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30 maio 2011

DEMAIS

(Alexandre Campinas)


Todos acham que eu falo demais
E que eu ando bebendo demais
Que essa vida agitada
Não serve pra nada
Andar por aí
Bar em bar, bar em bar...

(Tom Jobim e Aloysio de Oliveira)


Na madrugada ele fumava aquele cigarro com avidez. Era o último. Maço vazio e amassado num canto do cinzeiro. Afundava-se na poltrona da sala mirando a TV desligada. Sentia a nuca arrepiar com a brisa fria do pré-amanhecer. Aquele era o último ! Pensou que, depois do sono, que ora tornava, ao acordar pela manhã buscaria em vão o criado mudo. Não haveria mais cigarros. Ordens médicas. Seria um pega-pra-capar, mas ele conseguiria.

Havia tentado de tudo: filtro branco, baixos teores, piteiras de limitação regressiva, emplastros e chicletes de nicotina. Nada de parar. Agora pararia. Ordens médicas. Urgente. Mudança total e radical na tocada da vida. Fim do cigarro e outros prazeres também: as carnes deliciosamente gordurosas, o sal, bebidas, refrigerantes. Médicos sabem ser sádicos, pensava enquanto soprava a fumaça criando círculos azulados no ar. Isso é um cu ! Ordens médicas. Urgente. Agora seria pra valer.


A angústia do último levou a comparação. Era como um velório de parente querido: ao mesmo tempo em que compreende-se a impossibilidade de alterar a situação (e por isso mesmo não se chore como viúva), também sente-se saudade. Uma grande saudade antecipada pelo que não se pode mais ter. Por aquela vida querida que se ia e não tinha volta. Ordens médicas. Urgente.


Uma vida fumando. Não conseguia mais recordar do tempo em que não fumava. Existira ? Não tinha mais na memória a sua imagem sem um maço no bolso. Grande companheiro. Como casamento. Na alegria e na tristeza... Tão bom o vício... O masoquismo de catar guimbas quando a noite ia alta e os bares estavam fechados... A alegria do reencontro matinal, ele lá, amigo, no criado-mudo, cheio, exuberante, sedutor. As tardes de cervejotas e vários pitos. Por vezes olorosas cigarrilhas de achocolatado sabor. Nada disso mais. Urgente. Ordens médicas.



Agora o cigarro estava no fim. Talvez uma ou duas tragadas mais. Cochilou. Acordou com a conhecida dor da brasa extinguindo-se nas carnes amarelas de nicotina de seus dedos. Merda ! Perdi a última tragada. Mas paro hoje ! Livre ! Livre desse vício que o médico determinou que se acabasse. Urgente.


Voltou para dormir mais um pouquinho na cama macia. Tranqüilo por mais umas duas horas. Com seus receptores nervosos saciados pela química do vício. Plenos.


Acordou com o despertador na hora de sempre. Levantou-se evitando olhar para o lado. Firme. Sentia-se um vencedor. Tomou banho, café. Arrumou-se e saiu para o trabalho. Atravessou a rua em direção ao ponto de ônibus. A padaria abria suas portas. Olhou para o caixa repleto de tentações. Entrou. Comprou o maço. Satisfação.



Tornava a calçada quando tropeçou num cartaz amassado no chão, propaganda de cigarro... O maço escapuliu de suas mãos ansiosas indo cair no asfalto, junto ao meio-fio. Abaixou para pegar. Vinha o seu ônibus. Deu-lhe tremenda porrada na cabeça que o arremessou a mais de seis metros.


No Instituto Médico Legal o doutor legista cobriu seu corpo de volta, após remendar sua cabeça esfacelada, na qual deu uma certa forma para as exéquias.



- Enterra; urgente !


Ordens médicas...


Conseguiu. Parou de fumar.