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10 agosto 2009

MAMÃE
(Alexandre Campinas)


Minha esposa parou em frente à casa, antes de passarmos na loja de decoração, como havíamos combinado de fazer naquele sábado. Eu pedi. Um ano depois, entrava lá pouco antes da demolição. Nostalgia ? Talvez. Em tudo há um lado humano, mas isso eu guardo para mim. Que importa dizerem que sou frio, insensível ? Não tenho que provar nada para ninguém. Basta que eu saiba o quanto tudo me é caro. O mundo tem uma lógica e eu adapto-me a ela. Só. Sei que, no momento em que entrei, estava apertado. A premência urinária acabou por levar-me a uma viagem nada melancólica. Besteira isso de dizer que nostalgia e melancolia são a mesma coisa. Nostalgia é deleite; melancolia, saudade do que não houve.



Após girar a chave, atravessei o corredor vazio. Sem passadeira, sem quadros nas paredes, nem fotografias de família, tampouco os meus retratos. Aquele com vários rostinhos no mesmo papel fotográfico, outro com roupinha de marinheiro, ainda o de índio em baile de carnaval. Senti falta do aparador na parede junto ao quarto. Onde ficava a estátua de Sant'Ana ensinando Nossa Senhora e um vaso pequeno com lírios sempre frescos do jardim. Ou rosas brancas, quando não havia lírios. Sou católico. Vou à missa dominicalmente. E comungo após a confissão. Besteirinhas, pecadilhos. Um padre-nosso, por vezes somado à uma Ave-maria. Jamais insensível: como esquecer ? Olho para cima e, agora, o antigo forro azul-claro revela-me a madeira comida pelos cupins. Tinha o hábito de deitar-me no chão, criança ainda, e, naquele ambiente quase sagrado que o aparador garantia, tomar o teto por céu. Imaginava anjinhos.


A porta, um tanto resistente pela falta de uso (quase um ano após o negócio), não resistiu às minhas urgências. Rangeu um pouco, mas cedeu fácil. Que chão sujo ! Ela teria vergonha. As mesmas paredes com azulejos verde-escuro até a metade. A tinta-óleo que completava a altura já não havia mais. Cada passo em direção ao vaso sanitário deixava a marca dos meus pés sobre a poeira que tinha tomado o piso hidráulico, antigo e belo. Fechei os olhos e o arrepio do xixi represado empipocou-me a pele dos braços. Girei o registro da torneira. Em vão, que besteira... Pois a casa não estava vazia há tanto tempo ? Hábito que ela me ensinou. Higiene. Mãos limpas sempre. Doce recordação: “vai lavar as mãos, denguinho”. Tão bom lembrar... Lavar as mãos já evocava o cheiro da comida. Feijãozinho temperado no alho e na cebola, bolinhos de arroz do dia anterior, salada, batatinhas com molho de massa de tomate, carne moída. Ela foi tudo. Esteio. Base. Vida.


Voltando pelo corredor, primeiro o quarto dela. No piso de tábuas, as marcas dos pés da cama de ferro da vida inteira. Não resisti e entrei. Não era boa a impressão do quarto vazio, no entanto amparei-me na lembrança. Lugar-comum ? Não sei. Não sou um estilista, mas aquele quarto dela era meu porto seguro. Em seu colo chorei a ausência de pai, que não conheci. Em seu colo contei de namoros e festas, fui repreendido pelo cheiro de cigarro (e a gente sempre pensa que as engana). No seu colo não precisava dizer nada: ela sabia de tudo e, quase sempre, seus cabelos longos e sempre muito bem penteados roçavam de leve minhas lágrimas, minhas pequenas dores, lembrando que ela estaria sempre ali. Elas são assim. Pelo menos a minha foi. Amiga e confidente. Muito, muito mais do que função biológica. Saí do cômodo com o coração repleto de memória. E de amor.


Três passos mais e o meu quarto. Abri a janela corroída pelo tempo e o sol entrou numa luz oblíqua da qual já havia esquecido-me. Quase cheguei a ver a caixa dos brinquedos da infância, sempre bagunçada (“arruma isso, menino !”), o violão cheio de decalques da adolescência (“rock não é coisa de Deus !”). O terno do casamento, pendurado, passado, engomado. O mesmo ar, embora um tanto empoeirado, encheu-me os pulmões. As narinas perceberam um pequeno toque do antigo cheiro. Memória olfativa, diriam. Já eu chamo de memória cordial. O cheiro dela ainda estava vivo na casa. E então percebi que a vida vale a pena. Uma vez mais respirei fundo. Sabia que nunca mais sentiria aquele cheiro. Queria guardar só para mim.


Aproveitei e empurrei também a janela da sala. Dava para o jardim que ela adorava com ares de altar. Dali saía a beleza da casa. Não apenas para as santas, mas em todos os cômodos o jardim se fazia presente. Era orgulho dela. Muito bem cuidado, hoje apenas terra esturricada. Tudo bem. Vida que segue. Entretanto impossível não identifica-la naquele passado. Já ia saindo. Lembrei: a cozinha. E estava lá com o fogão à lenha com seus tijolos descascados. A trempe, rota de ferrugem, resistia, ainda. Saudades dos biscoitos de polvilho fritos na hora. O mesmo piso do banheiro, questão de economia na loja de materiais de construção. Lembro que ela pagou o financiamento da Caixa Econômica até pouco tempo antes da sua aposentadoria. Lembro também que fizemos uma humilde festa dupla, de café e broa de fubá: aposentadoria e carnê quitado. Nossa casa.


Na saída, fechei o portão e passei a chave grande, antiga. Devolveria na segunda-feira à construtora que me deu a cobertura, no vigésimo sétimo andar, e um apartamento no terceiro, em troca do lote. Bom negócio. Olhei bem pela última vez. No alpendre, uma imagem mais evoquei. A cadeira de balanço na qual ela passava as tardes, conversando com comadres e observando o vai-e-vem dos vizinhos, ano após ano mais apressados em seus afazeres. Atropelo de vida. Minha mulher buzinou impaciente, ainda iríamos ao supermercado do shopping mais tarde. Pizza após as compras.


A cadeira de balanço também vendi para a loja de decoração. Pagaram muito bem. Aliás, foram honestíssimos e valorizaram corretamente todos os móveis e objetos que negociei com eles. Peças raras. Decoração antiga estava na moda. No dia em que levei a cristaleira imemorial, vi ser vendida praticamente no mesmo instante em que entrou na loja. Já havia um jovem casal aguardando. Não sei quanto pagaram por aquela raridade, mas eu estava satisfeito com o negócio. Bastava-me.


No estacionamento, paramos bem próximo da porta principal e o dono, belchior moderno, veio receber a derradeira obra de arte que eu entregava. O mesmo casal estava lá, ao pé dele. Encomenda especial. Pareciam saltitantes crianças ansiosas e alegres batendo palminhas. Quase eufóricos quando viram que eu a tirava, cuidadosamente, do banco traseiro. Apesar da minha conhecida objetividade, também sei fazer suspense.


Desembrulhei mamãe vagarosamente. Só para que eles vivessem o gozo da descoberta. Linda, mamãe. Corada, penteada, serena. Um belo trabalho do taxidermista. Cairia muito bem no living do jovem casal. Às compras, depois tem pizza.

08 agosto 2009

Aos companheiros e
às companheiras da luta:




Para refletir:

"Escutem estas duas aulas de
sabedoria, amor, justiça e vida".

LINK






02 agosto 2009

Como en Guernica
(Taiguara)


Ay, Hermano
Qué hasta que el día ese llegue
Yo no descanse y no duerma
Sin haber hecho muchas canciones

Ay, Hermana
Qué hasta que el día ese llegue
Tu no te canses, no mueras
Sin callar todas las represiones

Madre y abuela Vasconia
Vieja Vasconia en tus siglos
Arden los cuerpos de aquellos
Que abren mis ojos para mi pueblo

Madre y abuela Vasconia
Mi pueblo mezcla mil mares
Mi nombre indígena es rojo
Mi lengua es blanca, mi canto es negro

Madre y abuela Vasconia
Somos de América el sueño
Niños, caminos sin crimes
Pero sin dueños, y sin arreglos...

Madre y abuela Vasconia
Como en Guernica, tu árbol
Que acá no muera el motivo
Se abren los labios, aún que con miedo
Um folhetim, um pouquinho diariamente, Aqui e no orkut, "Bar do Escritor" e "Alterados.com". "Um triângulo no abismo" surgiu à partir de um conto do escritor Kinho Vaz. Alexandre Campinas gostou e pediu para transformar aquele triângulo... num triângulo.

Se o primeiro conto do Kinho Vaz foi um vértice, faria os outros dois. Já publiquei aqui Um triângulo no abismo - Outro vértice. Agora chegou a vez de Um triângulo no abismo - O terceiro vértice (Numa boa). Aí está.

Explicações dadas, ao Triângulo.


Um triângulo no abismo - O terceiro vértice
(Numa boa)


-1-


Aquela manhã era diferente. Que linda alvorada. Tranquila. Confrontava com as rolinhas que passavam apressadas em seu louco despertar em busca de alimento. Eu estava alimentado. Ela dormia profundamente em nossa cama. Tomamos o nosso chá e nos amamos novamente. Beijos e carinhos com a intensidade e emoção como há muito não fazíamos. Acho que valeu a pena. Sim, valeu.


Olhava, agora só, a paisagem das matas do sovaco do Cristo. Que lindo. Tive vontade até de tornar às poesias de um tempo em que era adolescente na Ilha de Paquetá. Quem sabe ? Quem sabe uma nova adolescência germinava em mim ? Uma adolescência como a que eu tive. Que boa recordação. Germinando. Eu. Novamente.


Tanta coisa diferente tomava corpo naquele momento. Toda a novidade que eu sempre desejei, e eu sabia disso, aconteceu num rompante que agora eu tentava administrar em minha cabeça. Afinal, não era esse o meu desejo ? E se porventura (ventura mesmo, eu digo) transformou-se em algo real, palpável, não era isso o que eu queria ? E esse sonho todo ? Não era meu e dela ? E dele ? Aconteceu ?


Pensar que há poucas horas estávamos nós três aqui. No meu... nosso quarto. Selvageria. Doce selvageria. Maravilhosa selvageria. Talvez há duas semanas eu nem falasse aqui dessa forma. Mas hoje... Eu nela, ele nela, ela em mim, nós nela, ela em nós. Assim. Dessa forma e nessa ordem. Parecia um daqueles loucos vídeos pornôs que eu coleciono.


Caramba ! O sono começou a bater. Que noite... Que dia... Que noite ? Que dia ? Minhas pernas adormecem gostosamente. Meus cabelos desalinhados caem sobre os olhos, mas eu preciso falar. Falar de mim, de tudo. De como isso aconteceu. Do bem que tudo isso me fez. Quero falar para ver se consigo compreender... Entende ? Antes de me largar ao sono do qual eu necessito, tenho que falar.


Foi hoje a noite que começou ? Quer dizer ... ontem a noite ? Quando ela apresentou-o como um amigo. E aí bebemos, ouvimos música, jantamos, conversamos, bebemos... Eu fui dormir e, de repente, me vi acordado e enlouquecido. Hipnotizado sobre minha esposa. Ele ali, olhando. Eu gostei dessa impressão. Eu a possuía e ela a mim de forma animalesca. Eu atrás dela, para onde ele me convidou. Ele ali. Como se estivesse esperando a vez... Estava.


Quanta surpresa. Que irracionalidade !



-2-


Eu a tinha visto algum tempo atrás esfregando-se com uma escova de cabelos. Fingi que não vi, mas ela ficou constrangida. Será que foi mesmo ontem quando tudo começou ? Eu fiquei algum tempo fora, em Brasília, advogando. Quer dizer, lobiando um pouco em favor da minha própria banca (como eles necessitam de advogados...), e... também de onda com uma terceira-secretária de gabinete de um deputado do Pará. Uma gracinha. Com aquela carinha deliciosamente redonda como só as do povo do norte. Curvas. Pele morena. Trinta e sete anos. Fruta pão assada na manteiga. Eu sabia o que queria e ela também. Ok: 1 X 1.


Pode ser que tudo tenha começado no dia em que liguei. Telefonei para avisar que teria que ficar mais um tempo em Brasília, que o caso estava complicado, etc. Parece que ela ficou um pouco triste. Acho que percebeu minha mentira. Ou, mais ou menos mentira. Mais mentira porque era para ficar mais tempo com a minha manga-rosa paraense; menos porque ela também tinha um caso com o deputado e, mesmo sendo terceira-secretária, estava quase conseguindo uma entrevista. Daquelas especiais, com charuto, uísque e jantar no Piantella.


Mas ela poderia ter ficado mais do que triste. Ela pode ter ficado puta da vida e resolvido ir à forra. Com qualquer um na rua. Sei lá ! Liguei três dias depois e onde ela estava ? Em Itaipava. Na nossa casa. Sabe-se lá com quem ... Apenas vingando-se de mim. Mas, se tudo isso que aconteceu foi uma vingança dela... Bendita vingança.


Ainda fiquei mais uns dias. Bela, podre, colossal e estonteante Brasília. Trabalhadora sim, Brasília. Estaria mentindo se dissesse que aquele burgo de poder e sedução não mexesse com minha cabeça. Mistérios e segredos. Amor e raiva, que ódio verdadeiro nunca há entre eles. Brasília me excita. Claro, tem a minha paraense. Mas isso não é tudo. Por todos. Pelos carros que passam velozes. Pelas mãos que se apertam e respectivas bocas que cospem de lado. Brasília é mulher. É uma fênix renascendo. Deitada em leito brasileiro, de braços abertos esperando seus amantes.


A paraense ? Esqueça. Em Brasília não há nomes. Nem eu o tenho ... Quer dizer, tenho. Ou não ?


Acordei. Perdi-me em Brasília, mas acordei. Não. Não pode ter sido quando prorroguei minha estadia lá. Antes disso, poucas vezes a encontrei em casa. Telefonava e nada. Também não mandava a empregada dar o recado. Não valia.


Tudo havia sido muito entrosado. Não podia ser acaso ou coisa de pouco. Foi antes de Brasília. Por quê ? Tudo bem... ainda estou meio zonzo. Imagina... Eu, minha esposa e... outro... Ainda por cima, mais novo e com o pau maior. Puta que pariu ! E a forma como se entregava a ele ? Isso era antigo. Eu sabia. Não era culpa minha...



-3-


Seria culpa minha ? O que eu fiz ? Deixei de fazer ? Não, nunca. E sempre fizemos bem. Fazemos tão bem que um dia cheguei a confessar para ela que tinha um sonho erótico de traição. Ela me traindo. Na minha frente ou não ... Que loucur... Isso ! Aí ! Porra ! Caralho ! Aí está onde isso tudo começou. Aí, bem aí. E quem disparou tudo foi o trouxa aqui ... Trouxa ? Que trouxa... Eu estou feliz.


Se eu estou feliz, ela é leve em seu sono e ele se foi, onde está a culpa ? Que culpa é essa ? Para que questionar onde tudo começou ? Para que mitificar o que virá, o que ainda não é ?


É... Eu bem que estou tentando. Mas na minha racionalidade é difícil de encaixar. Não é possível. Então ela não me quer mais ? Precisa de mais um para satisfazer-se ? Mas também... Não fui eu quem deu a idéia, quem sugeriu ? Não, não sugeri, mas também não deixei de sugerir. Que noite extraordinária ! Parece que as sensações formam uma névoa que entorpece a racionalidade. Eu estou com sono. Mas falo.


Falo até o final porque quero entender. Estar pronto para uma conversa séria quando ela acordar. Aí eu, já mais senhor de mim, vou querer saber como ficará. Como ficaremos.


Também quero saber o que ela pensa. Como tudo aconteceu. Tanto sexo. Tanto carinho. Tanto querer. O que levou a isso ? Entender, entender. Que delicia sentir seu sexo molhado em minha boca depois que tudo se acalmou. Suas coxas suadas e marcadas de amor.


Também não. Tudo o que aconteceu não pode ter iniciado quando eu falei naquela fantasia. Era muito carnal para isso. Instintivo. Era como se tudo sempre tivesse sido assim e que nada estava fora do normal. Eu é que estava com loucuras na cabeça.



Comecei a suspeitar e escanear todo o tempo que passamos juntos. Mais de vinte e cinco anos. Mais do que bodas de prata. Mais do que a história de nossa vida. Mais do que nosso casal de filhos, já casados e bem na vida. Era mais. Muito mais.


A coisa estava na origem. Só poderia ser. Aquelas coisas esotéricas de reencarnação das quais ela sempre falou. Devemos ter programado nossos destinos para isso.


-4-


Talvez todos nós, seres humanos, sejamos programados para isso. Como uma fábrica. Em série. Assim como os manufaturados, a grande maioria funciona corretamente. Escondendo pequenos desvios de funcionamento. Ofuscando-os com brilhantes virtudes. Outros são mais expostos. Não funcionam tão regularmente e causam descontentamento. Alguns mais, poucos como nós, somos os que carregamos todos as nuances do manufaturamento. Somos brilhantes e sabemos nos utilizar da loucura do arrebatamento e da compulsividade para agradar a todos. Para nos agradar e sermos felizes. Quer dizer, funcionar.


Então Deus planejou isso tudo ? E isso lá não se chama sacanagem e putaria ? Parece. Óbvio. Se crermos realmente com fé na origem divina e, sendo parte dessa origem ... Deixa pra lá. Metafísico pra caralho...


Mas essa, realmente, derrubou-me. Não sei se deveria falar assim, mas deixou-me de quatro. Tudo bem. Suponhamos que eu compreenda como tudo aconteceu e mais: que tenha achado onde tudo começou. E foi bom e ponto. Maravilhoso. Pra muito lá de bom. Se eu entendo, compreendo e gosto da idéia, por que ficar procurando o porquê ? Aí é que está. Eu concordo com tudo o que houve, mas não posso deixar de querer saber e preocuparme sobre como vai ser assim que ela acordar. Digamos que por mim, tudo bem. E se ela não me quiser mais ? E se ela desejar um mundo novo ?


Será que essa insegurança também é coisa da origem de tudo ?


Cochilei e acordo agora, com ela chamando o meu nome. Pão de forma, manteiga, geléia, queijo, presunto, capuccino, suco... Quanto carinho para me receber na cozinha... Beijinhos e pequenos apertões aqui e ali. Tudo como sempre. Numa boa. Como se nada tivesse acontecido. Ela perguntou:


Amor, já que você ficou tanto tempo fora, por que não tirar uns quinze dias na serra ?


Sem pestanejar, mandei na hora:


Você não gostaria de passar esses quinze dias em Brasília ? Eu lhe mostrarei a magia daquela cidade.


Ela concordou.


No mesmo momento comecei a pensar na minha paraense. Nela e na minha paraense. E eu. Três. Novamente.


Talvez ela simpatizasse com o deputado... Mas aí mudaria a geometria toda.

-*-

A alegria dos
prazeres inofensivos
(Roberta Simoni)


Respirar cheiro de gasolina. Pisar em folhas secas nas ruas de outono. Ver a primavera florindo. Dormir sem roupa no verão. Nadar pelado. Comer chocolate, tomar sorvete no inverno. Ter muitos orgasmos. Ver o pôr-do-sol. Ouvir o silêncio da madrugada. Sentir o cheiro da terra molhada. Caminhar na beira da praia. Compor uma música. Tocar uma viola. Escrever uma poesia. Dar um beijo apaixonado. Acordar ao meio dia. Viajar sem comprar passagem de volta. Dar presentes. Receber presentes. Escrever uma carta. Receber uma carta. Ler um livro. Escrever um livro.

Ter um sonho bom, dormindo ou acordado. Brincar de pique-se-esconde. Tomar banho de água quente. Cantar debaixo do chuveiro. Ser acordado com beijos na nuca. Entrar numa calça que antes não cabia. Andar descalço. Tomar chocolate quente no frio. Ter uma mangueira no quintal de casa. Ter um quintal. Ter uma casa.


Jogar baralho. Ganhar uma aposta. Abraçar um amigo. Se embriagar com um amigo. Ter um amigo. Rir sem motivo. Sentir frio no umbigo. Fazer uma surpresa. Ser surpreendido. Ganhar dinheiro. Trabalhar com o que se gosta. Viajar o mundo. Se perder no mundo. Se encontrar sem estar perdido. Banho de chuva. Paixão de verão. Cinema com pipoca. Amizade canina. Espera no portão. Cheiro que trás lembrança. Colo de mãe. Gargalhada de filho.

Um brinde à alegria dos prazeres inofensivos, esses que costumam ser tão pequenos que, às vezes, não passam de detalhes. Detalhes que dão cheiro, cor , sabor, e, principalmente, sentido à vida.