá legal, vá se foder.
- O que, chefe?
- Não, nada. Já sei de tudo o que precisava. OK, Dan, este aqui tá no
ponto. Parabéns. Dá o contrato, pega a assinatura dele, a letra é tão
miúda que nem vai conseguir ler. Acha que somos gente boa. Manda
correndo lá no endereço. O pessoal vai ficar encantado. Há meses que não arrumo melhor contador.

Danforth pega a assinatura, verifica os olhos de novo pra se certificar
se não tem mais vida, põe o contrato e o envelope na mão e
acompanha Herman até a porta, empurrando de leve pra descer a
escada. Bagley simplesmente se recosta na cadeira com um vasto
sorriso de satisfação e fica observando enquanto Danforth passa os 18
restantes pelo espremedor. Seria difícil dizer aonde vão parar todos
aqueles culhões, mas não há que negar, mais dia menos dia, todo homem deixa de ter culhões, os que deixam com maior facilidade
estão rotulados de "casados e com filhos" ou "idade superior a 40".
Assim recostado, enquanto Danforth vai espremendo um a um,
Bagley presta atenção nas conversas:

- É duro achar emprego para um homem da minha idade, ah puxa se é!
Outro canta:
- Oh, baby it's cold outside.
Outro:
- Já estou cansado dessa vida de bookmarker e cafetão, indo sempre
parar na cadeia. Preciso de segurança, segurança...
Outro:
- Tá certo, me diverti feito doido. Agora...
Outro:
- Não me especializei em coisa nenhuma. Todo homem devia se
especializar, não me especializei em nada, o que é que vou fazer?
Outro:
- Já estive em tudo quanto é país - graças ao exército - e sei como são
as coisas.
Outro:
- Se pudesse começar tudo de novo, ia ser dentista ou barbeiro.
Outro:
- Estão sempre desenvolvendo romances, contos e poemas que escrevo.
Que merda eu não posso ir pra Nova York e ficar puxando o saco de
tudo quanto é editor! Não há ninguém com mais talento do que eu,
mas sem pistolão não adianta! Se me contento com qualquer tipo de
trabalho indigno de mim, é por que sou gênio!
Outro:
- Tá vendo como sou bonito? Olha o meu nariz! As orelhas! O cabelo! A
pele! O meu modo de ser! Viu? Tá vendo como sou bonito? Tá vendo
bem? Sabe por que ninguém vai com a minha cara? É porque eu sou
bonito. É tudo inveja. Só por inveja. Pura e simplesmente.

O telefone toca de novo.
- AGÊNCIA DE EMPREGOS SATISFAÇÃO GARANTIDA. Bagley, às suas
ordens. Você o quê? Precisa de um mergulhador? Filha da mãe! Como?
Ah, desculpe. Lógico, evidente, temos dezenas de mergulhadores
desempregados. As duas primeiras semanas de pagamento ficam pra
agência. 500 semanais. Perigoso, sabe, muito arriscado mesmo.
Cracas, caranguejos, tudo mais... algas marinhas, sereias nas rochas.
Polvos. Amarras. Resfriados. É foda, sim. As 2 primeiras semanas de
salário são da agência. Se depois acharem que ele não serve, nós é
que pagamos 200 dólares pra vocês. Por quê? Por quê? Se um
passarinho vem e bota um ovo de ouro na sala da frente da tua casa,
você pergunta POR QUÊ? Pergunta? Vamos lhe mandar um
mergulhador dentro de 45 minutos! Qual o endereço? Ótimo, ótimo, ah
sim, ótimo, é perto do edifício Richfield. Sim, eu sei. 45 minutos.
Obrigado. Passe bem.

Bagley desliga. Já está exausto e o dia mal começou.
- Dan?
- Sim, boneca?
- Me traz um que tenha tipo de mergulhador. Bem barrigudo. Olhos
azuis, um chumaço de pelos no peito, calvície prematura, bastante
estóico, meio corcunda, míope e os primeiros prenúncios, ainda
ignorados, de câncer no esôfago. Qualquer mergulhador é assim. Todo mundo sabe como é. Agora traz um.
- Tá legal, seu cabeça de merda.

Bagley boceja. Danforth desprega um do varal. Traz o infeliz até a
mesa, onde fica parado, de pé. No rótulo se lê "Barney Anderson".

- Oi Barney - diz.
- Bag, onde é que eu estou? - pergunta Barney.
- Na AGÊNCIA SATISFAÇÃO GARANTIDA.
- Pô, estou pra ver dois safados com mais cara de vigaristas do que
vocês!
- Porra, Dan! Qual é?
- Passei quatro vezes pelo espremedor.
- Eu te respondi que tem alguns que são duros de roer!
- Isso é pura conversa, seu burro de merda!
- Quem é que é burro de merda?
- Vocês dois - responde Barney Anderson.
- Quero que você passe três vezes o rabo deste aí no espremedor. - diz
Bagley.
- Tá bem, tá certo, mas primeiro vamos fazer um teste.
- Tá legal. Por exemplo... pede pra este tal de Barney te dizer quais são
os ídolos dele.
- Bom, deixa eu ver... Claver, Dillinger, Che, Malcolm X, Gandhi, Jersey
Joe Walcott, "Grandma", Barker, Fidel Castro, Van Gogh, François
Villon, Hemingway.
- Viu, ele se identifica com todos os derrotados. Assim ele se sente bem.
Tá se preparando pra perder a jogada. Pode contar com a nossa
ajuda. Foi logrado com esse papo de alma e é desse modo que a gente
prende o rabo deles. Alma não existe. É pura cascata. Não existem
ídolos. É tudo onda. Não existe ninguém vitorioso na vida - é pura
cascata, papo furado. Não há santos e nem gênios - tudo não passa de
conversa mole pra boi dormir, conto da carochinha, só pro jogo
continuar. Cada homem se esforça pra sobreviver e ter sorte - se
puder. O resto não dá pra engolir.
- Tá bom, tá bom, já saquei o que você quer dizer! Mas, e o Fidel
Castro? Tava bem gordo na última foto que eu vi.
- Ele só tá durando por que os E.U.A. e a Rússia resolveram deixar o
cara no meio do fogo. Mas vamos supor que, de repente, coloquem as
cartas na mesa? Pra onde é que ele vai se virar? Rapaz, o cacife desse
cara é tão fraco que não dá pra pagar nem a entrada num puteiro
decadente do Egito.
- Vão tomar no cu, vocês dois! Eu gosto de quem eu quiser! - protesta
Barney Anderson.
- Barney, quando o cara não tem onde cair morto, e tá encurralado,
faminto e cansado - ele é capaz de chupar pica, mamica e até de
comer bosta pra poder continuar vivo; ou se conforma ou se suicida. A
raça humana não tá com nada, rapaz, não é flor que se cheire.
- Por isso nós vamos mudar tudo, cara. Aí é que tá o lance. Se já deu
pra chegar na lua, também dá pra limpar a cagada no penico. O mal é
que a gente andou perdendo tempo com o que não devia.
- Você tá doente, garotão. Meio barrigudinho. E começando a ficar
careca. Dan, bota aí o distinto em forma.

Danforth pega Barney Anderson, bate, torce e espreme, sem fazer
casos do grito, três vezes no espremedor, e depois traz de volta.

- Barney? - chama Bagley.
- Pronto, chefe!
- Quais são teus ídolos?
- George Washington, Bob Hope e Mae West, Richard Nixon, os ossos do
Clark Gable e toda a gente que vi na Disneylândia. Joe Louis, Dinah
Shore, Frank Sinatra, Babe Ruth, os Boinas Verdes, porra, todo o
exército e a marinha dos Estados Unidos e, principalmente, os
Fuzileiros Navais, e até o Tesouro Nacional, a CIA, o FBI, a United
Fruit, a patrulha rodoviária, o maldito departamento de policia de Los
Angeles em peso, e os tiras locais também, aliás disse "tiras" por
engano, quando queria dizer "polícia". Depois tem a Marlene Dietrich,
com aquela abertura no lado do vestido até em cima da coxa, ela já
deve andar perto dos 70, não é? Dançando lá em Las Vegas, fiquei de
pau duro, que mulher maravilhosa, a boa vida que leva aqui na
América e a estabilidade do dólar são capazes de manter eternamente
a juventude da gente, entendeu?
- Dan?
- Que é, Bag?
- Este aqui tá mais que no ponto! Mesmo pra um cara pouco sensível
como eu, deu pra ficar com ânsia de vomito. Faz ele assinar o
contratinho dele e manda lá no endereço. Eles vão adorar. Santo
deus, as coisas que a gente tem que fazer pra sobreviver! Às vezes
chego a odiar o próprio trabalho que faço. O que não convém, não é,
Dan?
- Claro que não, Bag. E assim que despachar esse cara de cu, eu tenho
um presentinho pra você - uma dose daquele velho Tônico, tão
gostoso.
- Ah, mas que bom..... qual é mesmo?
- Só meia volta na manivela do espremedor.
- O QUÊ?!
- Ah, não tem nada que se compare pra acabar com as tristezas ou
idéias inconvenientes. E outras coisas no gênero.
- Será que cura de verdade?
- É melhor que aspirina
- Tá legal, vê se livra do cara de cu.

Barney Anderson é despachado escada abaixo. Bagley levanta da
cadeira e vai ate o espremedor mais próximo.

- Essas coroas - a West, a Dietrich, ainda de tetas e cochas de fora,
porra, que coisa mais sem pé nem cabeça, já estavam nessa quando
eu era criança. Como é que pode?
- Tapeando . Esticando a pele, os músculos, por meio de cintas, de
talcos, de refletores, de forros de carne, enchimentos, cremes, palha e
esterco são capazes de deixar a avó da gente com cara de broto?
- A minha já morreu.
- Mesmo assim são capazes.
- É, é sim, acho que você tem razão.

Bagley vai para perto do espremedor.
- Só meia volta na manivela. Dá pra confiar em você?
- Tu não é meu sócio, Bag?
- Claro que sou, Dan.
- Há quanto tempo a gente trabalha junto?
- 25 anos.
- Então tá, quando eu digo MEIA VOLTA , É MEIA VOLTA mesmo.
- E o que é que eu faço?
- Enfia a mão no cilindro, mais nada. É que nem a máquina de lavar a
roupa.
- Ali dentro?
- É. Tá pronto? Oba!
- Ei, cara, não esquece. Só meia volta.
- Lógico, Bag, não confia em mim?
- Agora? Que remédio?
- Andei fodendo tua mulher escondido, sabia?
- Seu miserável filho da puta! Eu te mato!

Danforth deixa o espremedor ligado, senta atrás da mesa de Bagley,
acende um cigarro, e começa a cantar:

Lucky, lucky me,
I can live in luxury Because
I ve got a pocket full of dreams...
I got an empty purse,
But I own the universe,
BecauseI've got a pocket full of dreams...

Se levanta e se aproxima do espremedor e de Bagley
- Você falou meia volta - Bagley reclama - e já foi volta e meia.
- Não confia em mim?
- Mais do que nunca, não sei por que.
- E, no entanto, andei fodendo tua mulher escondido.
- Ah, acho que não tem importância. Já estou cansado de foder ela.
Todo homem cansa de foder sempre a mesma mulher.
- Mas o que eu quero é que você queira que eu foda a tua.
- Bem, eu pouco tô ligando, só não sei exatamente se quero que você
foda.
- Daqui a cinco minutos eu volto.

Danforth se afasta, senta na poltrona giratória de Bagley, põe os pés
em cima da mesa e fica esperando. Gosta de cantar e canta:

I got plenty of nuthin
And nuthin s plenty for me
I got the stars, I got the sun,
I got the shining sea...

Depois de fumar dois cigarros , volta pra junto da máquina.
- Bag, ando fodendo tua mulher escondido.
- Ah, eu quero que você foda, cara! É só o que eu quero! E sabe do que
mais?
- O quê?
- Acho até que gostaria de ver
- Lógico, que dúvida.

Danforth vai ao telefone e disca o número.
- Minnie? É, Dan. Vou até aí pra gente foder de novo. Bag? Ah, vai
junto. Ele quer ver. Não, ninguém tá bêbado aqui. Apenas resolvi
encerrar o expediente por hoje. Já fizemos tudo que tinha pra fazer.
Com o negócio entre Israel e os árabes, e toda essa guerra na África, ninguém mais precisa se preocupar. Biafra é uma palavra muito
bonita, mas como te disse, a gente está indo pra aí. Quero comer o teu
cu. Essas bochechas gordas que você tem, puta que pariu! Sou capaz
também de comer o Bag. Acho que as bochechas dele são maiores que a tua. Fica aí quietinha, paixão, que a gente tá a caminho!
Desliga. Outro telefone toca. Dan atende. - Vai te foder, seu sacana de
merda! Até a ponta dos teus mamilos fedem que nem bosta mole de
cachorro quando tem vento oeste.

Desliga e sorri.Vai até Bagley e tira ele do espremedor. Trancam a
porta do escritório e descem os degraus juntos. Quando chegam na
calçada, o sol está alto e de boa cara. Dá pra enxergar pela
transparência da saia justa das mulheres. E quase se adivinham os
ossos. Há morte e podridão por tudo quanto é lado. Estão em Los
Angeles, perto da esquina da 7º Avenida com a Broadway, o
cruzamento onde os mortos esnobam os mortos, sem saber por que.
Uma brincadeira que qualquer um é capaz de aprender, feito pular
corda, dissecar rãs, mijar na caixa de correspondência ou bater
punheta no cachorro de estimação, os dois cantam:

We got plenty a nuthin
And nuthin is plenty for we...

Chegaram de braço dado na garagem do subsolo, encontraram o
Cadillac 69 de Bag, entram no carro, cada um acende um charuto de
um dólar, Dan no volante, saem dali, quase atropelam um bêbado que
desce a calçada da Pershing Square, viram na direção oeste, rumo a
pista em alta velocidade, a liberdade ao Vietnã, ao exército, é foda, às
vezes extensões de gramado, estátuas nuas e vinho francês, a Beverly
Hills ...
Bagley se abaixa e abre a braguilha de Danforth, que continua
dirigindo.
Espero que deixe um pouco pra mulher dele, pensa Dan.
É de manhã e não faz muito calor em Los Angeles ou talvez já seja de
tarde. Verifica no relógio do painel de instrumentos - os ponteiros
marcam 11 e 37, a hora exata em que chega ao orgasmo. Aumenta a
velocidade do Cadillac. 130 km por hora. O asfalto desliza no solo
como os túmulos dos mortos. Liga a TV do painel, depois pega o
telefone e aí se lembra de fechar a braguilha.

- Minnie, eu amo você.
- Eu também te amo, Dan - retrucou ela - aquele vagabundo tá contigo?
- Tá bem do meu lado, acabou de encher a boca.
- Ah Dan, não desperdiça.

Ele solta uma gargalhada e desliga. Quase batem no crioulo que dirige
um carro-socorro. Não é negro coisa nenhuma, um tição e mais nada.
Não há melhor cidade no mundo pra quem está numa boa, e só uma
pior pra quem já dançou - o grande Danforth aumenta a velocidade
para 140. Um guarda de moto sorri quando o carro passa feito raio.
Talvez ligue depois para Bob, de noite. Bob é sempre tão engraçado.
Os 12 caras que escrevem para ele têm o dom de bolar grandes
piadas. E Bob tem a naturalidade de uma bosta de cavalo incrível.
Joga fora o charuto de um dólar, acende outro, aumenta a velocidade
do Cadillac para 150 e sai chispando no sol que nem flecha, os
negócios e a vida correm a mil maravilhas, e os pneus rodam em cima
dos mortos, dos moribundos e dos futuros defuntos.

ZUUUUUUUMMMMMMM!


27 abril 2007

Taiguara Chalar da Silva


Avanzada
(Taiguara)

Soy un loco,
Ya lo se
Pero comprendam
Que es mi modo
Simplemente de pensar
Y que culpa tengo yo
Si está en mis huesos
Esta forma
Un tanto estraña
De cantar

Las ventanas
De hace tiempo están cerradas
Porque hay normas
Y conceptos por vencer
Alguien tiene que atrever-se
A dar el paso
Y entreabrir-las
Para un nuevo amanecer

(em Guarani)
"RO JHACJHUGHI CHE RETÁ
ÄICHAA YAPOVA
PURAJHEI TAPÉ PYAJHÚ
PYCUIJHARÁ
CHE RENDUNA
JHA E MYASÁI
NDE YVY APE ARI
JHA I CATURAMO E ÑOTÏ
JHEÑOIJHAGÜA"

(Tradução)

"Porque eu te amo
Meu país, eu faço isto:
Um novo canto
Para trilhar novos caminhos
Me ouve...
E espalha
Pelo teu chão
E, se possível, planta
Para que ele brote."

José Martí


Cultivo una rosa blanca
(José Martí)

Cultivo una rosa blanca
En julio como en enero
Para el amigo sincero
Que me da su mano franca

Y para el cruel que me arranca
El corazón con que vivo
Cardo ni ortiga cultivo
cultivo una rosa blanca

18 abril 2007


Teologia do Traste
(Manoel de Barros)


As coisas jogadas fora por motivo de traste

são objetos da minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra por motivos de traste uma
lata: mendigos, cozinheiras e até poetas podem
pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as idéias.
Porque as idéias sendo objetos concebidos pelo
espírito, elas são abstratas.
Se você jogar um objeto abstrato na terra por
motivo de traste, ninguém pode pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pela rua moda um caminhão de areia.
E as idéias por serem um objeto abstrato concebido
pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.
Idéias são a luz do espírito — a gente sabe.
Há idéias luminosas — a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba
atômica, a bomba atôm....................................
....................................................................Agora
Eu queria que os vermes iluminassem.
Eu queria que os trastes iluminassem.


16 março 2007


Plebiscito
(Artur Azevedo)

A cena passa-se em 1890.

A família está toda reunida na sala de jantar.

O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.

Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.

Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.

Silêncio.

De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:

- Papai, que é plebiscito?

O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.

O pequeno insiste:

- Papai?

Pausa:

- Papai?

Dona Bernardina intervém:

- Óseu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar que lhe faz mal.

O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.

- Que é? que desejam vocês?

- Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.

- Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?

- Se soubesse não perguntava.

O Senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:

- Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!

- Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.

- Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?

- Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que e plebiscito.

- Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!

- A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...

- A senhora o que quer é enfezar-me!

- Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, e o menino ficou sem saber!

- Proletário, acudiu o senhor Rodrigues, é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.

- Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!

- Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!

- Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: - Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.

O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:

- Mas se eu sei!

- Pois se sabe, diga!

- Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!

E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.

No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...

A menina toma a palavra:

- Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!

- Não fosse tolo, observa dona Bernardina, e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!

- Pois sim, acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão; pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.

- Sim! sim! façam as pazes! diz a menina em tom meigo e suplicante. Que tolice! duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito!

Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:

- Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.

O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.

- É boa! brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio; é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...

A mulher e os filhos aproximam-se dele.

O homem continua num tom profundamente dogmático:

- Plebiscito.

E olha para todos os lados a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.

- Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.

- Ah! suspiram todos, aliviados.

- Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...


O buraco do azeite
(Mão Branca)

O casal comprou azeite no primeiro mercado que fizeram depois de casados. Quando foi usá-lo, Jorge se surpreendeu:

- Você é canhota?

- Não. – A esposa comia salada.

- Então por que furou a lata do azeite ao contrário?

- Contrário?

- Sim, você fez furos na diagonal inversa da tampa. – Serviu-se do azeite virando a lata para frente com dificuldade. – Tá vendo? – Trocou a lata de mão. – Com a mão esquerda fica fácil. Os buracos estão do lado contrário.

Ela percebeu a diferença e concordou que a lata serviria melhor aos canhotos. Ele abocanhou satisfeito uma garfada de tomate.

- Não bata o garfo nos dentes. – Pediu Rebeca. – Me causa gastura.

- Desculpe.

Jorge foi à cozinha atrás de azeite para a lentilha. Havia comprado uma nova lata. A grande surpresa foi quando percebeu que já estava com furos. Ao contrário.

- Querida, você furou a lata de azeite ao contrário novamente.

- Foi? – Ela nem se virou. – Sem querer.

- Eu sei. Preste atenção na próxima, por favor.

Ela continuou sem se virar, mas levantou os olhos quando ele levou o garfo à boca.

- Rebeca! – Falou com um tanto de raiva na voz. – O buraco do azeite tá ao contrário!

Ela sustentou o abridor de latas no ar.

- Então por que você não veio fazer os furos? Só sabe reclamar.

- Você não me chamou. Poderia me deixar furar a próxima?

- Claro.

Jorge sentou-se para a janta. O casamento estava horrível, eram distantes, surgira a tão falada barreira entre eles. Mesmo que a aparente tranqüilidade do casal sugerisse conforto, no fundo ele achava que estava representando um papel: o de marido desprezado. Ela fazia todas as suas vontades contanto que fossem convenientes, porém quando encasquetava com algo, não havia conversa nem opinião adversa. A dela deveria prevalecer. O buraco do azeite era o exemplo perfeito. Bastou um dia ele pedir para que o buraco fosse do lado inverso da lata para ela incitar o mais íntimo dos confrontos, o da força de vontade. Quem cederia primeiro, ela ou ele? Se ele perdesse a paciência e ao menos gritasse, sabia que ela retornaria com tantas pedras fosse capaz de ter guardado durante os sete anos do casamento. Se ele pedisse mais uma vez que ela atentasse para os furos no azeite, deixaria claro quão ele era bundão, um verdadeiro frouxo nas decisões do casal.

Mas se ela se cansasse de provocá-lo com o azeite, ah, ele venceria. Como poderia fazer isso? Nunca fora dado a essas intriguinhas ridículas.

Serviu-se de salada e jorrou azeite por cima, sem muita dificuldade, já se acostumara aos buracos ao contrário. Preparou o garfo com alface, cebola e tomate e o levou a boca.

- Chega! – Gritou Rebeca, batendo as mãos na mesa. Talheres voaram. – Não agüento mais! – Apertou os olhos e apontou para Jorge. – Você faz de propósito. Sete anos e você continua me provocando. O que quer? O que ganha com isso? Você é um monstro! – E mergulhou a cabeça nas mãos num pranto sofrido.

- Tá louca, mulher? – Foi a reação de Jorge. – Do que você tá falando?

- Canalha, sádico, desprezível. – Balbuciou.

- Por que, Rebeca, por que?

- O garfo nos dentes. Não bata o garfo nos dentes.

06 março 2007


Almas de carne
(Kinho Vaz)


Clara saiu de casa cedo. Estava péssima. Queria se enfiar num quarto escuro e deixar a sensação de morte passar. Mas não podia. Tinha que sair e viver. Mesmo que fosse para afrontar o passado. Ainda sentia a presença do marido. Um idiota manipulador de mentes. Dono de um egoísmo sem precedentes. Quando se conheceram era diferente. Fazia outra figura. Talvez para impressioná-la. Mostrava-se compreensivo, liberal, dono de um discurso cativante. Conseguiu dela o que queria. A confiança. O crédito para uma vida a dois. O tempo revelou a sua verdadeira face. Um déspota. Um falso. Um mentiroso. Um doente. Fez de Clara a sua marionete. Um boneco de ventríloquo. Conduziu seus passos. Selecionou suas amizades. Direcionou seus pensamentos. Moldou a sua conduta de tal forma, que ela deixou de ser autêntica.



Quando se deu conta já era tarde. Não sabia mais andar sozinha. Não sabia decidir sozinha. Estava presa à submissão. À rotina de um casamento desigual. Era como um passarinho de gaiola. Sonha com a liberdade, mas não sabe o que fazer com ela. Aquela não era apenas mais uma das incontáveis manhãs de ódio na vida de Clara. Era diferente. Era definitiva. Não podia mais voltar atrás. Saiu porta afora pensando alto. Que fosse tudo pra puta que o pariu. Junto com ele. Que se danasse. Que ficasse podre. Sujo, como um pedaço de papel higiênico usado. Demônio. Deveria mesmo era ter sido corno. Era isso que merecia. Teve sorte dela não ser uma mulher vagabunda. A vadia que ele queria ter. Fosse verdade, já teria metido um bom par de chifres naquela cabeça imunda. Ele bem que merecia. Infeliz. Onde já se viu? Achar que ela aceitaria uma situação daquelas. O que ele pensava da vida? O que ele pensava dela?



Clara nunca reclamou das esquisitices dele. Aceitava as taras do marido. Sujeitava-se, vá lá. Mas era melhor que ele tivesse em casa do que procurasse na rua. Mesmo o que não fosse bom para ela. Mas tudo tem o seu limite. Uma situação daquelas, ela nunca permitiria. A culpa foi dela mesma. Devia ter mantido os olhos mais abertos. Não faltaram sinais. Desde que a sua irmã se separou do marido e veio morar com eles. Não queria ela em casa. Mas ele ofereceu abrigo sem consultá-la. Ela reclamou, podiam perder a liberdade. Ele bateu pé, disse que era sangue da esposa, não podia ficar na rua. Ela cedeu por pena da irmã. Teve medo de mais tarde vir a sentir algum remorso. No princípio até achou bom. As brigas com o marido diminuíram. A presença da irmã inibia as suas explosões de ódio. Percebeu que ele já não era o mesmo. Procurava ser amável para impressionar. Tratava bem as duas. Chegava cedo para jantarem juntos. Trazia vinho e doces. Mimos que há muito não fazia. Até mesmo o noticiário da TV foi trocado pela novela do outro canal. Sem reclamações. Viu de novo o homem que conquistou seu coração. Relaxou a guarda. Permitiu que a irmã também agradasse o marido. E essa soube aproveitar a situação. Fez doce e salgado. Lenço bordado com iniciais, remendos apurados nas meias, botões reforçados nos blusões. Prendas de um lar que não era seu. Assumiu parte das obrigações de esposa. Carinhos para um marido que não era seu. A esposa de verdade achou tudo normal. Uma forma de retribuição. Ele não poupou elogios. Nem mendigou amabilidades. Sempre comparando as duas, nisso ou naquilo. Num tempero de feijão mais gostoso. Numa cerveja melhor servida. Mesmo no bife de fígado, que ele sempre dizia que só a esposa fazia ao seu gosto. Até nisso comparou. Dando vantagens aos feitos da cunhada. Tudo bem para a esposa, que trabalhava menos. Mas também tinha menos espaço em sua própria casa. Que assim fosse. Que se visse aonde aquilo iria dar. Em boa coisa não poderia ser. Não deu outra. Com o passar dos dias o marido voltou a fustigar Clara. No início, sozinhos. Na cama. Reclamando de um sexo mal feito. De uma vontade mal atendida. De uma menstruação fora de hora. De nada. Depois passou a desfeita-la na frente da irmã. Essa baixava os olhos e saía de perto. Buscava o seu quarto. Ato de fuga ou conivência. Não tentava apaziguar os ânimos. Nem defender esse ou aquele. Simplesmente saía de perto. Abandonava o casal sozinho. Ele aos berros. Ela aos prantos. Nunca ofereceu uma palavra de apoio à Clara. Nem antes nem depois das brigas.



Certa vez jantavam calados. Olhos baixos nos pratos. Ele disse que tinha duas entradas para o teatro. Clara disse que se aprontaria depois da refeição. Ele disse que não. Era mais justo um sorteio entre ela e a irmã. Ambas trabalhavam na casa. Clara ficou surpresa e explodiu. Ela era a esposa, a dona da casa. Ele não disfarçou a rigidez, dizendo que o sorteio seria mais justo. Clara não quis a humilhação. Que levasse a outra com ele. Para ele tudo bem. A outra não disse nada. Mostrava as garras na mudez permissiva. Mas insinuou um sorriso no olhar.



Clara ouviu os dois saindo. Amaldiçoou o marido e a irmã. Maldisse o dia que ela pôs os pés na sua casa. Chorou e sofreu sozinha, na cama. Pensou em milhões de vinganças. Mas sofrer e odiar cansa. Acabou dormindo. Acordou horas mais tarde. Ainda estava sozinha na cama. A amargura havia ressecado a sua boca. Foi beber água. Pensou nos dois. Já deveriam ter voltado. Mas a sua cama estava vazia. Foi então que um pensamento pesou o seu coração. Um fio de aço estrangulou seu estômago. Levou as mãos à boca para sufocar o desespero. Não podia ser. Isso não!



Caminhou na direção do quarto onde dormia a irmã. Pensou em voltar a cada passo. Mas quanto mais se aproximava, mais alto soava o seu desgosto. Até que viu o que os seus olhos não queriam. A irmã e o marido. O marido e a irmã. Os dois juntos. Mosaico de pernas e braços. Tudo o que ela fazia com ele, a irmã repetia. As mesmas taras. As mesmas esquisitices. Só que a irmã parecia gostar. Viu prazer em seu rosto. Viu satisfação na sua entrega às sujeiras dele. Estava gostando a safada. Cadela. Vadia. Puta. Decepção e ódio se alternaram com rapidez. Clara não conseguia se conter. Pensou em gritar, invadir e espancar os dois. Mas era pouco. Muito pouco. Era preciso mais. Era preciso que a sua dor fosse deles. Que a dor deles fosse a sua vingança. Conseguiu se conter. Cravou os dentes na própria mão. Mastigou sua angustia. Engoliu em seco e voltou para a sua cama.



A vingança é instintiva e faz do vingador um forte. Um determinado. Um criativo da obsessão. Por isso clara esperou em silêncio. Por isso cedeu em silêncio, quando o marido procurou seu leito e requisitou seu corpo. A irmã não lhe bastou. Queria mais carne o canibal. E assim foi. Calar sem compartilhar. Amar sem sentir. Provar sem gosto. Chorar sem lágrimas. Até que a fúria da besta se esvaiu, enchendo seu corpo de lixo. Molhando seu rosto de baba. Sujando sua vida de merda.



Clara levantou cedo como sempre. A irmã a seguiu. Nenhuma palavra foi dita. Prepararam o café com a certeza do óbvio. Um encontro de olhares poria tudo a perder. Serviu o marido. Serviu o cunhado. Serviu-se das duas. Saiu refestelado.



Clara foi atriz. Interpretou o papel da dor contida. Seria por pouco tempo. A farsa seguiu em todos, como um acordo tácito. Nada se revelou. Nada se reparou por todo o dia. Nem quando clara calça luvas de limpeza e esconde aquela faca. Essa de aço longo, que a irmã usou para fatiar o fígado em bifes. Carne de outros prazeres. Foi discreta naquele momento, porque sempre foi assim. Seguiu muda nas horas do dia. Permitiu a companhia permissiva. Almoçaram as duas. Lancharam as duas. Jantaram os três. E outra vez a noite trouxe os rituais da besta. Dos leitos que se invertem. Das camas que se multiplicam. Dos corpos que se repartem. Das almas que se deixam subjugar. Até que novamente ocorra o esvair de lixo. O molhar da baba. A vida de merda.



Quando a faca desceu os olhos do marido se abriram. E assim permaneceram até que Clara conseguiu conter o seu ímpeto. Firme. Decidida. Cansada. Continuou chorando sem lágrimas. Olhava com raiva aquele rosto assustado e sem vida. Poderia ter fechado os seus olhos. Mas não fechou. Ele deveria assistir ao fim. Como ela assistiu, na noite passada. Mas ele não bastava. Faltava castigar a outra. Sem morte. É sangue dos seus. Deixasse estar que a sua hora já estava marcada. O dela já estava guardado. Segurou o pênis do marido. Instrumento de tortura. Início e fim do seu martírio. Emissário dos esgotos de uma mente podre. Um mal que deve ser cortado pela raiz. Viu graça na situação. Mas continuou contrita. Terminou o que havia começado e saiu, enquanto não havia luz. Foi à cozinha e temperou com o capricho o regalo macabro. Guarneceu com batatas e ovos cozidos. Cobriu com papel alumínio e guardou no forno. Estava pronto. A irmã teria o seu prato preferido. A faca foi para a gaveta do armário. Suja do sangue maldito. Assinada com as digitais da traição. Voltou ao quarto. Ele permanecia lá. Inerte. Com os olhos fixos na escuridão eterna. Tomou banho. Limpou-se da morte. Vestiu sua roupa de festa. Juntou o que sobrou daquela vida em duas malas e saiu. Sem carregar nenhum remorso.

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