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03 setembro 2011

TARDE DEMAIS PARA MIM



TARDE DEMAIS PARA MIM

(Alexandre Campinas, Toalhas Vermelhas, Scortecci, 2005)


-1-


Em minha mesa de trabalho tentava terminar o interminável. Mais um relatório de vendas e todas as suas minúcias. Assim passavam meus dias. Quando ao final do expediente me sentia livre do fardo da burocracia, assolava-me o monstro da certeza de que no dia seguinte haveria mais relatórios. Relatórios iguais, todos iguais, tudo igual. Sempre. Ô vidinha desfavorecida ...


Aquela rotina terminaria por acabar com minha vida. Eu já intuía no íntimo do ser (e temia deveras) que alguma coisa fatalmente me aconteceria por causa daquele insosso ganha-pão. Carteiras e mais carteiras do meu cigarro eram devoradas na mesma medida em que devorada era a minha vida. Uma rotina absolutamente tola.


Pior: quando entrei na empresa, substituindo a atual esposa do dono, a Odete, digo, Dona Odete, que por sua vez havia recém-deixado a condição de amante do mesmo (e também do gerente de vendas, e eventual caso do chefe de expedição, que ninguém nos ouça), cumpri o ritual de arrumar as minhas coisas naquela que seria minha mesa e túmulo secular.


Por curiosidade ou por ter que encaixar uma gaveta, sei lá, tive que tatear por baixo e, é de pasmar: encontrei vários caroços grudados sob o plano da escrivaninha, esbarrando por fim num “caroço ainda não totalmente consolidado”. Odete era nojenta. Eu odiava Odete...


Perua. Perua mesmo. Do tipo que por onde passava tornava o ar irrespirável. Acho que Odete era o último ser do planeta que ainda possuía aquele vidrão bisoteé “pet” de Contourré. E de quebra, uma enorme coleção com Gelattis de todas as cores. O cítrico então, era o inferno em laranja e limão. Mas também, o que falar de uma mulher que roubou um homem que ainda usava Lancaster...


Só agora sei que, na verdade, o que acontecia era que eu invejava Odete. Invejava os seus tailleurs amarelo-peido sobre camisas de seda vermelha. Suas longas unhas encarnadas renderam-lhe entre os assalariados o apelido de Zé do Caixão. Acho que amava aquelas unhas e as costas que arranhou em aventuras. Invejava Odete pelo caráter de aventura que tinha sua vida. Ir para o motel com o chefe na hora do almoço, virar esposa, pintar cabelo blondie, dar pro gerente de vendas, usar salto quinze... Ainda ontem mesmo soube que o chefe de expedição traçou Odete em sua minúscula salinha de cambaleantes e empoeiradas estantes de aço enquanto o gerente de vendas distraía o chefe. E o distraía com os relatórios que eu fiz ! Odiava Odete, ai que inveja ...


Pedia apenas uma graça divina (não por dinheiro, reconhecimento profissional ou qualquer outra coisa pelo que se lutava tanto naqueles dias... ): eu queria o inusitado. Queria que algo acontecesse subitamente e me arrebatasse tirando meus pés do chão. Aquele maldito chão acarpetado de um caramelo irritante que me fazia mal desde o embrulho que causava ao meu estômago até a crônica rinite que ao passar de longos quinze anos havia devorado minhas mucosas nasais. Por vezes divagando em pensamentos tentava imaginar – baseada em seu ciclo de vida – quantas gerações de ácaros passaram por aquela merda de carpete nestes últimos quinze anos... felizes ácaros ... vida curta ...


Eu andava aspirando por algo além do mal-humor do patrão, o Dr. Esgas. Desejava mais do que as toscas cantadas dos vendedores, dos micros cocôs de baratas no fundo de minhas gavetas... Baratas. Afinal por onde andam durante o dia que não aparecem? Qual diversão achavam em minhas gavetas se não roiam, não procriavam, não deixavam ovos... Apenas cagavam, e como cagavam em minhas gavetas...


-2-


Enfim Deus atendeu às minhas preces: a redenção afinal. Pedro Antonio. Surgiu em minha vida há cinco meses. Se por um lado toda a parte diurna de minha existência estava condenada, as noites com Pedro passaram a me compensar plenamente.


Ele mudou radicalmente minha vida. Pedro Antonio levou-me às mais incríveis aventuras. Foram meses felizes nos quais eu fui me viciando na sua presença. Alto, bonito, endinheirado, Pedro estava consolidado em sua vida, um homem centrado. Ele foi um tremendo sonho. O grande sonho da minha vida. Eu não conseguia imaginar como sobrevivera até então sem ele.


Foi o estímulo para continuar vivendo aquela besteira de vida. Era chegar em casa para logo em seguida encontrar com ele. Não me importava saber que Pedro não era só meu, sabia de suas mulheres, mas era para mim que ele se abria. Ninguém conhecia mais o meu homem do que eu. Dizia todos os dias aquelas coisas lindas que só ele sabia dizer. Exceto aos domingos.


Os domingos eram o grande mistério da vida de Pedro. Ele simplesmente desaparecia nesses dias. Ninguém, mas ninguém mesmo neste mundo, sabia sobre seus domingos. Tenho para mim que ele ficava trancado em algum cubículo, desligado do mundo exterior. Aproveitava os domingos para planejar nossas próximas aventuras.


Eu já não existia mais sem o Pedro Antonio.


Os sábados eram sagrados. Eu me preparava para o Pedro Antonio. Pela manhã, na diminuta área de serviço do meu apartamento eu tingia os cabelos, pintava minhas unhas no mesmo tom das unhas da Odete, Dona Odete, aquela grande rameira. Após o almoço voltava para a área para aproveitar uma réstia de sol que batia na parede entre três e cinco horas da tarde. Espremia-me junto a esta parede, colava-me mesmo, para pegar algum bronzeado que desse cor a minha pele. Estava sempre pronta quando ele chegava pontualmente as seis e trinta.


Mas hoje não daria...


-3-


Fomos obrigados a trabalhar neste sábado. Havia um enorme relatório que deveria estar pronto na segunda-feira, dia de fiscalização da receita. Cheguei as oito e tranquei-me em meus afazeres tentando estar absolutamente concentrada e intensamente voltada para terminar o meu serviço a tempo.


Era assim: em tudo o que fazia punha o Pedro como motivo e fim. Hoje não seria diferente. Apesar do imenso trabalho, sabia que terminaria a tempo. Consegui. Quatro e meia. Tudo pronto. O meu nervosismo, apreensão e ansiedade haviam disparado os sintomas da rinite, o que fez apressar-me ainda mais para fugir daquele carpete e tudo o que representava para mim. Apertando um pouco, ainda daria tempo para as unhas, se a condução não demorasse a passar. Depedindo-me do assoberbado Dr. Esgas com em seus livros-caixa, entreguei o relatório.


Hoje estive na casa de Odete.


Não é que o muquirana do Dr. Esgas mandou levar uma jóia com que presenteava a safada pelo aniversário de casamento junto com flores e um infame cartãozinho que dizia: - “Bombonzinho de Chocolate Branco: estou queimando a mufa. Tudo se encaminhará para que daqui a pouco eu esteja em nosso ninho. Vamos fazer uma comemoração maravilhosa. Deixe pronto o creme de chantili. Vou te devorar. Um beijo sempre apaixonado do seu Guinha.”


Pensei que eu fosse vomitar ...


Exatamente o dia seguinte do tal encontro dela com o chefe de expedição naquela salinha fétida ! Que grande filho da puta era o Dr. Esgas ! Custava mandar o contínuo, custava ? Mas não ... Tinha que ser a Maria Tereza aqui. O contínuo estava com a mãe doente, disse o Dr. Esgas. Bem na minha hora, eu que tanto corri e sofri para dar tempo de ver o Pedro ... Ainda por cima nem me deu o dinheiro do ônibus. Maldito Guinha. Ainda por cima ela o chamava de Esguinha, Guinha ...


Corri muito. A piranhona demorou a me receber. Fiquei esperando em sua enorme e luxuosamente brega sala do apartamento “um por andar” naquele bairro de classe alta. Aquilo parecia uma loja de móveis. Quatro conjuntos de sofás, haja bunda ! Quadros desses que não tem arte, mas se compra em galerias de shopping para “compor a decoração”, tapetes persas pendurados nas paredes, almofadas de oncinha e enormes vasos com penas de pavão, um exagero, um horror, sem falar no piano de cauda.


Este eu já conhecia de tanto o Dr. Esgas falar. Era o seu orgulho, nem ele nem a Odete tocavam, mas tinha um mecanismo que o fazia tocar sozinho. Bastava escolher a música. Eu não merecia isto ! A casa de Pedro tinha muito mais requinte. Tinha uma decoração de muito bom gosto, não era essas coisas de Miami Beach.


Meu deus ! O Pedro ! Seis horas e hoje – tenho certeza disto - ele fará o pedido de casamento ... Não, pelo amor de Deus não... Anda Odete, anda ! Vi passar um vulto familiar pelo corredor. Sim, registrei, era o contínuo ... Puta, puta, puta. Mil vezes puta. Então ela veio: tinha os cabelos molhados e estava metida num robe em matelassé de seda rosa. Bombom de merda ! Recebeu o presente e sequer olhou para mim. Despedi-me e saí desabalada.


-4-


Chovia muito quando cheguei a calçada. Um temporal como há muito não se via. Nem ônibus, nem táxi, nem gente ... Lembrei de um filme antigo em que umas pessoas ficavam presas numa caverna enquanto por algum motivo a humanidade se extinguia numa catástrofe qualquer. Quando eles finalmente escapavam da caverna, não havia mais mundo.


Parecia que não havia mais mundo, tudo deserto. Água, muita água. Eu estava no ponto, rogando a todos os santos que me mandassem condução. Pedro Antonio não esperaria, não perdoaria meu atraso. Um carro luxuoso passou sobre as poças, ensopando o que restava de mim. Eu reparei. Era o carro do Dr. Esgas. Por que ele fez isto comigo? Se iria chegar a tempo, por que então não trouxe ele mesmo o presente ?


Não tive dúvidas. Com o carro já indo longe, gritei com toda as forças: - Guinha, seu corno filho da puta ! Corre e ainda verá o contínuo tratar da mamãe, chifrudo !


O farol do ônibus no meio das lufas de água despertou-me da cólera. Dei sinal e subi tropeçando em minha angústia. O trocador perguntou se eu estava bem. Meu olhar fulminante no seu quase lhe arrancou os olhos das órbitas. Será que ele não sabia que Pedro não iria esperar ? Trocador idiota. Não, não estou bem. Estou atrasada, chove pra caralho, eu ainda tenho que atravessar a cidade e pegar mais um ônibus onde provavelmente outro trocador imbecil como você fará esta mesma pergunta. E avançando para a roleta com o vale-transporte em riste: você quer saber mais alguma coisa !!?? Não, ele não queria.


Sete horas. A segunda condução não passou. Tomei um táxi. O único que restava naquele ponto do centro. O motorista ainda queria recusar a corrida... Praticamente obriguei o homem a levar-me em casa. Pelo caminho os bairros estavam sem energia elétrica e eu quase morria esperando encontrar luz a cada esquina que passava. O motorista insistia em puxar conversa comigo, falava sobre o tempo, sobre a política, as últimas do futebol. Falava sem parar. Uma agonia sem fim. Já não suportava mais sua voz... Sem luz como seria ? Como faria ? Ai meu Deus, ai de mim. Finalmente chegamos e, sorte, havia luz no prédio. Paguei e subi correndo, ele ainda gritou:


- “Madame, o troco ...”


- Enfia no cu, gritei já subindo as escadas.


Sete e meia. Abri a porta num estrondo. Escorreguei no tapete, caindo em frente a TV com os joelhos queimados pelo atrito com o parquete. OK, valeu. Caí no lugar certo. Quando finalmente consegui ligar a caixa mágica para liberar o Pedro Antonio só para mim, vi apenas escrita na tela a palavra FIM e os créditos da novela. Ali, ajoelhada assisti em prantos ao fim da minha vida. Nunca mais teria o Pedro Antonio só para mim. FIM, realmente era o fim.


O mundo sequer me deu chance de explicar o atraso ao Pedro Antonio.


Isto foi tudo o que aconteceu, delegado.


Naquela hora, fiquei cega, perdi o senso das coisas. Nem sei como voltei ao prédio do Dr. Esgas e como fiz para entrar no apartamento. Só me recordo a partir do momento em que entrei na cozinha procurando por eles. Foi lá que eu achei este facão que está aí em cima de sua mesa. Silenciosamente espreitei o quarto do casal tentando identificar as vozes. Aí estavam eles. O que vi estarreceu-me.


Aquela piranha sob ele, toda melecada de creme chantili,. Grotesco, enojante.


Lembrei-me então de que Pedro estava irremediavelmente morto e, por isto, eu suicidara. Nem deu tempo de mudarem de posição. Gozei a sensação da lâmina penetrando facilmente entre as gordas e macias costelas do Dr. Esgas. Fácil, muito fácil. Puxei de volta e continuei sobre ambos com os golpes numa catarse.


O corno morreria por último. Ainda me olhou sob o sangue que lhe empapava as vistas e tão bem combinava com as unhas da Odete. A vaca da Odete. Perguntou:


  • “Dona Maria Teresa, por quê ?”


  • Tarde, doutor, muito tarde. Tarde demais para mim.


-*-

23 julho 2011

Ilha
(Alexandre Campinas)


“O que amas de verdade não te será arrancado
O que amas de verdade é tua herança verdadeira”
(Ezra Pound)


Cartinha pros ilhéus:

É o que se repete amiúde: Nenhum homem é uma ilha. Eu, contrariando o velho axioma, digo que sou. Sempre fui Ilha. Pertenço à Ilha, que é gênese. Segundos antes da criação de céus e terra: a Ilha.


Atrevo-me, mesmo, a desdizer “As Origens” e gritar que Não ! Não havia terra informe e vazia sob as trevas. Havia a Ilha – e eu nela. Daí vieram o Fiat Lux, o firmamento entre as águas, o elemento árido, as plantas (todas as da Ilha: de jaca, de fruta-pão, de tamarindo, de amêndoa e de muitas, muitas mangas).


Da Ilha nasceram os luzeiros: o sol abrasador - que torna as águas tépidas -, as infinitas estrelas (e, talvez, os aviões rumo ao pouso noturno) e uma lua incomensurável, amarelo-avermelhada, indescritível para quem nunca viu. E quando o Criador, no quinto dia, lembrou-se de seres marinhos que pululassem as águas, é certo que pensava em siris graúdos e azuis, camarões habitantes das algas que se misturam nas espumas das marolas, mexilhões, cocorocas ronronantes e carapicús prateados, entretanto a Escritura menciona também os monstros marinhos, a saber (quem pesca, entende): bagres traiçoeiros de perversos aguilhões, peixes-voadores, ouriços, baiacús e marias-da-toca.


Também criou pássaros, como os bem-te-vis, gaivotas, fragatas. Canoros ou não, todos adoráveis. O Texto esquece-se, porém, de outra espécie voadora. A cigarra deve ter sido dada à luz também no quinto dia, pois está lá, na Ilha, para quem sempre espera um dia seguinte de pleno sol. Depois veio toda sorte de animal. Cachorros às pencas, cavalos e suas charretes, gatos indolentes e uma infinidade de morcegos.


Por fim, no sexto dia, viemos. Animais outros, à imagem e semelhança do Divino. Criados a fim de reinar sobre tudo, e, para Divino desencargo, arrojar corpos nas areias noturnas da praia da Imbuca e multiplicar (ou não), fornicando até as primeiras luzes da aurora, exalando contagiantes odores acres, ralando joelhos. Aliás, sobre os joelhos, paira-me um quê de dúvida sobre a justiça do descanso do sétimo dia. Mas, tudo bem, depois o homem inventou o mercurocromo.


Agarro-me a esse universo mitológico, tão próprio, no momento em que soa a sirene da estação anunciando o fechamento dos portões e a barca range, lotada, contra o cais flutuante, soando três apitos. Sentado na boca aberta da proa, olhos marejados, ouço o ronco cansado da casa de máquinas. Sinto-o vibrando como vibra em mim a saudade antecipada de quem veio passar apenas um dia na Ilha, depois de tantos verões e férias inteiras que pareciam eternas enquanto duravam (perdoe, poeta, não resisti). Afastam-se o cais, a igreja, a orla já acesa, o cheiro dos quitutes da baiana.


Atualmente é assim. Venho, deixo o dia e levo os sonhos. As horas fluem pelas pedaladas da bicicleta alugada. Desejo de rever tudo, onipresente, circulando sobre, dentro, através de mim mesmo, também eu feito daquele saibro das ruas da Ilha. É fome extraordinária que domina. Praia da Guarda, Lido, Ponte dos Suspiros, praia da Moreninha e lágrimas índias, ilha de Brocoió, mercadinho, Tomaz Cerqueira e seu castelinho, que nunca saiu da memória. Campo. São Roque, praia dos Coqueiros dos primeiros poemas noturnos, Praia do Boqueirão. Sigo, contorno, desço, peço benção à Maria-gorda, escrava plantada em sofrimento. A cãibra repuxa, não ligo.


Caramanchão, charretes, Hotel Flamboyant (como chamá-lo de outra forma?). Casa da Moreninha, Iate Clube de mergulhos inesquecíveis. Depois do Porto dos Cachorros, sento no banquinho de pedra e olho a vizinha ilha dos Lobos. Circula na família a história de que meu avô quase a comprou um dia (e nós sempre sonhamos com isso). Subo pela rua da delegacia até o cemitério. De gentes e passarinhos. Ali aprendi que ler sob as sombras das árvores, recostado em algum túmulo era uma forma de mergulhar em mim mesmo, vinculando-me radicalmente ao universal, no paradoxo mais delicioso que existe. Ou então, menos cultural (diriam), mas não menos gozoso, esperar escondido naquele lugar, disfarçado de alma-penada, pelo fim dos bailes de carnaval e a passagem dos foliões que ao ver tal assombro, esqueciam o estado estafante - overdose de marchas-rancho - em que se encontravam, para disparar de medo e susto.


Agora é descida até a praia. Os pés espantam peixinhos miúdos e rebatizo corpo e alma nas águas da Ilha. Mais pedal, tempo de retorno, já são horas. Rememoro o dia que passou e dispo-me do adolescente (nunca o faço verdadeiramente; finjo).


Dói o revés das máquinas que tramam o rodopio que levará ao caminho único da Praça Quinze. Na volta que dá sobre si mesma, a barca exibe a Serra dos Órgãos, Dedo de Deus, Verruga do Padre. Corro à popa. Uma lágrima contribui com o mar salgado do Pessoa que invade essa baía. A água, ao largo, tem a cor da garapa; junto à espuma dos motores, mate espumante. Bebo disso tudo. Revigoro-me pensando que nada é para sempre e, por um momento, volto a ser a criança que, na despedida, já esperava as férias seguintes. Nunca houve adeus; um eterno até breve.


A barca contorna a Ilha. O cais da Mesbla... Dali não se podia mergulhar para fora. Rezava a lenda que além do deck existiam fogões jogados no mar e outros lixos e, ademais, monstros marinhos. Respeitosos ao dogma, mergulhávamos para dentro, em direção a praia, na enorme piscina formada pelo quebra-mar. Passo pela Praça do Lixo lamentando tudo o que não revi dessa vez e então, botos debochados corcoveiam, despedindo-se das caras tristes que se vão para a Babilônia como degredados do paraíso.


Mais água, muito mais saudade. O pescoço vira-se, entorta para ver a ponta do Parque. Do outro lado a Pedra do Raio, a ilha da Luz del Fuego, Ponte Rio-Niterói. Um avião de rabo laranja traz o presente (antes os rabos eram apenas azuis). A Ilha fica para trás, estando sempre dentro.


Ilha, querida, não lhe pronuncio o nome. De tão infinita, é entidade maior que nos absorve a todos. Maior do que sou, maior do que vô e vó que originaram a paixão, do que primos e primas, irmão, mãe, tio e tia que lhe vivemos.


Volto no ano que vem.


Prometo.

30 maio 2011

DEMAIS

(Alexandre Campinas)


Todos acham que eu falo demais
E que eu ando bebendo demais
Que essa vida agitada
Não serve pra nada
Andar por aí
Bar em bar, bar em bar...

(Tom Jobim e Aloysio de Oliveira)


Na madrugada ele fumava aquele cigarro com avidez. Era o último. Maço vazio e amassado num canto do cinzeiro. Afundava-se na poltrona da sala mirando a TV desligada. Sentia a nuca arrepiar com a brisa fria do pré-amanhecer. Aquele era o último ! Pensou que, depois do sono, que ora tornava, ao acordar pela manhã buscaria em vão o criado mudo. Não haveria mais cigarros. Ordens médicas. Seria um pega-pra-capar, mas ele conseguiria.

Havia tentado de tudo: filtro branco, baixos teores, piteiras de limitação regressiva, emplastros e chicletes de nicotina. Nada de parar. Agora pararia. Ordens médicas. Urgente. Mudança total e radical na tocada da vida. Fim do cigarro e outros prazeres também: as carnes deliciosamente gordurosas, o sal, bebidas, refrigerantes. Médicos sabem ser sádicos, pensava enquanto soprava a fumaça criando círculos azulados no ar. Isso é um cu ! Ordens médicas. Urgente. Agora seria pra valer.


A angústia do último levou a comparação. Era como um velório de parente querido: ao mesmo tempo em que compreende-se a impossibilidade de alterar a situação (e por isso mesmo não se chore como viúva), também sente-se saudade. Uma grande saudade antecipada pelo que não se pode mais ter. Por aquela vida querida que se ia e não tinha volta. Ordens médicas. Urgente.


Uma vida fumando. Não conseguia mais recordar do tempo em que não fumava. Existira ? Não tinha mais na memória a sua imagem sem um maço no bolso. Grande companheiro. Como casamento. Na alegria e na tristeza... Tão bom o vício... O masoquismo de catar guimbas quando a noite ia alta e os bares estavam fechados... A alegria do reencontro matinal, ele lá, amigo, no criado-mudo, cheio, exuberante, sedutor. As tardes de cervejotas e vários pitos. Por vezes olorosas cigarrilhas de achocolatado sabor. Nada disso mais. Urgente. Ordens médicas.



Agora o cigarro estava no fim. Talvez uma ou duas tragadas mais. Cochilou. Acordou com a conhecida dor da brasa extinguindo-se nas carnes amarelas de nicotina de seus dedos. Merda ! Perdi a última tragada. Mas paro hoje ! Livre ! Livre desse vício que o médico determinou que se acabasse. Urgente.


Voltou para dormir mais um pouquinho na cama macia. Tranqüilo por mais umas duas horas. Com seus receptores nervosos saciados pela química do vício. Plenos.


Acordou com o despertador na hora de sempre. Levantou-se evitando olhar para o lado. Firme. Sentia-se um vencedor. Tomou banho, café. Arrumou-se e saiu para o trabalho. Atravessou a rua em direção ao ponto de ônibus. A padaria abria suas portas. Olhou para o caixa repleto de tentações. Entrou. Comprou o maço. Satisfação.



Tornava a calçada quando tropeçou num cartaz amassado no chão, propaganda de cigarro... O maço escapuliu de suas mãos ansiosas indo cair no asfalto, junto ao meio-fio. Abaixou para pegar. Vinha o seu ônibus. Deu-lhe tremenda porrada na cabeça que o arremessou a mais de seis metros.


No Instituto Médico Legal o doutor legista cobriu seu corpo de volta, após remendar sua cabeça esfacelada, na qual deu uma certa forma para as exéquias.



- Enterra; urgente !


Ordens médicas...


Conseguiu. Parou de fumar.