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17 dezembro 2009

META A LÍNGUA

(Alexandre Campinas)


''Lasciate ogni speranza voi ch'entrate''

(Dante Alighieri)


- Tenho que lhe prender até o fim. Os seus olhos estão grudados e continuarão. Em cada palavra, em cada linha. É daqui que você espera. O crime, a redenção, o ensinamento, a revolução. Espera até mesmo o inusitado. Há algo que vou contar. Algo que quer saber. Você deseja isso e eu vou lhe conduzir.

Era uma sentença definitiva.

Pessoa é o protagonista. Uma pessoa que saiu da situação confortável na qual se encontrava para um mergulho no insólito. Tudo ia bem até que aquilo acontecesse. Um texto. Página ofertada como puta na janela, como promoção relâmpago de supermercado. Irresistível. Curiosidade excessiva. Pessoa tinha essa compulsão de leitura. O texto estava ali. Ao alcance de qualquer pessoa e Pessoa sequer poderia imaginar o engodo no qual se meteria.

Uma armadilha. Tecida com calma pelo verdugo. Como se trançasse fio por fio com o cuidado extremado que impedisse uma evasão. A fuga, exatamente, de Pessoa. Atrativo. Provocante. O verdugo sabia que Pessoa (não qualquer pessoa, mas Pessoa) viria. E não conseguiria resisti-lo. Era como se o verdugo – de nome provisório Verdugo, até que a identidade verdadeira seja revelada – tivesse armado a arapuca para Pessoa. Isso ! Verdugo queria Pessoa. Na trama daquele tecido, Verdugo desejava mais do que tudo que Pessoa se embrenhasse. Cada vez mais. Sem saber o que o esperava, mas tendo a noção exata de que algo inacreditável, porém paradoxalmente desejado acontecesse. Era um dédalo. Pessoa sabia ter final, sabia existir uma saída, entretanto o caminho era um aguilhão verrumando a cabeça.

Verdugo tinha uma intenção primária, bem definida: desestabilizar Pessoa. Desesperar Pessoa. Para isso a pessoa deveria sentir-se parte da trama, co-responsável por ela. Poderia tê-lo feito de qualquer forma. Preferiu O Texto. Era assim que Verdugo referia-se a obra: O Texto. Daí a sentença inicial, ora repetida:

- Tenho que lhe prender até o fim. Os seus olhos estão grudados e continuarão. Em cada palavra, em cada linha. É daqui que você espera. O crime, a redenção, o ensinamento, a revolução. Espera até mesmo o inusitado. Há algo que vou contar. Algo que quer saber. Você deseja isso e eu vou lhe conduzir.

Um crime, aquele texto. Povoado de mistérios que iniciavam-se nos nomes dos próprios personagens, como que propositalmente. O prenúncio de uma incursão sofrida. E era disso que se tratava em O Texto: um crime. Várias palavras formavam frases precisamente conexas. A conectividade interativa propondo e exigindo resposta imediata do raciocínio de Pessoa. Um parágrafo fazia ligação com o outro e estimulava que qualquer pessoa, sobretudo Pessoa, os ligasse e se ligasse a eles; inexoravelmente.

Pessoa não resistira. E qual pessoa poderia ? Deixou-se tomar como virgem desejosa de atenções. Um pato. Embarcou no enigma com a soberba esperança de decifra-lo. Era o retrato da própria viagem humana na proposição da Esfinge edipiana: nascendo com O Texto, caminhando com O Texto, envelhecendo com O Texto. Era a plenitude da realização do intuito desconcertante de Verdugo.

O nome já estava indelevelmente bordado naquela teia. Bordado em ponto-cruz: P E S S O A. O Texto fizera sofrer, retivera a propriedade da pessoa, jogara com Pessoa. Agora, por fim, exaurido de todas as possibilidades, resolvido, desvencilhava-se dos hermetismos e ofertava-se, impudico, jactando-se da vitória:

Você entrou e saiu. Por Minha vontade fui seu verdugo. Você, pessoa minha, entretanto, não me meta a língua: eu persegui você, que me desejou.

O Texto foi o meio.

25 outubro 2009

Um comentário legal

(do Tuba-Boy*)


Tuba-Boy, aliás Filipe Jardim, é escritor,
mestrando em Engenharia de Women Observer,
técnico em Remote Controlling.

Graduado em Alcohol Practitioner,
ele faz surfe de tubarão na pororoca
do estuário do Massangana,
no Suape.


Ontem, sexta-feira, cheguei em casa bêbado. E neste estado, abro a caixa de correio e vejo lá dentro um envelopinho cor de terra. Investigo, lá meu nome gmailco “Fillipe Vilar Jardim”. No remetente está o nome do camarada, Alexandre Campinas. Senti o volume do envelope. Um livro, com certeza. Bêbado quando ganha presente: subi as escadas sorrindo. E o sorriso não me deixou.

Sinal para o que me esperava? De fato, li o prefácio do Kinho Vaz, li os versos da contracapa. Ah, e a dedicatória, muito honrado este desgraçado aqui ficou. Amanhã eu teria uma boa leitura, pelo menos parecia. O título era interessante: Toalhas Vermelhas.

Acordei renovado, muita água, daria aula à tarde. Antes do almoço, os primeiros contos: “Estes Maravilhosos Porcos Imperialistas Ou De como Jean-Marie Recuperou a Honra” e “Estrela Cadente”. Nas primeiras linhas, volta-me o sorriso. O primeiro é recheado de ironia, a pergunta do “e se realmente fosse assim?” respondida com um humor que, para mim, já supunha inevitável pelo que cyber-conheço do camarada Campinas. O final é engraçadíssimo. O segundo é o retrato de um cara que realmente se ferra na vida por causa de uns negócios filhos da puta. Já conhecia este da internet. O trecho de My Way no fim cai como uma luva.

Almoço, saio. No ônibus, mais alguns contos: “Impressões De Sexta-Feira”, fantasmagoricamente engraçado e surpreendente; e o meu preferido, “Lógica. Fantasia Sobre Velha Piada. Feliz Ano Novo Pra Você Também, Rubem Fonseca”, ironia com os vermelhinhos febris dos anos 70 e o seu futuro, com as ilusões perdidas dos ângulos de duas gerações; Depois, “A Esfinge de Cydônia”, uma estorinha muito singela sobre uma puta chamada Copa e “Fantasia das Podridões Humanas”, um homem e a situação de ser observado em suas intimidades por um tarado peixe japonês. Minha parada, desço do ônibus.

Chego na casa do garoto. Doente, não assistiria aula hoje. Viagens perdidas me deixam puto.

Dirijo-me à parada. Um mendigo e uma coroa muito simpática – falo de dotes físicos também. Ela puxa conversa (medo do pobre mendigo), “ainda bem que você chegou”, “eu?”, respondo e sorrio. Papeamos um tempo. Íamos para lados diferentes da cidade, uma pena.

Dou aulas no bairro do Rosarinho, nobilíssimo. Não conheço quase nada daquelas bandas. Resolvo ir à Universidade, onde amigos estão dando uma festinha para a qual eu tinha sido convidado, mas não podia comparecer por causa da aula. Agora eu podia. O ônibus que pego faz um arrodeio desgraçado. Tempo para ler mais contos.

Dessa vez o que dá nome ao livro: “Toalhas Vermelhas”, uma estória muito interessante sobre adolescência, com um final hilariante. Depois “Tarde Demais Para Mim”, outro conto de humor cortante, literalmente. Olho um pouco a paisagem. Penso “ainda em Casa Forte, puta que pariu”, volto à leitura. “Um Sapo-Banana Para Mário”, uma estória de pescador e “O Pardo e o Parvo”, sobre as lembranças de um executivo voraz que veio de muito baixo. Chego ao meu destino. Ainda o sorriso nos lábios.

Uma tarde agradável com amigos que eu não via há muito tempo. Ri bastante.

Voltei pra casa com alguns colegas, conversando no ônibus.

Tomei um banho, contei como tinha sido o meu dia para os meus pais, manter a rotina. O último conto: “Sr. Obnóxio, o Livro”, este realmente excelente, um conto de fantasia com aquele bom humor que esteve presente durante toda a leitura. Na última página, alguns versos de Ferreira Gullar.

Fechei o livro. O meu dia não foi lá essas coisas, mas eu senti isso? Foi como se tivesse sentado num bar e tomado umas cervejas com o camarada Campinas contando todas essas estórias. Satisfeito, guardo o livro junto de meus outros volumes, na cabeceira da cama. Qualquer emergência ele estará lá, para uma nova leitura.

05 outubro 2009

La Negra se fue

Estamos tristes, entretanto agradecemos
por tudo o que A Voz cantou,
falou, lutou.

Voz livre de quem a tinha proibida.
Voz de liberdade, justiça
e insurgência.

Valeu, Mercedes.

Valeu e valerá sempre.

Até a vitória.


Años - Mercedes y Pablo

06 setembro 2009

3º Lugar no Concurso Literário do Bar do Escritor




ESPELHO

(Alexandre Campinas)



"You're here because you know something. What you know you can't explain – bu t you feel it. You've felt it your entire life; That there's something wrong with the world; you don't know what it is, but it's there, like a splinter in your mind, driving you mad. It is this feeling that has brought you to me. Do you know what I'm talking about?"

(Morfeu para Neo, em Matrix)


- I -

Um excelente espelho, que se diga. Depois do falecimento da mãe, alterara toda a decoração do apartamento, porém a peça permanecera no seu lugar costumeiro, o living da sala. Bom e antiqüíssimo, o espelho. Bem mais de metro por setenta. Puro cristal, cujo bisotado enobrecia o contorno. Por moldura, uma tradicional madeira dourada que nas laterais bifurcava-se: uma parte seguia jungida ao cristal e a outra abria-se em asa para retornar ao corpo principal mais abaixo. Sustinha-se numa espécie de pedestal, ou suporte, todo trabalhado em serralheria belga.

Levantada, dentes escovados e já metida em biquíni, alpercatas, bolsinha de utensílios, barraca e esteira de palhinha, pronta para a praia de domingo, deu uma passadinha pelo espelho, assim como quem não quisesse nada, como quem realmente não se importasse, entretanto ansiosa pela inevitável opinião.

Muito estranha. Era de fato muito estranha aquela figura que o espelho refletia. Onde a jovem de clara pele (com sardas de sol nos ombros) e cabelos ruivos ? Olhou para trás. Nada. Claro que estava só. Tornou ao espelho, porém não se reconheceu naquele senhor de quarenta anos presumíveis, barriga média inerentemente etária, cãs brancas nas têmporas e âncora tatuada no braço. E tinha barba grisalha, cerrada. Definitivamente não era ela.

Com as costas das mãos esfregou os olhos. Fechou-os, apertando com força, aquela força que faz com que apareçam elos em pálida policromia que se esvaecem aos poucos. Atinou que já era hora de retomar o curso de datilografia, telefonar para o Cidinho (ele enviou rosas vermelhas, outro dia, acompanhadas de um convite para passear no Karmann-Guia zerinho), procurar um emprego: talvez com o próprio, afinal ele ia muito bem com sua corretora de seguros. Mamãe sempre fez muito gosto por aquele rapaz cortês e de futuro promissor. Falar em mamãe, já era hora, afinal, de parar de gastar a herança.

Abriu os olhos na esperança de que o senhor não mais estivesse lá. Estava. E piscava para ela. No canto da boca mastigava um palito de fósforos. Presa ao calção, uma carteira de Continental. Ela odiava cigarros. Outra piscada. Vamos ? Onde ? (meus deuses, estou conversando comigo no espelho e eu não sou eu). À praia, brotinho, à praia; não está pronta ? Cobriu o espelho. Vai passar... Vai passar ! Virou as costas, abriu a porta. Antes de fecha-la atrás de si, ouviu: Tetéia !

- II -

Tépida, mesmo após o banho frio demorado. Um copo de groselha iria aplacar aqueles abafamentos. Sentada no sofá, passava um pouco de pasta d’água nas pernas e também nas maçãs do rosto. Pôxa, calor pacas ! A gente derrete, mesmo imóvel. Ligou para o Cidinho: Karmann-Guia. Antes lá fora, com o vento na cara (Cidinho contou: conversível) do que trancada nesta sauna. Sol da tarde bate na fachada até a noite chegar. Amolece miolos. É isso. Miolos. Mamãe sabia fazer miolos deliciosos... Empanava.

Descobriu o espelho, vagarosamente. Com temor mesmo. Nada. Olhou-se e tirou o resto da pasta d’água das bochechas. Como que tentando convencer a si mesma, perguntou Não falei ? Miolos. Roupa leve e sandálias. Meus pés são mimosos. Passou um lenço de seda branca em pois negros sobre os cabelos, pegou a Grande Hotel com a fotonovela que trazia o Cláudio Marzo como galã, suspirando um misto de devaneio romântico e inevitabilidade. Girou a chave. Ouviu. Lindos pés. Virou, ele. Dá uma volta, peixão. Obedeceu. Não demore. Garganta seca. Suor frio. Tremores. Ele.

- III -

Entrou em casa como um siri: de lado e de costas.

Adoro esta bunda. Chega aqui. Foi.

Vira. Virou. Boas ancas, me servem bem. Tira este vestido maria-mijona, não demore tanto ! Deixou escorrer pelo corpo e o contato do tecido, ou Ele, arrepiou sua pele. O busto: tira o soutien. Firmes e grandes. Eu gosto, têm bom tamanho e auréolas inchadas de menina-moça, como me convêm. A calcinha. Hipnotizada. Não gosto ralinho assim. Deixe crescer mais. Passe os dedos. Assim não, porra ! De leve, circular, deixe enrijecer e umedecer.

Vou te contar coisas que nunca soube. Vou te falar na orelha soprada e molhada o que nunca ouviu. Vai ser mordida onde nunca supôs, vai apanhar e arranhar de volta. Vai gozar como personagem do Zéfiro. Venha, minha rameira safada. Foi.

Sustinha-se em uma perna e a outra envolvia a peça. Esfregava-se nas determinações d’Ele. Esfregava-se n’Ele. Fodeu como nunca havia fodido na vida. A delicada pele da virilha em relevo de mordidas atestava o que fora promessa. A marca rósea de dedos espalmados nas nádegas confirmava.

Miolos. Empanados. Empapados d’Ele.

Seu lugar, agora, seria no quarto. Exigência d’Ele. Quero ter você na hora em que eu quiser, falou. Eu aceito, acatou submissa.

- IV -

Cidinho, após o casamento, cuidou de tudo. Gostou do marido não a querer trabalhando. Para que, chuchu ? Você precisa largar as recordações de sua mãe, não te quero triste, benzinho. Quero que compre o que quiser, que decore nosso lar como convier. Foi trabalhar após o beijo na testa.

Entregou-se. Gosto quando o corno sai. Gosto de lhe ver sofrendo pelos chifres dele. É assim que quero. Vai fazer amor com ele vez em quando, recatada. Quanto a nós, vamos trepar todo dia. O dia todo. Quero permanecer no quarto. Agora é suíte, não ? Minha vadia tem uma suíte. Eu tenho uma suíte. Assim foi.

Ela penava a alegria do corno bem-sucedido arrumando a gravata em frente a Ele: virava pra cá e pra lá, recendia Lancaster. Sorria Kollynos. Corretor de seguros.

O corno feliz já foi, ouvi a porta fechar. Venha ! Ia. Abra-se, cadela ! Abria-se. Agora de quatro, vagabunda, quero aproveitar outras opções. Olhava para trás, sentia sobre si o peso das sobrancelhas deliciosamente malévolas e dominadoras d’Ele. Urrava e gozava com o brilho de cristal prateado dos Seus olhos.

Engravidara. Nunca mais, Ele. Tédio que se quebrava apenas quando se masturbava – com dificuldade pelo tamanho da barriga – em frente a Ele. Provocava. Auto-flagelava-se. Inseria objetos. Fazia-se puta, como aprendeu a ser. Nunca mais, Ele.

Primeiras contrações. Água da bolsa. Ligou para o marido avisando. Correu em frente ao espelho. Filho da puta ! Filho da puta ! Filho da puta !

De costas, anda !

Arrepiou-se, levantou a saia apoiando-se no puff. Sentiu a penetração rija dilatando o esfíncter. O líquido seminal quente em suas entranhas. Rebolava ensandecida naquela piroca que esfolava suas carnes. Bafejo quente e cheiro de loção ordinária misturada ao acre do suor. Foi o gozo melhor que teve na vida.

- V -

Voltou da maternidade e correu para o quarto. Nada. Cadê o espelho ? Qual espelho ? O grande, do quarto, que era da mamãe. Nunca vi, sua mãe tinha um espelho ? Olhou esgazeada ao redor. Benzinho, nunca tivemos espelho, apenas o do banheiro. Seu choro só foi abafado pelo do bebê. Benzinho, o neném.

Entrou no quarto do menino. Mijado. Foi trocá-lo. Enquanto via o balançar das perninhas, ela sentiu o peso do pequeno olhar de sobrancelhas deliciosamente malévolas e dominadoras. O brilho de cristal prateado dos Seus olhos.

Sorriu, aliviada.

Hoje teremos miolos empanados para o almoço, como a mamãe fazia.

Você prepara uma groselha para mim ?

Adoro.

-*-

04 setembro 2009

Dor e comoção no velório de Elton Brum
(Foto: César Soares/Especial para o portal Terra)



TERRA PÚRPURA
(Daniel Oliveira)



Dominado o homem
Liberada a fome

Executado o gesto
Disparado o tiro
no alvo caído
Feito bandeira se eleva
e tem nome o sem-terra

El ton de la lucha
Elton da terra.

10 agosto 2009

MAMÃE
(Alexandre Campinas)


Minha esposa parou em frente à casa, antes de passarmos na loja de decoração, como havíamos combinado de fazer naquele sábado. Eu pedi. Um ano depois, entrava lá pouco antes da demolição. Nostalgia ? Talvez. Em tudo há um lado humano, mas isso eu guardo para mim. Que importa dizerem que sou frio, insensível ? Não tenho que provar nada para ninguém. Basta que eu saiba o quanto tudo me é caro. O mundo tem uma lógica e eu adapto-me a ela. Só. Sei que, no momento em que entrei, estava apertado. A premência urinária acabou por levar-me a uma viagem nada melancólica. Besteira isso de dizer que nostalgia e melancolia são a mesma coisa. Nostalgia é deleite; melancolia, saudade do que não houve.



Após girar a chave, atravessei o corredor vazio. Sem passadeira, sem quadros nas paredes, nem fotografias de família, tampouco os meus retratos. Aquele com vários rostinhos no mesmo papel fotográfico, outro com roupinha de marinheiro, ainda o de índio em baile de carnaval. Senti falta do aparador na parede junto ao quarto. Onde ficava a estátua de Sant'Ana ensinando Nossa Senhora e um vaso pequeno com lírios sempre frescos do jardim. Ou rosas brancas, quando não havia lírios. Sou católico. Vou à missa dominicalmente. E comungo após a confissão. Besteirinhas, pecadilhos. Um padre-nosso, por vezes somado à uma Ave-maria. Jamais insensível: como esquecer ? Olho para cima e, agora, o antigo forro azul-claro revela-me a madeira comida pelos cupins. Tinha o hábito de deitar-me no chão, criança ainda, e, naquele ambiente quase sagrado que o aparador garantia, tomar o teto por céu. Imaginava anjinhos.


A porta, um tanto resistente pela falta de uso (quase um ano após o negócio), não resistiu às minhas urgências. Rangeu um pouco, mas cedeu fácil. Que chão sujo ! Ela teria vergonha. As mesmas paredes com azulejos verde-escuro até a metade. A tinta-óleo que completava a altura já não havia mais. Cada passo em direção ao vaso sanitário deixava a marca dos meus pés sobre a poeira que tinha tomado o piso hidráulico, antigo e belo. Fechei os olhos e o arrepio do xixi represado empipocou-me a pele dos braços. Girei o registro da torneira. Em vão, que besteira... Pois a casa não estava vazia há tanto tempo ? Hábito que ela me ensinou. Higiene. Mãos limpas sempre. Doce recordação: “vai lavar as mãos, denguinho”. Tão bom lembrar... Lavar as mãos já evocava o cheiro da comida. Feijãozinho temperado no alho e na cebola, bolinhos de arroz do dia anterior, salada, batatinhas com molho de massa de tomate, carne moída. Ela foi tudo. Esteio. Base. Vida.


Voltando pelo corredor, primeiro o quarto dela. No piso de tábuas, as marcas dos pés da cama de ferro da vida inteira. Não resisti e entrei. Não era boa a impressão do quarto vazio, no entanto amparei-me na lembrança. Lugar-comum ? Não sei. Não sou um estilista, mas aquele quarto dela era meu porto seguro. Em seu colo chorei a ausência de pai, que não conheci. Em seu colo contei de namoros e festas, fui repreendido pelo cheiro de cigarro (e a gente sempre pensa que as engana). No seu colo não precisava dizer nada: ela sabia de tudo e, quase sempre, seus cabelos longos e sempre muito bem penteados roçavam de leve minhas lágrimas, minhas pequenas dores, lembrando que ela estaria sempre ali. Elas são assim. Pelo menos a minha foi. Amiga e confidente. Muito, muito mais do que função biológica. Saí do cômodo com o coração repleto de memória. E de amor.


Três passos mais e o meu quarto. Abri a janela corroída pelo tempo e o sol entrou numa luz oblíqua da qual já havia esquecido-me. Quase cheguei a ver a caixa dos brinquedos da infância, sempre bagunçada (“arruma isso, menino !”), o violão cheio de decalques da adolescência (“rock não é coisa de Deus !”). O terno do casamento, pendurado, passado, engomado. O mesmo ar, embora um tanto empoeirado, encheu-me os pulmões. As narinas perceberam um pequeno toque do antigo cheiro. Memória olfativa, diriam. Já eu chamo de memória cordial. O cheiro dela ainda estava vivo na casa. E então percebi que a vida vale a pena. Uma vez mais respirei fundo. Sabia que nunca mais sentiria aquele cheiro. Queria guardar só para mim.


Aproveitei e empurrei também a janela da sala. Dava para o jardim que ela adorava com ares de altar. Dali saía a beleza da casa. Não apenas para as santas, mas em todos os cômodos o jardim se fazia presente. Era orgulho dela. Muito bem cuidado, hoje apenas terra esturricada. Tudo bem. Vida que segue. Entretanto impossível não identifica-la naquele passado. Já ia saindo. Lembrei: a cozinha. E estava lá com o fogão à lenha com seus tijolos descascados. A trempe, rota de ferrugem, resistia, ainda. Saudades dos biscoitos de polvilho fritos na hora. O mesmo piso do banheiro, questão de economia na loja de materiais de construção. Lembro que ela pagou o financiamento da Caixa Econômica até pouco tempo antes da sua aposentadoria. Lembro também que fizemos uma humilde festa dupla, de café e broa de fubá: aposentadoria e carnê quitado. Nossa casa.


Na saída, fechei o portão e passei a chave grande, antiga. Devolveria na segunda-feira à construtora que me deu a cobertura, no vigésimo sétimo andar, e um apartamento no terceiro, em troca do lote. Bom negócio. Olhei bem pela última vez. No alpendre, uma imagem mais evoquei. A cadeira de balanço na qual ela passava as tardes, conversando com comadres e observando o vai-e-vem dos vizinhos, ano após ano mais apressados em seus afazeres. Atropelo de vida. Minha mulher buzinou impaciente, ainda iríamos ao supermercado do shopping mais tarde. Pizza após as compras.


A cadeira de balanço também vendi para a loja de decoração. Pagaram muito bem. Aliás, foram honestíssimos e valorizaram corretamente todos os móveis e objetos que negociei com eles. Peças raras. Decoração antiga estava na moda. No dia em que levei a cristaleira imemorial, vi ser vendida praticamente no mesmo instante em que entrou na loja. Já havia um jovem casal aguardando. Não sei quanto pagaram por aquela raridade, mas eu estava satisfeito com o negócio. Bastava-me.


No estacionamento, paramos bem próximo da porta principal e o dono, belchior moderno, veio receber a derradeira obra de arte que eu entregava. O mesmo casal estava lá, ao pé dele. Encomenda especial. Pareciam saltitantes crianças ansiosas e alegres batendo palminhas. Quase eufóricos quando viram que eu a tirava, cuidadosamente, do banco traseiro. Apesar da minha conhecida objetividade, também sei fazer suspense.


Desembrulhei mamãe vagarosamente. Só para que eles vivessem o gozo da descoberta. Linda, mamãe. Corada, penteada, serena. Um belo trabalho do taxidermista. Cairia muito bem no living do jovem casal. Às compras, depois tem pizza.

08 agosto 2009

Aos companheiros e
às companheiras da luta:




Para refletir:

"Escutem estas duas aulas de
sabedoria, amor, justiça e vida".

LINK






02 agosto 2009

Como en Guernica
(Taiguara)


Ay, Hermano
Qué hasta que el día ese llegue
Yo no descanse y no duerma
Sin haber hecho muchas canciones

Ay, Hermana
Qué hasta que el día ese llegue
Tu no te canses, no mueras
Sin callar todas las represiones

Madre y abuela Vasconia
Vieja Vasconia en tus siglos
Arden los cuerpos de aquellos
Que abren mis ojos para mi pueblo

Madre y abuela Vasconia
Mi pueblo mezcla mil mares
Mi nombre indígena es rojo
Mi lengua es blanca, mi canto es negro

Madre y abuela Vasconia
Somos de América el sueño
Niños, caminos sin crimes
Pero sin dueños, y sin arreglos...

Madre y abuela Vasconia
Como en Guernica, tu árbol
Que acá no muera el motivo
Se abren los labios, aún que con miedo
Um folhetim, um pouquinho diariamente, Aqui e no orkut, "Bar do Escritor" e "Alterados.com". "Um triângulo no abismo" surgiu à partir de um conto do escritor Kinho Vaz. Alexandre Campinas gostou e pediu para transformar aquele triângulo... num triângulo.

Se o primeiro conto do Kinho Vaz foi um vértice, faria os outros dois. Já publiquei aqui Um triângulo no abismo - Outro vértice. Agora chegou a vez de Um triângulo no abismo - O terceiro vértice (Numa boa). Aí está.

Explicações dadas, ao Triângulo.


Um triângulo no abismo - O terceiro vértice
(Numa boa)


-1-


Aquela manhã era diferente. Que linda alvorada. Tranquila. Confrontava com as rolinhas que passavam apressadas em seu louco despertar em busca de alimento. Eu estava alimentado. Ela dormia profundamente em nossa cama. Tomamos o nosso chá e nos amamos novamente. Beijos e carinhos com a intensidade e emoção como há muito não fazíamos. Acho que valeu a pena. Sim, valeu.


Olhava, agora só, a paisagem das matas do sovaco do Cristo. Que lindo. Tive vontade até de tornar às poesias de um tempo em que era adolescente na Ilha de Paquetá. Quem sabe ? Quem sabe uma nova adolescência germinava em mim ? Uma adolescência como a que eu tive. Que boa recordação. Germinando. Eu. Novamente.


Tanta coisa diferente tomava corpo naquele momento. Toda a novidade que eu sempre desejei, e eu sabia disso, aconteceu num rompante que agora eu tentava administrar em minha cabeça. Afinal, não era esse o meu desejo ? E se porventura (ventura mesmo, eu digo) transformou-se em algo real, palpável, não era isso o que eu queria ? E esse sonho todo ? Não era meu e dela ? E dele ? Aconteceu ?


Pensar que há poucas horas estávamos nós três aqui. No meu... nosso quarto. Selvageria. Doce selvageria. Maravilhosa selvageria. Talvez há duas semanas eu nem falasse aqui dessa forma. Mas hoje... Eu nela, ele nela, ela em mim, nós nela, ela em nós. Assim. Dessa forma e nessa ordem. Parecia um daqueles loucos vídeos pornôs que eu coleciono.


Caramba ! O sono começou a bater. Que noite... Que dia... Que noite ? Que dia ? Minhas pernas adormecem gostosamente. Meus cabelos desalinhados caem sobre os olhos, mas eu preciso falar. Falar de mim, de tudo. De como isso aconteceu. Do bem que tudo isso me fez. Quero falar para ver se consigo compreender... Entende ? Antes de me largar ao sono do qual eu necessito, tenho que falar.


Foi hoje a noite que começou ? Quer dizer ... ontem a noite ? Quando ela apresentou-o como um amigo. E aí bebemos, ouvimos música, jantamos, conversamos, bebemos... Eu fui dormir e, de repente, me vi acordado e enlouquecido. Hipnotizado sobre minha esposa. Ele ali, olhando. Eu gostei dessa impressão. Eu a possuía e ela a mim de forma animalesca. Eu atrás dela, para onde ele me convidou. Ele ali. Como se estivesse esperando a vez... Estava.


Quanta surpresa. Que irracionalidade !



-2-


Eu a tinha visto algum tempo atrás esfregando-se com uma escova de cabelos. Fingi que não vi, mas ela ficou constrangida. Será que foi mesmo ontem quando tudo começou ? Eu fiquei algum tempo fora, em Brasília, advogando. Quer dizer, lobiando um pouco em favor da minha própria banca (como eles necessitam de advogados...), e... também de onda com uma terceira-secretária de gabinete de um deputado do Pará. Uma gracinha. Com aquela carinha deliciosamente redonda como só as do povo do norte. Curvas. Pele morena. Trinta e sete anos. Fruta pão assada na manteiga. Eu sabia o que queria e ela também. Ok: 1 X 1.


Pode ser que tudo tenha começado no dia em que liguei. Telefonei para avisar que teria que ficar mais um tempo em Brasília, que o caso estava complicado, etc. Parece que ela ficou um pouco triste. Acho que percebeu minha mentira. Ou, mais ou menos mentira. Mais mentira porque era para ficar mais tempo com a minha manga-rosa paraense; menos porque ela também tinha um caso com o deputado e, mesmo sendo terceira-secretária, estava quase conseguindo uma entrevista. Daquelas especiais, com charuto, uísque e jantar no Piantella.


Mas ela poderia ter ficado mais do que triste. Ela pode ter ficado puta da vida e resolvido ir à forra. Com qualquer um na rua. Sei lá ! Liguei três dias depois e onde ela estava ? Em Itaipava. Na nossa casa. Sabe-se lá com quem ... Apenas vingando-se de mim. Mas, se tudo isso que aconteceu foi uma vingança dela... Bendita vingança.


Ainda fiquei mais uns dias. Bela, podre, colossal e estonteante Brasília. Trabalhadora sim, Brasília. Estaria mentindo se dissesse que aquele burgo de poder e sedução não mexesse com minha cabeça. Mistérios e segredos. Amor e raiva, que ódio verdadeiro nunca há entre eles. Brasília me excita. Claro, tem a minha paraense. Mas isso não é tudo. Por todos. Pelos carros que passam velozes. Pelas mãos que se apertam e respectivas bocas que cospem de lado. Brasília é mulher. É uma fênix renascendo. Deitada em leito brasileiro, de braços abertos esperando seus amantes.


A paraense ? Esqueça. Em Brasília não há nomes. Nem eu o tenho ... Quer dizer, tenho. Ou não ?


Acordei. Perdi-me em Brasília, mas acordei. Não. Não pode ter sido quando prorroguei minha estadia lá. Antes disso, poucas vezes a encontrei em casa. Telefonava e nada. Também não mandava a empregada dar o recado. Não valia.


Tudo havia sido muito entrosado. Não podia ser acaso ou coisa de pouco. Foi antes de Brasília. Por quê ? Tudo bem... ainda estou meio zonzo. Imagina... Eu, minha esposa e... outro... Ainda por cima, mais novo e com o pau maior. Puta que pariu ! E a forma como se entregava a ele ? Isso era antigo. Eu sabia. Não era culpa minha...



-3-


Seria culpa minha ? O que eu fiz ? Deixei de fazer ? Não, nunca. E sempre fizemos bem. Fazemos tão bem que um dia cheguei a confessar para ela que tinha um sonho erótico de traição. Ela me traindo. Na minha frente ou não ... Que loucur... Isso ! Aí ! Porra ! Caralho ! Aí está onde isso tudo começou. Aí, bem aí. E quem disparou tudo foi o trouxa aqui ... Trouxa ? Que trouxa... Eu estou feliz.


Se eu estou feliz, ela é leve em seu sono e ele se foi, onde está a culpa ? Que culpa é essa ? Para que questionar onde tudo começou ? Para que mitificar o que virá, o que ainda não é ?


É... Eu bem que estou tentando. Mas na minha racionalidade é difícil de encaixar. Não é possível. Então ela não me quer mais ? Precisa de mais um para satisfazer-se ? Mas também... Não fui eu quem deu a idéia, quem sugeriu ? Não, não sugeri, mas também não deixei de sugerir. Que noite extraordinária ! Parece que as sensações formam uma névoa que entorpece a racionalidade. Eu estou com sono. Mas falo.


Falo até o final porque quero entender. Estar pronto para uma conversa séria quando ela acordar. Aí eu, já mais senhor de mim, vou querer saber como ficará. Como ficaremos.


Também quero saber o que ela pensa. Como tudo aconteceu. Tanto sexo. Tanto carinho. Tanto querer. O que levou a isso ? Entender, entender. Que delicia sentir seu sexo molhado em minha boca depois que tudo se acalmou. Suas coxas suadas e marcadas de amor.


Também não. Tudo o que aconteceu não pode ter iniciado quando eu falei naquela fantasia. Era muito carnal para isso. Instintivo. Era como se tudo sempre tivesse sido assim e que nada estava fora do normal. Eu é que estava com loucuras na cabeça.



Comecei a suspeitar e escanear todo o tempo que passamos juntos. Mais de vinte e cinco anos. Mais do que bodas de prata. Mais do que a história de nossa vida. Mais do que nosso casal de filhos, já casados e bem na vida. Era mais. Muito mais.


A coisa estava na origem. Só poderia ser. Aquelas coisas esotéricas de reencarnação das quais ela sempre falou. Devemos ter programado nossos destinos para isso.


-4-


Talvez todos nós, seres humanos, sejamos programados para isso. Como uma fábrica. Em série. Assim como os manufaturados, a grande maioria funciona corretamente. Escondendo pequenos desvios de funcionamento. Ofuscando-os com brilhantes virtudes. Outros são mais expostos. Não funcionam tão regularmente e causam descontentamento. Alguns mais, poucos como nós, somos os que carregamos todos as nuances do manufaturamento. Somos brilhantes e sabemos nos utilizar da loucura do arrebatamento e da compulsividade para agradar a todos. Para nos agradar e sermos felizes. Quer dizer, funcionar.


Então Deus planejou isso tudo ? E isso lá não se chama sacanagem e putaria ? Parece. Óbvio. Se crermos realmente com fé na origem divina e, sendo parte dessa origem ... Deixa pra lá. Metafísico pra caralho...


Mas essa, realmente, derrubou-me. Não sei se deveria falar assim, mas deixou-me de quatro. Tudo bem. Suponhamos que eu compreenda como tudo aconteceu e mais: que tenha achado onde tudo começou. E foi bom e ponto. Maravilhoso. Pra muito lá de bom. Se eu entendo, compreendo e gosto da idéia, por que ficar procurando o porquê ? Aí é que está. Eu concordo com tudo o que houve, mas não posso deixar de querer saber e preocuparme sobre como vai ser assim que ela acordar. Digamos que por mim, tudo bem. E se ela não me quiser mais ? E se ela desejar um mundo novo ?


Será que essa insegurança também é coisa da origem de tudo ?


Cochilei e acordo agora, com ela chamando o meu nome. Pão de forma, manteiga, geléia, queijo, presunto, capuccino, suco... Quanto carinho para me receber na cozinha... Beijinhos e pequenos apertões aqui e ali. Tudo como sempre. Numa boa. Como se nada tivesse acontecido. Ela perguntou:


Amor, já que você ficou tanto tempo fora, por que não tirar uns quinze dias na serra ?


Sem pestanejar, mandei na hora:


Você não gostaria de passar esses quinze dias em Brasília ? Eu lhe mostrarei a magia daquela cidade.


Ela concordou.


No mesmo momento comecei a pensar na minha paraense. Nela e na minha paraense. E eu. Três. Novamente.


Talvez ela simpatizasse com o deputado... Mas aí mudaria a geometria toda.

-*-

A alegria dos
prazeres inofensivos
(Roberta Simoni)


Respirar cheiro de gasolina. Pisar em folhas secas nas ruas de outono. Ver a primavera florindo. Dormir sem roupa no verão. Nadar pelado. Comer chocolate, tomar sorvete no inverno. Ter muitos orgasmos. Ver o pôr-do-sol. Ouvir o silêncio da madrugada. Sentir o cheiro da terra molhada. Caminhar na beira da praia. Compor uma música. Tocar uma viola. Escrever uma poesia. Dar um beijo apaixonado. Acordar ao meio dia. Viajar sem comprar passagem de volta. Dar presentes. Receber presentes. Escrever uma carta. Receber uma carta. Ler um livro. Escrever um livro.

Ter um sonho bom, dormindo ou acordado. Brincar de pique-se-esconde. Tomar banho de água quente. Cantar debaixo do chuveiro. Ser acordado com beijos na nuca. Entrar numa calça que antes não cabia. Andar descalço. Tomar chocolate quente no frio. Ter uma mangueira no quintal de casa. Ter um quintal. Ter uma casa.


Jogar baralho. Ganhar uma aposta. Abraçar um amigo. Se embriagar com um amigo. Ter um amigo. Rir sem motivo. Sentir frio no umbigo. Fazer uma surpresa. Ser surpreendido. Ganhar dinheiro. Trabalhar com o que se gosta. Viajar o mundo. Se perder no mundo. Se encontrar sem estar perdido. Banho de chuva. Paixão de verão. Cinema com pipoca. Amizade canina. Espera no portão. Cheiro que trás lembrança. Colo de mãe. Gargalhada de filho.

Um brinde à alegria dos prazeres inofensivos, esses que costumam ser tão pequenos que, às vezes, não passam de detalhes. Detalhes que dão cheiro, cor , sabor, e, principalmente, sentido à vida.

18 julho 2009

Soneto Torto e Quase Antropofágico
Sobre Mim e as Estrelas

(que em sua construção - pelo nome de Bilac ! -
não se perca)


Se estrelas não tivesse ouvido,
certamente cá não estaria,
senão abaixo dos umbrais, eximido.
Da vida. Interno em enxovia.

De poesia, lua e sol abandonado.
De canto e de amor carente,
ao canto, trapo humilhado.
Cruz aos ombros, ad eternum doente.

Então escuto e não as ouso entender.
Vivo seu som e voz. Também luzes mais que escuto
dum quarto, num espaço de crer.

Por estas luzes, que escuto, e todos os sons, que vejo,
arranco a minha repulsa da vida em luto.
Somo tudo e tiro a média, na rima quebrada do beijo.


03 julho 2009

Estrambote Melancólico


Carlos Drummond de Andrade

(bronze de CDA em Itabira)


Tenho saudade de mim mesmo,
saudade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor.
Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Mas se esquivam no inventário,
e meu amor é triste como é vário,
e sendo vário é um só. Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia
e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava. A estrela-d'alva
penetra longamente seu espinho
(e cinco espinhos são) na minha mão.

31 maio 2009

MANIAS
(Sirlei Passolongo)


Tenho manias
quase indisfarçáveis
versejo
os sonhos vividos
e as telas inacabadas.

-*-

NÃO SEI SE
A LUA MENSTRUA
(Sirlei Passolongo)



Não sei se a lua menstrua
mas hei que a vejo inquieta
em noites que ela se fecha
como quem tem raiva de tudo.
Por vezes parece gritar
quando as nuvens
impedem seu brilho
e ela faz cena,

não sai do lugar...
Como quem vive
um martírio
quer o céu todo pra si
feito fêmea impulsiva
logo míngua,
numa quase insana
fadiga.


Até que límpido
o céu fica,
ela cresce
e se enche
toda bonita
feito mulher
em dia de festa...
Esquece tudo
e sai pra brilhar.

29 maio 2009

(Recomendado por Tia Zorô, certamente com o aval de Tia Celestina)

Atormentado

(Tarcísio Zo)

Sei forjar a lava com sorvete,
Sei domar a fera com um apito,
Sei, com anzol, esculpir granito,
Sei lapidar cristal com a gilette,

Sei moldar barro com moto serra,
Sei, com Magiclik, manter a tocha,
Sei pintar com pés, só de galocha,
Sei, com o unhex, por fim à guerra.

Mas...

Não consigo começar,
Uma coisa atormenta,
Não sei onde foi parar,
A caixa de ferramenta.


25 maio 2009

Estrela cadente

(Alexandre Campinas*)





O sedan importado deslizava suavemente na grande avenida da minha cidade. Na madrugada, com chuva fina e ar-condicionado gelando dava gosto ouvir o Sinatra cantando MY WAY. Combinava. Complementava o cenário. Nos meus quarenta anos eu me sentia como um astro: A câmera fazendo um travelling em semi-círculo, lento, saindo de uma porta em direção a outra passando pela frente do carro.

Foi uma bela noite. O restaurante sofisticado da zona sul, repleto. Quarenta anos. Um sem fim de brindes. Champanhe francês e uísque doze anos, salmão defumado ao molho de amêndoas e batatinhas sauteé.

Eu estava cheio. De vida.

Amigos, parentes, esposa linda e perfumada, filho esperto e inteligente demais para os seus seis anos. Inesquecível.

Tudo ia de vento em popa. Negócios excelentes, casa de veraneio na região serrana, umas amantezinhas sem importância a quem eu presenteava com uma corrente de ouro aqui, um anel de pedra semi-preciosa ali, gargantilha acolá, coisa pouca. Prazer rápido. As influências políticas davam-me confiança para ir a frente cada vez mais. Charutos, antes holandeses ou dominicanos (que nunca fumei porcaria, nem nos tempos de dureza) agora belos havanas.

De tudo isso eu me recordo hoje enquanto cato guimbas pela calçada e esmolo a bebida do dia. “Vai trabalhar, vagabundo !” É mais um insulto que engulo, empurrado pela aguardente barata que já nem queima mais a goela. No começo eu sentia descer ardendo até provocar o refluxo ácido e doído lá do estômago. Hoje não mais. Ainda tenho estômago ? Ou isso também caiu em desuso, atrofiado, utilizado apenas quando tenho pesadelos com as mesas de antigamente, de lagostins e cavacas ?

Ainda uso o paletó antigo. Rota lembrança do que foi outrora um belíssimo corte italiano. Fico esperando que um companheiro de infortúnio me aborde a qualquer momento e pergunte: “Como vai, caro colega ?”

O tempo de estabilidade foi curto. A mosca azul envenenou meus dias. Penso: poison (eu sabia bem o francês). Por ganância associei-me a um mega-empresário e deputado. Um negócio de importação muito precioso: “ilegal narcotics”, digamos assim (eu sabia o inglês também).

A grandeza do sócio acabou por sobrepujar-me. Eu, que sempre mandei, diante da desproporção da sociedade passei a obedecer. Nem eu entendia o porquê mas fato é que sentia-me inferiorizado. Daí para as facilidades do álcool e das drogas foi um pulo. Uma descida rápida, comum a todos esses casos.
Obviamente a Maria Cristina descobriu a história das amantezinhas desimportantes que alcançaram descomunal importância na hora da partilha das poucas coisas que ainda não havia colocado em nome dela. Burro. Pato. Foi um litígio fácil. Para ela. O garoto, que então percebi nunca ter estado verdadeiramente próximo a ele, mostrou-se mais esperto do que eu me ufanava. E, agora rapaz, ficou ao lado da força. Com Maria Cristina e o deputado. Sim, o mesmo.


Agora olho para o céu e a vejo passar. Ajoelho e formulo aos brados o meu petitório. Passa um casal de namorados na pracinha da periferia. Ele interrompe as juras de amor entremeadas de solicitações sensuais que sei estar fazendo, pois o percebo na rigidez de seus bicos sob a javanesa o quanto sua nuca e colo se arrepiam, olha para mim e comenta com ela: “Bêbado imbecil. Fazendo pedido para bala traçante...” e seguem para o pipoqueiro.

Estou cheio, da vida.


“And now, the end is near;
And so I face the final curtain...”

* Livro Toalhas Vermelhas


24 maio 2009

Infâncias
(Ela Sanipmac)



foi uma criança feliz.
todos os jogos e brincadeiras.

descobriu que pra brincar de sério

não precisa disfarçar sorriso.



23 maio 2009

Quarta de cinzas
(Allan Vidigal)




COMENTARISTA (1): Muito bem, caro telespectador, bem-vindo a mais uma cobertura exclusiiiiiva da maior festa do mundo, o maior show da Terra, o magnífico Carnavaletudo da Cidade Maravilhosa. Tudo pronto para o desfile? Marcos?

Repórter (1): Do lado de cá, tudo pronto! A agremiação está a postos e o carnavalesco-em-chefe pronuncia suas últimas palavras de incentivo. Vamos ouvir um pouquinho:

Carnavalesco-em-chefe da UdAdA: (...) e se nóis perdeu no ano passado, foi de sacanagem, porque eles inflingiro as regra, tá sabendo? Esse ano é nóis que vai gritá: “Perdeu, preibói! Perdeu”! E vai ter sangue, vai ter suor, vai ter lágrima! Mais esse ano eles num ganha, não! Esse ano não vai ter pra ninguém!”

Repórter (1): Ouvimos as palavras do líder máximo da UdAdA. Com você, Carlão!

COM (1): Obrigado, Marcos. Luiz, depois vou pedir pra você comentar esse trecho do discurso. Mas, antes, vamos ver como estão as coisas do outro lado. Vaneska?

Repórter (2): Boa noite, Carlos, boa noite telespectador. Na frente oposta, tudo pronto, ou quase. Parece que tem algum problema com os adereços de uma ala, mas o porta-voz da escola me disse que vai estar tudo em ordem até a saída aqui da concentração. Um detalhe, Carlão: eles estão prometendo uma grande novidade para a bateria!

COM (1): Obrigado, Vaneska! Muito bem. Luiz, você tem alguma coisa para falar da reclamação que acabamos de ouvir sobre quebra do regulamento?

COM (2): Tenho, sim, Quer saber? Isso é frescura. O regulamento não fala nada, mas também não proíbe! Se todo o mundo ficar só no pé da letra da regra, não tem inovação, a festa não progride! Eu acho que o que eles fizeram no ano passado foi corajoso, se você quer saber. E taí! Agora as outras escolas também vão ter que inventar coisa nova pra ganhar. Isso é arte popular, não pode querer botar muita regra que azeda!

COM (1): Mas a coisa toda foi muito discutida... teve até envolvimento da ONU!

COM (2): Frescura! É Carnaval! A ONU não tem nada a ver com isso!

COM (1): Obrigado Luiz! Lembramos ao telespectador que as opiniões dos comentaristas não refletem necessariamente as da emissora. Pois bem. As escolas estão em aquecimento, as equipes técnicas estão dando aquela arrumadinha de última hora... vamos aproveitar para repassar as regras, com nossa convidada especial, a Comandante da Polícia Militar do Estado do Rio, Cel. Rosinha de Copacabana!

COM (3): Obrigada, Carlão. A gente não tem muito tempo, então vamos lá. É muito simples, aquela coisa de sempre: os jurados levam em conta originalidade, beleza, desenvoltura e letra do enredo, mas nada disso importa muito. As escolas começam cada uma em uma ponta da avenida e se encontram no meio. Ganha quem chegar do outro lado com mais integrantes vivos. Vivo sem ferimento vale um ponto; ferido que puder se locomover sozinho vale meio; e de maca vale zero-vinte-e-cinco. Depois da confusão do ano passado, a Liga resolveu adotar as Regras de Convenção de Genebra, então podem tirar o cavalinho da chuva: nesta edição não vai ter gás mostarda, já que usar armas químicas custa meio ponto e, com o desfile competitivo como anda, isso pode fazer a diferença entre a vitória e a derrota.. Mas é uma boa mudança porque vai forçar as agremiações a inovar dentro do que é permitido.

COM (1): Obrigado, Comandante Rosinha! Muito bem, amigos telespectadores! Últimos segundos antes de começar a festa! Este ano, o G.R.E.S.C. CV vem com o seu enredo acid-fusion transgênero: “Von Clausewitz, minha Mulata”. Do outro lado vem a Unidos dos Amigos dos Amigos vem com um enredo eletrizante e muito ligado às raízes da nossa cultura popular, o lírico samba-funk “Pol Pot e Beria Sambando no Micro-ondas”, uma homenagem singela a dois grandes pensadores tão admirados pela nossa gente. E lembramos que, para este ano, a AdA promete uma novidade inesquecível!

(morteiros disparam granadas de fósforo branco que iluminam a passarela, marcando o início do desfile)

COM (1): Luiz, o que você tem a nos dizer sobre as comissões de frente?

COM (2): Olha, Carlos, a da AdA não tem nada de mais, se bem que eles estão prometendo alguma coisa nova logo em seguida, para o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira. Já a do CV é originalíssima: são 14 cães neuróticos executando uma bela coreografia.

Repórter (2): Carlão?

COM (1): Pois não, Vaneska?

Repórter (2): Carlão, a bateria do CV mal entrou na avenida e já se prepara para mostrar a tal surpresa. Não vão nem esperar fazer a cabeça de praia no recuo!

COM (3): Carlão, isso vai ser interessante...

COM (1): Por que, Comandante?

COM (3): É que eles pediram para a gente uma autorização especial... eu não vou falar o que é para não atrapalhar a festa, mas se prepare que vem coisa boa por aí!

(poucos metros depois da saída da concentração do CV, um clarão e um estrondo; segundos depois, toda a ala de Baianas Kamikazes da AdA é vaporizada)

COM (2): Que beleza! Que originalidade! Isso é que é arte popular, minha gente!

COM (1): Comandante?

COM (3): Pois é, Carlos. A surpresa era essa aí que você acabou de ver. Além dos seus já tradicionais surdos de kevlar e tamborins de repetição, este ano a bateria do CV veio com uma companhia de artilharia. São doze obuseiros auto-propulsionados M 108 de 105mm!

COM (1): Então era essa a grande surpresa do CV. Muito bem! Pena que o efeito não foi tão grande quanto poderia ter sido, não pegaram nenhum carro alegórico, só infantaria leve. Mas provavelmente, no ano que vem, eles já vão ter um pouco mais de experiência com balística.

Repórter (3): Carlão?

COM (1): Diga César!

Repórter (3): Carlão, eu estou aqui no meio da passarela, onde as duas escolas devem se encontrar daqui a segundos. A comissão de frente da AdA parecia um pouco recalcitrante, mas os técnicos jogaram gás de pimenta num deles e eles estão avançando de novo. E olha só, Carlão! A comissão da escola oponente parece que sentiu o cheiro de medo deles e pulou em cima! A coreografia desandou e isso vai custar pontos, mas os bichinhos estão mostrando a que vieram! Acabou de passar por mim um mastim que foi best in show no mundial do ano passado, arrastando pelo pé um membro da outra escola. E parece que já acabou, viu, Carlão?

COM (1): É uma pena... o confronto entre as comissões de frente costuma ser equilibrado e durar um pouco mais. Mas vamos em frente que a coisa aqui não para! Os dois primeiros casais já estão a apenas vinte metros um do outro, prestes a dar início ao mais belo momento do desfile, na minha modesta opinião. A porta-bandeira da AdA vem com uma lança simples, enquanto a do CV traz uma alabarda decorada com as cores da escola!

COM (2): Faz tempo que a gente não vê coisa nova nessa área...

COM (3): Ah, mas tem outra surpresa por aí! Vocês vão ver e é já!

(Durante a evolução, o mestre-sala da AdA puxa duas Ingram MAC-11 de dentro de sua túnica e esvazia os pentes sobre o casal da outra agremiação. Assim que pára de atirar, cai vítima de dobermans furiosos, enquanto a porta-bandeira luta bravamente contra um dogo argentino meio manco que termina empalado).

COM (2): Ah, isso sim! Que beleza! Isso é que é cultura popular!

COM (1): Não sei não... isso pode, Comandante?

COM (3): Pode sim, Carlão. Foge à tradição, mas não tem nada na regra que proíba.

COM (1): Eu acho uma pena... sempre apreciei essa tradição do combate apenas com armas brancas entre os primeiros casais...

COM (2): Se dependesse de você a gente ainda tava naquele negócio chato de uma escola por vez e só com dancinha pra cá, dancinha pra lá.

Repórter (3): Carlos, agora os dois primeiros carros alegóricos se aproximam do meio da Pista.

COM (3): Pois é, vamos ver como eles se saem. Por enquanto ninguém pontuou, já que a porta-bandeiras da AdA pisou num mina anti-pessoal que o CV plantou na entrada da concentração. E olha, gente, que vai ser equilibrado.

COM (1): Costuma ser, né? Mas explique para o telespectador, Comandante Rosinha.

COM (3): Os dois vêm com blindagem nível I e lança-chamas. Provavelmente vai dar M.A.D.

COM (2): Mutually Assured Destruction? Coisa mais sem graça...

(ao se aproximarem um do outro, os dois carros abrem fogo ao mesmo tempo, transformando um ao outro em pilhas de metal retorcido e nuvens de fumaça e purpurina)

Repórter (3): Carlão?

COM (1): Diga, César!

Repórter (3): Tem uma movimentação diferente por aqui, viu? Acho que vem aí a tal grande surpresa da AdA.

(de um carro alegórico da AdA ergue-se uma torre de metal em que está pendurada uma enorme tela de projeção. Sobre a tela, surgem números: 1:00 ... 00:59 ... 00:58)

COM (3): Essa eu não sei o que é... não tinha nada nos formulários sobre contagem regressiva...

(continua a contagem regressiva. Abaixo dos números, surge a mensagem: “Segundo lugar, nunca mais! Pelo sangue derramado dos nossos sambistas! Insh’Allah!”)

COM (3): Carlão, Meu contador Geiger tá dando uma leitura estranha... tem algo de errado aqui...

Repórter (3): Carlão, eu não tô entendendo muito bem o que está acontecendo, mas os integrantes da AdA estão amarrando faixas verdes na cabeça...

COM (2): Mas essa não é a cor deles! Vão perder pontos com isso!

COM (1): Cala a boca, Luiz!

COM (3): Meu deus do céu, foi por isso que eles invadiram Aramar!

(00:01 ... 00:00)

(dizem que o cogumelo foi visto até em Parati. Na quarta-feira, o pouco que restava da Região Metropolitana estava coberto de cinzas)

QUADRINHAS
COMPRIDAS
BASEADAS

(Lecam)

tranças, meninas, vida sem fim...
"jequitinhonha, braço de mar" *,

dá teus sonhos todinhos pra mim:

beijo e carinho pra namorar.


-*-


"nas nuvens ou na insensatez", *

cadê menina, o sorriso meu ?
dentes alvos, claros, clara tez,

a marca, guardada, você fez.

-*-

"o céu entre as estrelas vou cantando". *
pra cada qual tem um sonho teu.
eu colho todas e vou bordando

a colcha do sonho que é meu.





* Paulinho Pedra Azul




Sem palavras

17 maio 2009

Um folhetim, um pouquinho diariamente, Aqui e no orkut, "Bar do Escritor". "Um triângulo no abismo" surgiu à partir de um conto do escritor Kinho Vaz. Alexandre Campinas gostou e pediu para transformar aquele triângulo... num triângulo. Se o primeiro conto do Kinho Vaz foi um vértice, faria os outros dois. Aí está. Primeiro, aos poucos, o outro vértice. Após a publicação integral deste, vamos postar os outros dois, incluindo o original.

Explicações dadas, ao triângulo.

UM TRIÂNGULO NO ABISMO

OUTRO VÉRTICE


(Alexandre Campinas)

-1-

Agora estávamos a sós. Eu e ele na varanda do nosso quarto, sorvendo com serenidade o chá que preparei. Cada um em sua cadeira de palhinha. Em silêncio. E aquele cheiro morno e úmido de hortelã. Deus. O que fizemos ?! Sem falar, apenas desfrutávamos a linda vista da Floresta da Tijuca e ouvíamos seus sons. Sabíamos o que conquistamos, porém não tínhamos a exata noção do que havíamos feito, do ponto ao qual chegamos. Mas era bom.

Ele levantou-se suavemente, debruçou-se no gradil e olhou profundamente a natureza da paisagem (como jamais supunha pudesse fazer). Ainda calado, voltou seu corpo nu em minha direção, deu um passo no chão frio de granito e ajoelhou-se naquela pequena alcatifa iraniana, junto aos meus pés. Abraçou minhas pernas, beijou o joelho que escapava do peignoir. Olhou nos meus olhos como se mirasse o horizonte no mar. Falou. Respirou fundo e falou: Obrigado amor, muito obrigado. Foi uma lua-de-mel diferente, única. Serão assim todos os dias daqui pra frente. Sempre.

Que preciosa sensação me invadiu. Meus olhos umedeceram a face com delicadeza ao mesmo tempo em que umideceu-se meu sexo. Entreabri minhas pernas entregando-me a sua boca. Fechei os olhos. Novamente eu gozava muito. Uma paz. Meu marido, meu homem. Antigo marido, macho recém-nascido para nossa vida. Recém-nascido para uma nova mulher. Integral. Uma fêmea em flor.

Pensar que não nos conhecíamos. Mal passados alguns poucos anos de nossas Bodas de Prata e não nos conhecíamos. Ao menos como deveria ser.

Evoluímos em nossas ocupações. Ele, eminente criminalista; eu, há três meses aposentada da função de gerente de repartição onde entrei aos dezoito anos. Construímos tudo. Do quarto-e-sala alugado no difícil começo de vida até a fazenda, a bela casa em Itaipava, esse apartamento com vista para o “sovaco do Cristo”, como ele dizia, e a garantia de uma consistente poupança nos dias de hoje. Nosso filho, advogado de futuro brilhante na banca do pai. A menina, pediatra com um belo início de carreira. Ambos casados e cuidando de suas próprias vidas.

Tudo perfeito. Identificação e prazer na cama. Fazíamos tudo bem feito. Nosso relacionamento sempre muito bom, pequenas brigas, normal. No mais, um casal perfeito como dito pelos bons amigos. E éramos. Ou acreditávamos nisso.

-2-

Um dia, nas preliminares, ele me falou de traição. Não. Nem minha, nem dele. Era apenas uma fantasia. Eu gelei ali. Ficou puto. Afinal não éramos um casal moderno, entrosado ? Não poderia falar de suas fantasias ? Não, não é isso... é que... e a resposta ficou no ar. Não tinha como nem o quê responder. Ok, ok, sem brigas, vamos dormir.

Aquilo me implodiu. Ele não tocou mais no assunto e mesmo assim aquilo não saía da minha cabeça. Não era vontade de trair, e não deixava de ser. Meu Deus... sou uma mulher bonita, educada, com uma vida normal, sexualmente satisfeita... faço reposição hormonal, desconheço o climatério, ginástica, massagens, meu Deus... o que está acontecendo ? Não, é errado... e bati suavemente a mão na mesa do Café como se veladamente discutisse com alguém.

Aquele rapaz reparou no meu gesto, que vergonha. Corri de seus olhos baixando os meus para o Baudelaire que já não lia e para o capuccino frio sobre a mesinha. Reparei minhas mãos. Unhas bem feitas. A aliança entre os anéis. Seria inconsciente ? Será que por algum motivo escondia minha condição social entre os anéis ? Ou por outra: por que escondia minha condição social entre os anéis ? O rapaz já não me olhava e sim para o meu livro, minhas mãos, sei lá ... Quando viu que o percebia, desviou sua atenção. E aquele casal em beijos apaixonados na mesa do fundo... Via-me nela e, pela primeira vez na vida, não via meu marido naquele parceiro. Paguei e saí em busca da Cecília. Um antigo livro dela que uma amiga indicara. Só acharia em algum sebo e havia um, justamente umas quadras além do Café.

Andava e ia perscrutando o duelo da minha razão (tosca e mal-formada retórica católica) contra minhas emoções e seus respectivos questionamentos que surgiam como enxurrada tropical, derrubando e levando para longe a razão. Não, não sou assim. A razão não deveria perder-se nesses ardis da minha emoção...

Pôxa, sou uma mulher bem casada. Para que todo esse pensar que me desnorteia ? Claro, tenho meus desejos, fantasias. Mas são apenas isso: fantasias. Criações minhas destinadas a distrair-me nos momentos de tédio. Normal. Fantasias normais. Ou desejos ... ? Qual seria a diferença ? Onde a fronteira ? Estava encurralada. Cu... Ralada... Para, para ! Não pensa mais. Para. Os outros que passam já devem estar reparando. Estou louca. Ou então caminhando a passos rápidos para a loucura... Os outros reparando meus pensamentos ... Que imbecilidade ! E nem foi isso que pensei. Realmente nem foi eu quem pensou. Ou foi ? Ou foi outra mulher em mim ? Ou outra, ou aquela mais ? Quantas mulheres habitam em mim mesma ? Merda ! Passei um quarteirão do endereço do sebo que minha amiga me deu. Terei que voltar. Não pensa. Não pensa. Número tal. Número tal. Entrei.


Parada em frente a empoeirada estante de poesia olhava fixamente o livro pretendido. Peguei, abri. Olhava, sabia e não via. Enxurrada. Enxurrada é assim: tem que passar toda. Não adianta por o pé atravessado, que ela contorna e segue seu curso. A cabeça fervilhava. Pensamentos sem-vergonha. Não ficavam bem em mim. Sou uma mulher inteligente, racional, plena. Não ficam bem e pronto. Outro homem, ora essa... Não fica bem. Outros homens, vários homens... humm... vários homens... Preciso chegar logo em casa.

Uma presença ao meu lado trouxe-me de volta a realidade. Era o homem que me fitava naquele Café. Nas mãos um livro de Manoel Bandeira. Pode-se dizer que examinava com carinho extremado aqueles livros. Lembrou-me um fiel diante do altar preferido. Nem feio, nem bonito. Mas um olhar... Como posso explicar seu olhar ? Era muito mais que um olhar daqueles dos quais se diz desnudar a mulher. Não era assim grosseiro, mas penetrava. Desnudava. A alma.

Seria coincidência sua presença ali ? Não sei. Tudo o que sabia naquele momento é que a sua presença me invadia. Um estranho. Deu vontade de transformar aqueles poucos segundos em geleiras eternas, a sensação era boa e ruim ao mesmo tempo. Devolvi Cecília à estante fingindo não ser aquele o livro procurado. Outra coincidência. Ele também devolvia Bandeira. Nossas mãos tocaram-se levemente e, como sutil corrente elétrica, meus pelos todos se eriçaram. Tive medo. Um estranho. Tratava os livros com adoração, porém um estranho.

Pediu-me desculpas; falei um não foi nada qualquer, tentando a custo manter-me nos saltos. Puxou conversa. Educado, boa impressão. Falou algo da admiração mútua entre aqueles poetas contemporâneos e de uns versos que Bandeira escreveu para ela: “Cecília, és tão forte e tão frágil como a onda ao termo da luta. Mas a onda é água que afoga: tu não, és enxuta.” Caramba ! Era assim que estava me sentindo em sua presença. Uma onda ao termo da luta porém, nem tão enxuta mais. Bem que tentava... O cara me encantava. Falou de Simone de Beauvoir, Sartre, existencialismo. Culto. Convidou-me a um café. Resisti polidamente. O quanto pude. Uns cinco segundos... Como aquela tarde voou.

Três vezes nos encontramos, sempre no mesmo café. Eu, cheia de mim, poço de convicções, ia-me deixando encantar. De café em café ele ia lendo meus parágrafos, questionando minhas próprias interrogações. Confundia. Minha mente. Confusa. Falava de um universo louco, de seres que davam-se aos prazeres sem culpas. E eu penando as minhas. Minha velha luta aflorava na abertura de um mundo novo apresentado por ele. Sentia minha ridícula retórica sendo absorvida osmoticamente por uma filosofia um milhão de vezes melhor alicerçada.

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Outros cafés viriam. E como viriam... Naquela segunda-feira subi sozinha para Itaipava. Meu marido estaria toda a semana em Brasília acompanhando um caso no Supremo. Lobeando, como costumava dizer. Resolvi que também passaria a semana toda na serra. Meu amigo emprestou-me um livro do João Ubaldo. Leitura, frio, vinhos e... maus pensamentos. Maus pensamentos... Novos pensamentos, uma razão menos cartesiana surgia em mim. A Casa dos Budas Ditosos. Puta que pariu !! Uma revolução. Eu, entre a cruz (que me impuseram) e a caldeirinha (que desejava). Grande sacana, aquele homem ! Estava apaixonada. Não amor, companheirismo e todos esses rótulos comuns. Era uma coisa pulsante, e eu sabia bem onde pulsava. Já na terça-feira terminei o livro. Foi devorado com avidez. Havia marcado um café com meu amigo na sexta. Teria, portanto, tempo para digerir tudo. Ou tentar.

Ainda racional, tentava achar o motivo das coisas. O motivo das minhas coisas. Não era possível que tudo acontecesse como um turbilhão sem pé nem cabeça. Tinha que ter um começo, um meio, um fim. Faltava-me método. Era assim que funcionava a minha resistência, levando ainda, agregado, um supurado apêndice implorando bisturi: a tal formação. Impregnada de quês e porquês, doente, cheia das culpas comuns que carregamos. Pronto. Já estava falando como ele.

Naquela mesma noite, mergulhada nos vapores da taça de vinho, várias taças então, vislumbrei no crepitar da lenha na lareira a solução. Ainda pensava assim: tudo tem que ter solução. Deliciosamente alcoolizada, entregava os pontos para aquela lógica. Pudera. Naquele estado não resistiria a nada e ainda por cima solucionaria a crise do Oriente Médio... A lenha queimava como passa a vida. Existe um motivo lógico, uma finalidade. Estala, mas queima. Predispõe-se ao fogo. Aí é que está ! Eu estalei muito, mas queimei desejando o fogo ! (Ô ébria...)

É isso que está acontecendo comigo. Nada é ou foi ruim. Apenas quero mais ! Fogo, álcool, luxúria, Budas Ditosos, meu amigo, culpa. Muita culpa. Gozei. Não ! Está errado. Estou errada. Sou uma mulher honesta. E deixaria de ser caso esmorecesse a resistência ... ? Estaria roubando, matando, trapaceando, traindo ? Traindo ? Só se fosse a mim mesma, aos meus desejos, negando-os, negando o prazer que meu corpo desejava. Estava perdida entre as várias mulheres que eram eu. Adormeci. Sonhei com uma enorme orgia. Eu, mulher, e vários homens sem rosto. Todos ardendo dentro da lareira. Maldita culpa católica !

Acordei bem disposta. O vinho não provocara a ressaca temida. Tomei um banho bem quente e demorado. Evitei pensar. Era tão cedo que escutava os bem-te-vis cantando. Era essa a hora que minha mãe me levantava para a missa. Para, mulher. Sem influências. Nem pró, nem contra. Você não é desenho que admita diabinho e anjinho soprando aos ouvidos. Hoje vou ter tempo para pensar. Organizar, entender, estruturar. Ou desestruturar...

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Saí andando pelas pedras irregulares no meio do gramado da casa até um pequeno bosque que havia após a sauna. Ainda fazia frio mas o céu azulíssimo prenunciava uma quente manhã na serra. Com direito a piscina e ao sol ardente de Itaipava. Naquele momento queria apenas esticar as pernas antes do café da manhã. Estava bem, mas pensando sempre, o tempo todo. De onde vinha aquela insatisfação ? Não era com meu marido, não era comigo, não era com a vida, não era com nada, mas existia. Lembrei da noite anterior, do sonho, e do que havia descoberto: eu quero mais. O cheiro de mesa posta alcançou-me. O estômago venceu.

Após o desjejum, piscina. Pus o micro-biquini que comprei no shopping. Não havia homens por perto, apenas a caseira. Seu marido trabalhava para várias casas daquele condomínio, portanto não voltaria tão cedo. Soltei a parte de cima e imediatamente pensei em meu amigo. O que ele acharia dos seios daquela jovem senhora ? Que desejos despertariam nele ? Despertariam ? Eu o desejava. Eu queria mais ! Queria ele. Mas não queria...

Aquela insatisfação não poderia continuar sem que eu soubesse de onde vinha exatamente. E se fosse isso mesmo e eu falasse sobre o assunto com meu amigo ? E se ele sentisse a mesma coisa ? E se tivesse tesão por mim ? Aí eu estaria roubada... E se eu fosse apenas um objeto de conquista para ele ? E se eu o preferisse ao meu marido ? Não estava satisfeita sexualmente ? Estava, estava sim, mas ... Eu queria mais. Vagabunda oferecida ! Sai da minha orelha que não sou desenho, já falei. Vai fundo, de cabeça ! Nem de você, sai daí.

Depois do jantar, sentei na cadeira de balanço e li a Cecília. De cabo a rabo. Será que ele estaria lendo o Bandeira ? Se estivesse, certamente pensaria em mim como a onda ao seu termo. Só não sabia se ele me imaginava a espuma que afoga ou, por outra, vislumbrava o ser enxuto de tudo que se fortalecia em mim.

No outro dia entreguei-me à pequena horta como um viciado em recuperação. Vou pagar pra ver. Vou pagar pra ver. Vou pagar pra ver. Como está não vai ficar, isso só vai prejudicar a mim, ao meu casamento. Não pode ficar.

Já havia cumprido tudo o que programei. Não sei se estava certa do que faria, ou mesmo se faria, mas já não poderia ficar na serra com o café marcado para o dia seguinte. Tinha que me preparar, cuidar. As unhas, uma escova. Comprar uma roupa nova, uma lingerie... Passar o tempo da melhor forma possível até as quatro horas de sexta.

Peguei a estrada e, no Rio, direto para o shopping. Nada melhor para passar o tempo. Ali encontraria todo o necessário para o encontro do dia seguinte. De vez em quando permitia-me essas dondoquices. Sobretudo nessa vez.

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Como uma colegial, preparei-me para o encontro das quatro. Eram onze da manhã e eu já conferia a roupa, os sapatos, o livro que devolveria. Ensaiava o que falar, como abordar os assuntos que precisava falar com ele. E "precisava” era pouco. Nem almocei. Um pouco mais tarde, meu marido telefonou avisando que precisaria continuar em Brasília por mais uma semana, as coisas tinham-se complicado. Merda, merda, merda. Não que eu não tivesse gostado da notícia. Gostei, e muito. Mas a ligação, sua voz, o beijo estalado que ele mandou... Tudo aquilo fez com que eu me sentisse mal, muito mal. Naquele momento todas as culpas voltaram. Afoguei-as no banho. Duas horas na hidromassagem. Sais e espumas. Incenso e mantras. Uma perfeita colegial.

Enxuguei-me e gotas do meu Channel no. 5. Pode parecer lugar comum, mas tradição é tradição. Tinha dúzias de bons perfumes... Só Channel é Channel. Uma vez ele elogiou o perfume. Meu marido não, ele. Vesti a lingerie negra. Olhei-me no espelho. Estou bem. Não tenho mais idade para inseguranças. Dei dois passos em direção ao closet. Voltei ao espelho. Ai meu Deus. Não ! Sem Deus, sem Deus. Não mete Deus nessa história. Maldita culpa...

Chamei a empregada e pedi-lhe que me servisse um cálice de conhaque. Aquele qualquer coisa Martin... VXPO, SVOP, OPQP, sei lá, porra ! Aquilo ajudou a matar um pouco o sentimento ridículo de colegial. Pronto. Lá vinha a auto-censura novamente. Quando isso vai acabar ? As meias, um conjunto saia e blusa (semi-transparente, azul escuro) quase um tailleur. Os sapatos. Estou pronta. Já ??? Ai !!! Quero voltar, quero sumir. Mais um conhaque.

Avisei que não se preocupasse com o jantar e que iria demorar um pouco com as amigas, era uma comemoração. Nunca dei tantas satisfações à empregada. Faltou deixar um roteiro escrito... “Esqueci” o celular na gaveta do criado mudo. Desligado, óbvio.

Cheguei em frente ao Café e ele acenou-me lá de dentro. Queria esconder-me mas não teve como. Aproveitei que chamava o garçom e dei uma ligeira desarranjada nos cabelos. Casual-chique. Fui em direção a mesa, trocamos beijinhos, ele falou que sentiu saudades. Saudades. Como foi a minha semana na serra? Porra, esqueci o texto. Deu branco... Lívida como um lírio.

Puxou a cadeira. Desabei.

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Gostou ? Perguntou apontando o livro que eu apertava em minhas mãos. Calma mulher, calma. Respira fundo. Pede um vinho para nós ? Mas como estamos... e então, o que achou ? Do quê ? Do livro do João Ubaldo. Uma loucura... o que é aquilo ? Um pouco de confissão, um pouco de ficção. Mexeu muito com a minha cabeça... Mexeu muito é maneira de falar... Revirou minha cabeça. Que bom para você. Para mim ?... e para você ? (um a zero para mim)

Estou feliz porque você gostou. Gostou, né ? Aquiesci. Só pensei sobre isso nesses dias. Sobre isso, sobre nós, meu casamento, você. Pensou em mim ? Muito, o tempo todo. Seu tom de voz me acalmava. Seu olhar me excitava. Comecei a falar de tudo aquilo que senti. Sem rodeios. Falei de tudo o que aconteceu. De como estava me sentindo, de como preparei-me para o nosso encontro. Do sonho que tive, do biquíni pequenino, de tudo. Falei sem parar, ele deixava. Deixava que me desconstruísse em sua frente, devassava-me sem nada perguntar. Minha alma, aberta. E seu marido ? O que tem meu marido ? O que acha disso tudo ? Você está louco ? ... nem conversei sobre isso com ele. Ele está em Brasília e vai ficar lá até a semana que vem. Pronto. Fiz besteira. Ele me causa isso de falar demais. Ele e o vinho que já ia pela metade.

E como está a relação de vocês ? Bem. Vai bem, nos amamos muito, sempre fomos bem na cama, assim né ? ... Mais de vinte e cinco anos ... Então não vai tão bem assim... Vai, vai sim é que ... O quê?... O que falta ? Você me desarma mesmo. Não é o que falta. Nesses dias descobri que o problema é o que sobra em mim. Uma vontade de mais, mais entende ?... Nada contra ou com ele. Realmente amo muito meu marido mas tenho meus desejos (utilizei a palavra desejos ao invés de fantasias, estava evoluindo rapidamente...) e tudo é muito difícil de admitir para uma mulher. E ele, tem desejos ? Tem, ele tem os dele. Complicados ? Eram. Hoje já não acho tão complicados. Ele gosta de imaginar que o estou traindo. E é bom para vocês ? Ele enlouquece. Isto é bom pra mim, ele fica, digamos assim, mais caprichoso, mais inventivo. E esse desejo, te faz bem ? Você sonha com isso ? Isso o quê ? Trair. Tenho medo, seria difícil para ele compreender. E falei de toda a minha criação e da minha auto-repressão e todas essas coisas.

Disse-me que tudo isso era besteira. Em vez de ficar puta da vida, entendi plenamente o que ele quis dizer, o que ele disse. Era besteira sim. Mas onde a coragem ? Pois se não conseguia nem falar sobre isso. É bem verdade que estava falando com ele agora. Chamava-o de bruxo por conseguir me expor tanto assim. Tanto não. Nem tanto, nem pouco: completamente. Ele me elogiou, falou que adorava o que via, uma mulher em transformação. Tomou a vanguarda. Falou de seus desejos por mim. De meus olhos, essa minha carência nesse momento de transformação. Sempre me encantou, desde o primeiro dia. Me seduzia e eu entregava-me aos poucos. Um jogo delirantemente belo. Ele me queria e eu temia por meu marido. Balela. Temia por minhas dores. As que achava que deveria carregar eternamente.

Eu não conhecia até então a chama sensual de seus olhos. Conhecia sim o maravilhoso olhar de sempre, mas aquele era totalmente desconhecido para mim. Me deixou louca. Eu já estava totalmente submetida a ele. Não dava bandeira, ou pensava não dar. Uma naja era aquele maravilhoso bruxo. Eu, presa dele, dependente já. Estava assustada. Molhada. Encantada. Entregue. Na lona, de quatro, como se diz. Completamente presa àquele turbilhão, sem a mínima chance de reversão no andar das coisas. Era uma questão de tempo. O bote já estava dado. Já não havia como fugir. Nem eu queria.

Ele me desejava. Acabou também com minhas inseguranças. Agora me reconstruía a cada segundo. Quem era aquele homem ? Bruxo, bruxo, bruxo ! Bruxo gostoso. Bruxo tesudo. Desmontou, consertou, remontou. Acabou com a paz da minha alma. Ou revitalizou-a com a sua paz ? Falou-me o que não esperava ouvir. Falou-me o que mais desejava ouvir. Preciso ir. Está fugindo de novo. É preciso. Nos vemos amanhã ? Não sei.

Estava pronta para sair. Seria hoje. Minha filha ligou. Estava grávida, a danada. Peguei o carro e saí desabalada para sua casa. Comemoramos até tarde. Brindes, alegria. Cheguei em casa e dormi. Manhã seguinte olhava o espelho e via uma avó... Programei um dia de spa dedicado a mim. Estaria liberada às duas. Tempo de sobra para encontrar meu amigo. Seria a avó melhor resolvida sexualmente no mundo ! Estava feliz, muito feliz. Por ela, por seu marido, por meu marido, por mim, por ele.

Coloquei o perfume para ele. Estava completamente pronta. Livre, leve, solta, como dizia a música das Frenéticas que escutava no carro. Estacionei perto do Café. Antes de quatro horas estava na porta. Não o vi na mesa de sempre. Outra música: Meu Mundo Caiu. Num instante tudo voltou como fantasmas ao redor de minha cabeça. As culpas de sempre. Ainda mais agora. Avó devassa ! O que minha neta (ou neto) pensaria no futuro dessa avó ?

Sabia que ele chegaria em breve. Não pensei. Não fiz o que deveria. Apaguei-me. Rodei em meus calcanhares e voltei ao carro. Longe, ainda o vi entrar no Café. De dentro do carro, vi quando saiu, uma hora depois. Acabou, pensei. Perdi a última oportunidade. Serei infeliz por não ousar. Infeliz para sempre.


Enquanto dirigia de volta para casa, eu chorava. Pelo que não fiz. Por me negar a mim mesma. Por ser uma retardada, burra, idiota. Estúpida, ignorante, babaca ! Quase atropelei o garagista na entrada do prédio. ah... vai pra puta que o pariu... parece um dois de paus... Subi e enfiei-me em meu quarto. Não. Não seria assim. Não ficaria nisso. Mudei. Cheguei até aqui. Eu quero, eu preciso.

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Sem mais. Fui. Cheguei. Trocamos os beijinhos de sempre. Minto, melhores que os de sempre. Só um café. Só um, frisei. Seus olhos se iluminaram e isso fez imenso bem ao meu ego. Sem palavras. Saímos dali. Entreguei-me como fosse a primeira vez. E era ! Certo. Fiz algumas merdas, lembrei do marido, comentei, coisas assim de quem não tem o que falar. Nem queria falar. Era nervosismo. Ele me deu a calma. Dominava, conduzia. Fazia-me conduzir. Todas as mulheres em mim afloraram agradecidas. Sem culpa. Amava meu marido. No final de tudo daquele dia continuava amando e desejando da mesma forma o meu marido. Nada mudou. A não ser, finalmente, a minha implosão.

À puta que pariu com meus conceitos, ao inferno com minhas certezas. Agora eu só queria a incerteza. A sutil incerteza. O prazer. Dos corpos, dos vinhos, das paisagens, da comida, da vida ! Certamente que Deus entenderia. Não rompi meus votos com Ele nem com ninguém. Reforcei-os. Talvez ninguém entenda, mas afinal de contas não tenho que explicar isso. Quem penou minhas dores ? Quem as curaria ?

Ele foi maravilhoso. Um sonho delirante. Um homem sólido. E eu não tinha outros compromissos a não ser comigo mesma.

Assim foram todas as vezes que estivemos juntos. Cada vez uma mulher diferente libertava-se em mim por obra dele e sempre essa mulher diferente encontrava nele a contrapartida necessária para suas loucuras. Na vez em que ele me vendou e tocou suavemente todo o meu corpo com aquela enorme escova de cabeleireiro. Na vez em que o amarrei e o fiz provar de seu veneno. Literalmente, em cremosos beijos loucos. Satisfazia meus desejos todos. Trazia apetrechos diversos. E cremes, e lubrificantes, e vídeos e sons. Perdi o medo de tudo. Perdi o medo de mim.

Percebi finalmente que os limites não estavam na carne, mas na consciência do que a rege. Lembrei do Pepeu, lembrei de Jesus: o mal nunca entra pela boca do homem.

Livrei-me de tudo o que não me trazia bem-estar. Eu estava melhor. Masturbava-me sem culpa. E pensava ora nele, ora em meu marido, ora em outros homens. Mudei. Muito. Abdiquei dos penteados esmerados. Pintava as unhas de vermelho. Usava decotes. Ia ao clube, tomava caipirinha, falava os palavrões que nunca me permiti. Tudo sem perder a mulher que sempre fui. Só perdi o medo, a vergonha. Era finalmente uma sem-vergonha. No sentido que sempre sonhei ser. Meu marido notou tudo aquilo, claro. Mas se por um lado não falava nada, fazia uma cara dândi de

sei-o-que-está-acontecendo-não-dou-o-bra
ço-a-torcer
-mas-gosto".


Tudo era melhor. Minha vida, meu relacionamento, meus filhos, o fato de ser avó. Eu mesmo era melhor. Uma mulher melhor, como jamais fui.

Nada mais me surpreenderia nisso tudo. Será ?

-8-

Um dia falei para ele sobre como ia o relacionamento com meu marido. Quase uma queixa. Essas besteiras de comparação que acabam por levar as melhores pessoas – e eu me incluo nesse conceito - ao erro. Não era nada disso e eu não percebia sob essa ótica. Apenas falei que ele estava repetitivo com essa fantasia de traição e que me queria todos os dias. Não sei se por indução, mas eu percebia que ele me desejou mais nos dias em que estivemos juntos.

Ele disse que já sabia disso. Como sabia ?... Nunca te falei. Sei sabendo, falou como um guri. A fantasia dele. É claro que é mais do que fantasia. Ele sabe, não é bobo. Apenas tira proveito de toda essa situação. Então ele é um canalha !? (ah os textos de novela ...) Não. Canalha não. É uma hipocrisia pensar que só você tem o direito de realizar o seu desejo. Veja, repare bem. Ele está no ponto. É só colher. E eu quero isso.

Louco. Ele tinha enlouquecido de vez. Eu não iria arriscar minha vida por um desejo. E o que você fez até agora ? Apostou e ganhou na sua luta interna contra a mediocridade. Você pôde, ele não pode ? Ele quer, sim, dividir você com outro. Ele quer ver, participar também de toda a brincadeira, estar mais que presente. Ele sabe. Não que ou quem, mas sabe, e deseja isso. Louco. De pedra. Você está falando... É ! Nós três. Nos amando, nos possuindo, nos dando, nos comendo. Nunca. Me apresenta como um amigo num jantar e deixa comigo. Não, apenas eu não te basto ? (que forma infantil de revidar, olha as novelas aí de novo...). Ele queria, e hoje eu sei disso, terminar o processo que começou. Me fazer total. Una, verdadeira e indivisível em meus anseios íntimos.

Eu quero. Eu, você, ele. Mesma cama, mesmo amor. Sem possibilidades, você acha que somos personagens do Nélson Rodrigues ? E não somos todos !? E não temos todos os mais recônditos desejos ? Os mais impublicáveis ? Eu sei que ele quer. Eu vou ter. Ele vai ter. Você vai ter. Imagine... Duvida ? Não. Eu não duvido de mais nada.

Isso será um caminho sem volta, querido. Isto já é um caminho sem volta. E se eu o perder ? Você terá ganho mais do que perdido. Ele não mereceria você. Você já ganhou. Você evoluiu. É a vez dele.

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Tudo seguiu como ele havia previsto. Fui cheia de dedos conversar com meu marido, falando sobre um amigo antigo do colégio que encontrei por acaso no banco e que tomamos um café e que contei para ele da minha vida e que ele contou da dele, e que, e que ... Meu marido abriu um amplo sorriso e o caminho também. Chama para jantar um dia conosco. Será um prazer recebê-lo em nossa casa. Ele sabia. Eles sabiam. Me senti uma tola com meus medos rondando novamente. Mas será que era realmente isso ? Veríamos.

Ele chegou. Eu tremia dos pés a cabeça. Meu marido, acho que percebendo minha ansiedade, serviu-me o tal qualquer coisa Martin, cheio de letras maiúsculas... Foi muito bem recebido. Sentamos na nossa aconchegante sala de estar. Meu marido em sua almofada de sempre, no chão. Eu e ele em poltronas diferentes. Era um sonho. Um pesadelo. Uma transgressão da realidade.

Deram-se maravilhosamente bem. As músicas, a literatura, tudo perfeito. Eram iguais. Eureka: apaixonei-me pelo que já tinha. Comecei a vislumbrar quem era meu amigo. Meu marido, igual a ele, só não havia tido a coragem que ele teve, mas, também, não foi despertado como eu fui. Estava realmente maduro para a colheita. Tinha razão. Ele sempre teve razão esse tempo todo. Meu Deus. O Porto, os mesmos charutos, tudo. Sobretudo a mesma mulher !

Nervosa. Eu estava nervosa. Não duvidava de nada, como falei a ele, mas queria ver como é que iria desenvolver a situação. Eu seria cúmplice ? Sim, eu já era a cúmplice nesse tempo todo. Uma experiência. Maravilhosa, porém experiência. Natural, porém experiência. Não tinha raiva dele, não, de jeito nenhum, não me senti usada. Usei como fui usada.

Não eram apenas eles os iguais. Eu também era igual a eles. Nem culpa, nem agentes dela, nem quem sofresse a ação. Era um teatro maravilhoso, o palco da minha sala de estar. E mais seria. Saí da sala para espiar como fluiria...

Falavam de mim. Do orgulho dele em ser meu marido. Meu amigo falando da minha beleza, inteligência. Os ciúmes do meu marido. Grandes confidentes. A confidência era eu. Senti-me a melhor das mulheres do mundo. Desejada por dois machos, sem disputas, apenas convergências. Meu marido não sabia. Sabia... Uma deusa ! Enfim !

A hora. Caramba, a hora. Muito tarde, muito álcool. Meu marido tomou a frente e o convidou para dormir em nossa casa. Tínhamos o quarto de hóspedes. O que eu achava ? Não insista se ele não quiser. Ele disse não querer incomodar. Meu marido insistiu. Muito bem. Jogo feito ! No caminho para o quarto, alisou meus seios, mostrou-me sua excitação. Te espero. Não ! Se não vier, tiro você da cama do seu marido. Louco, ensandecidamente louco ! Mais louca é você que me quer. E ele que nos quer... não te falei ? Estava certo. Sim, estava.

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Eu fui. Esperei meu marido dormir, ou fingir adormecer e fui. Nos demos como nunca, como cães de rua, melhor que sempre, melhor que nunca. Uma, duas vezes, a porta aberta. De propósito. Malucos. Ele me sodomizava quando meu marido parou à porta. Eu, puta insana, me dava ao desfrute. Ao meu, ao dele e ao dele, que só olhava. Ele foi até ele. Convidou. Instigou. Me serviu. Trouxe-o pela mão. Grandes amigos, grandes amantes. Nós três. Juntos, finalmente.

Um insuportavelmente delicioso cheiro de amor. Tinha agora meu homem, meus homens. Em mim. Não queria perguntar nada, falar nada. Queria sentir. Desfrutar aquele momento. De todas as formas nos amamos. Eles em mim e eu adorada.

Fui massageada, amada, comida, currada. Então, o inesperado. Meu amigo sempre surpreendendo. Era o que faltava. Aquilo que tanto me deu prazer agora seria meu. Em plástico, que nunca o tive, porém meu. Sentiria enfim o que eles sentiam e eles o que eu sentia. Pus a cinta. Óleos. Ora um, ora outro. Meu marido gozava sem toque. Acabaram-se as teias de aranha. A poeira enfim, banida de nós. Meu amigo, agora sentado na poltrona, entregava-se a si mesmo fruindo-nos desde a cena. Eu e meu marido na cama. Gritávamos e ríamos. Chorávamos e gozávamos.

Não demos conta de perceber o momento de sua saída. Meu marido me amava e eu amava meu marido. Estávamos completos. Meu amigo se foi. Que viva para sempre a nossa sujeira ! O nosso amor. Sujo e delicioso amor.

Agora, ao amanhecer em nossa varanda, vejo meu amigo caminhando em direção a um táxi. Sei que não mais nos veremos. Obrigado, meu irmão, meu amor. Sem acenos.

Agora estávamos a sós. Eu e ele na varanda do nosso quarto, sorvendo com serenidade o chá que preparei. Cada um em sua cadeira de palhinha. Em silêncio. E aquele cheiro morno e úmido de hortelã. Deus. O que fizemos ?! Sem falar, apenas desfrutávamos a linda vista da Floresta da Tijuca e ouvíamos seus sons. Sabíamos o que conquistamos, porém não tínhamos a exata noção do que havíamos feito, do ponto ao qual chegamos. Mas era bom.

Ele levantou-se suavemente, debruçou-se no gradil e olhou profundamente a natureza da paisagem (como jamais supunha pudesse fazer). Ainda calado, voltou seu corpo nu em minha direção, deu um passo no chão frio de granito e ajoelhou-se naquela pequena alcatifa iraniana, junto aos meus pés. Abraçou minhas pernas, beijou o joelho que escapava do peignoir. Olhou nos meus olhos como se mirasse o horizonte no mar. Falou. Respirou fundo e falou: Obrigado amor, muito obrigado. Foi uma lua-de-mel diferente, única. Serão assim todos os dias daqui pra frente. Sempre.

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(?)