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27 outubro 2006



Há tantas coisas germinando na noite, que nem sei como enumerá-las. À noite nascem as revoluções tanto as que vão triunfar como as que só se realizam em pensamento, e são quase todas. Os revolucionários viram-se, inquietos, na cama. E também os que se converterão, pela manhã, a religiões novas. E os amorosos. Análises emocionais levadas ao extremo da tortura arrastam-se pela horas lentas da noite. Como a noite é rica! A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos.

Demétrio quis prolongar a noite obturando todas as frestas do quarto, para que não entrasse a luz. Luz não entrou. Demétrio gozou da noite plena, continuada, e todos os pensamentos lhe floresciam. Construiu sistemas filosóficos. A escuridão era propícia a teorias políticas. Nenhum crítico foi mais perspicaz do que Demétrio, na literatura e nas artes. Aquela noite era fantástica. Demétrio quis experimentar as sensações de horror, êxtase, humilhação, glória, poder e morte. Morreu, mesmo no escuro. Tendo sentido a morte em seu interior físico, não pôde mais tirá-la de si. É o único morto, conscientemente morto, de que já ouvi falar nesta vida. A noite é fantástica.

Contos Plausíveis, in Andrade, C. D. (1992): Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, pg. 1240.

Diálogo Filosófico (Carlos Drummond de Andrade)

  • As coisas não são o que são, mas também não são o que não são - disse o professor suíço ao estudante brasileiro.
  • Então, que são as coisas? - inquiriu o estudante.
  • As coisas simplesmente não.
  • Sem verbo?
  • Claro que sem verbo. O verbo não é coisa.
  • E que quer dizer coisas não?
  • Quer dizer o não das coisas, se você for suficientemente atilado para percebê-lo.
  • Então as coisas não têm um sim?
  • O sim das coisas é o não. E o não é sem coisa. Portanto, coisa e não são a mesma coisa, ou o mesmo não.

O professor tirou do bolso uma não-barra de chocolate e comeu um pedacinho, sem oferecer outro ao aluno, porque o chocolate era não.

Contos Plausíveis, in Andrade, C. D. (1992): Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, pg. 1261.




23 outubro 2006


Quando a literatura veste e dá contornos à filosofia. Entendeu, Señor Cornijo ?

UM APÓLOGO
(Machado de Assis)


ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a
agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

01 outubro 2006


SURDO MUDO
(Edwood Lautrec)

Muda nada, gira o mundo
Some o raso e vem o fundo
Muda o mundo, Cala o mudo
Fala nada , Falta tudo
Tudo nada, Mundo mudo
Falta fala, Surdo e mudo
Ouve nada, Mundo surdo
Fala tudo, Nada ouve
Surdo tudo, Mudo surdo
Vejo tudo, Cego nada
Vejo mundo, Nada muda
Calado não ouço, Vejo e não faço
Eixo quieto, para tudo, Mundo cego
Surdo e mudo.