Sign by Dealighted - Coupons and Deals

10 junho 2010

A MORTE E A MORTE DE VANNEVAR E THEODORE

NO REINO CÓSMICO, HIPERTEXTUAL E ONÍRICO

DE LEVY, BORGES E CARTOLA


(Um conto-exaltação acadêmico)


-1-

Então caímos prostrados frente àquilo e choramos. Choramos copiosamente, Adso e eu. Era a resposta, e a resposta, constatamos, nunca esteve longe de nós, senão dentro. Era tudo. O que sempre foi, é e será. O tempo todo. Comandado pelos nossos próprios processos mentais automáticos. Choramos como se fôssemos secar o mundo. Éramos, enfim, o Todo e parte Dele enquanto

mirávamos aquele ponto onde Ele Se escondia, entre os degraus de nossa infinita escada. Amplificação dos conhecimentos do mundo.


Adso havia embarcado comigo naquela aventura. Seu motivo era como o meu, mas algo existia a mais que nos imantava àquela procura. Disso, também em dupla, tínhamos certeza, e cada um de nós sabia ser essa a impressão do outro, sem que para isto precisássemos tocar no assunto. Apenas íamos, tocados pelo nosso intento e pela tremenda atração que a algum lugar nos levaria. Tínhamos certeza.


-2-


Sei que adormeci na sala de tv enquanto assistia a uma reprise de uma partida qualquer de futebol. Dormir no sofá... Esporte de sábado a noite.


Ouvi minha filha gritar. Um uivo dorido e materializado que cortava os espaços da casa como faca. Acorri em sua direção. Vinha do pequeno escritório-biblioteca que mantínhamos em casa, no antigo quarto de empregada, repouso de nossos livros, nossos estudos e, da máquina. Máquina moderna. A melhor possível para uso doméstico. Vários gigas, megas, teras, hertzs, putzs... Comprado num sacrifício de 36 prestações no melhor hipermercado da cidade.


Ela estava na internet e eu sabia. Minha pequena Priscila, 11 anos, já era quase uma cracker como ela dizia ser (vá saber-se o que significa isto... a mim lembrava insossos biscoitos quadrados... mas essas crianças de hoje...).

O pequeno e delicado mouse cor de rosa, com olhinhos pintados em seus botões e saída do fio reencapado de preto para dar a impressão de um rabo de ratinho de verdade balançava no nada, pendente de seu pad (estes anglicismos ainda me matam). Procurei na casa inteira, apavorado, pela minha pequenina. Nada. Portas e janelas permaneciam trancadas. Minha esposa dormia profundamente. Acontecera ?


Na tela do PC, piscava a última mensagem recebida por Pri. Era da Eduarda, filha do Adso do 201, as duas eram, além de vizinhas, colegas de classe:


    • Tbm descobri, Pri, vc naum tá sozinha na fita. Tamu juntas miga !!


Que merda de coisa esta merda quer dizer ?


Tudo bem, calma, pensei. Vamos lá, devagar, deve ser: “Também descobri, Pri. Você não está sozinha nesta história. Estamos juntas, amiga !


Em tanta coisa poderiam estar juntas... Mas pelo computador ? Sim, claro ! Priscila me falou que estava desenvolvendo um blog com a Eduarda:


    • Blog, véi. Uma espécie de diário internético. Blog. Web Log.

    • Ah , tá. Isso não é perigoso, filha ? Não vai te expor muito para os outros “na rede”(eu também já tinha minhas gírias) ?

    • Não, pai. Não é para o mundo todo ver. Só eu e a Du seremos quem vai saber o endereço. Tipo assim: só a gente sabe, mas se quisermos que alguém mais saiba, a gente conta o endereço.

    • Daqui de casa ? (burro, interanta !)

    • Do blog pai, ô, se liga prego !

    • Então tá, filha, confio em vocês.

Desespero. Estava na mesma. Eu sabia que aquele blog não iria dar certo. Era ele, só podia ser o danado do blog. A internet chupou minha filha para suas entranhas, só podia ser. Maldita hora em que comprei o computador.


-3-


A campainha tocou. Adso. Sabia, abri a porta sabendo. Cara de desespero, como a minha.

    • Sumiu, bicho, sumiu. Estava no computador (agora é assim, todos estão no computador, nunca se sabe se dentro, atuando ou fora, voyerizando) ... De repente, nada. Sumiu. Virou nada.

    • Inferno. A Pri também. Estavam conversando no messenger. Eu vi o recado da sua filha na tela. Tem alguma idéia ?

    • Vizinhas de porta, mesmo andar, pra que conversar pelo computador ? Sei que elas estavam construindo um blog juntas. A Eduarda me falou que estava tentando achar uma forma de colar algumas dolls de um site que elas gostam, para por no blog delas.

    • Construindo ? Então era algo tangível ?

    • Não, maneira de falar, estavam criando, bolando...

    • Mas aí já temos uma pista, mas como procurar ? Vamos no escritório aqui de casa, talvez achemos algo. Você entende de computador ?

    • Um pouco (um pouco era muito mais que eu imaginava. Ele era analista de sistemas, falou aquilo para não me humilhar).


Nova mensagem no messenger, e agora muito mais estranha já que não havia mais Pri, nem Du:


A DOENÇA ESTÁ CONVOSCO. EXPLORE A JANELA. OS PORTÕES DE GUILHERME. VÁ AOS PORTÕES DE GUILHERME ESTUDAR E LER.

:-P


    • Adso, e agora ? Isto não diz nada para mim. Manda-nos estudar e ler. Será que vamos ter que ir na escola ? Que doença é esta ? Explorar qual janela ? Estão fechadas, todas as da casa. Não foi por lá que minha filha saiu. E quem é este Guilherme ? Estudar e ler... boa... só faltou me mandar para uma biblioteca... Nada bate, entende ? Nada bate ! E este símbolo: dois pontos, hífen, pê.

    • Calma. Tem algo a ver com internet. Achamos que ela as sugou, certo ?

    • Hã hã...

    • Este símbolo eu conheço. As crianças utilizam como uma careta, veja bem: dois olhos, nariz e língua de fora. Doença, vírus. Explore a janela, óbvio: windows explorer, portões de Guilherme, portões de Guilherme... Nada.

    • Se é tudo em inglês como parece, portões de Guilherme pode ser The Gates of William. (Há ! Ponto pra mim. O internético era ele, mas eu sou professor de inglês e francês, com muita honra e baixo salário).

    • Bingo !

    • O quê ?

    • The Gates of William. William. Bill. Gate. Bill`s gate. Bill Gates !


Fomos procurar pistas no windows explorer. Adso achou o tal vírus instaladinho, instaladinho na máquina.


    • Vou ter que abrir o vírus, você se importa ?

    • Por quê ?

    • Porque, de repente vai perder tudo o que tem aí, vamos ter que formatar depois.

    • Deixa de internetiquês e abre esta merda desse filho da puta desse corno desse vírus.


Dois cliques. Tudo azul escuro. Não na tela. Em torno de nós dois. Um monte de bonequinhas (as tais dolls) aparecem voando. Milhares delas, Lisergia total. Eu toco em uma com meu indicador. Uma vez. Duas vezes. Duplo clique... fudeeeeeuuuuuuuu...


Descemos numa espécie de toboágua a seco. Uma velocidade que se podia medir em cores e alterações delas. Via Adso, não via Adso, via Adso, não via Adso. Caímos no nada. Pesadelo. Portões dourados nos surgem à frente. Em cima, o deboche: Bill`s Gate. Mas não havia como entrar. Sim, era um portão, mas não tinha maçaneta, artifício elétrico, nada. Apenas cordas.

Cordas cheias de nós que pendiam desde o infinito. De cada nó, outras cordas partiam com mais nós ainda. E desses, outros nós, e cordas e nós e cordas... Seguimos uma corda, sem ligar para as outras que partiam dela. Chegamos a uma biblioteca imensa de infinitos corredores, tantos quantos os nós e cordas. Não era medieval a biblioteca. Era moderna, arejada. Organizada por assuntos, coisas de biblioteca. A corda estava amarrada a um livro e eu pensei: para que tanto caminho até a bibioteca se era só puxar a corda até o livro vir até nós ?


-4-


Começamos a pesquisa. Livro por livro, folha por folha, palavra por palavra. Aquilo deveria conter algum código, uma chave que nos levasse a algum lugar. Desce livro, volta livro, uma frase, um caminho, outro livro, e tome corda e nó e mais corda.

Estávamos velhos, eu via no espelho que Adso era. Via nele, a mim mesmo. Encanecido, arqueado. Talvez muitos anos passamos ali, nos corredores, estantes e mesas. Se tivéssemos nossos fígados bicados eternamente, o sofrimento seria menor, e, pior, nenhum recado trazido por Hermes. Hermes. E não é que o velho diabo nos apareceu ?

    • Hermes ?

    • Não, idiota. Bush.

    • George ?

    • Vannevar.

    • Desconheço.

    • Pior para vocês.


E apontou-nos uma sala escura. Fomos. Obedientes ou desesperados. Fomos.


-5-


Assim como as dolls do passado, brilhavam coloridamente no escuro várias repetições de uma frase: browse it ! browse it ! browse it ! Todas em negrito e sublinhadas. Adso:

    • Hiperlink ! Hiperlink !

Gritava louco. Parecia o homem da grua de Cabral a gritar: Terra a vista ! Sem nenhuma dúvida, Adso meteu o dedão de tirar meleca duas vezes num dos browse it ! (professor de inglês será sempre professor de inglês : dê uma olhada ! explore !) Nada aconteceu, além da sala iluminar-se e os browse it ! sumirem todos. Era uma sala comum, nenhum móvel além do grande monolito negro no meio da sala, encimado por uma tv e cercado de potentes caixas de som. Um detalhe: parecia um computador, mas não era. Não tinha teclado.

Uma velha remington, sem rolo e sem alavanquinha de subir a página. Adso, interneticamente mais experiente datilografou no nada: Vannevar.


A ficha era longa na wikipedia. Vannevar Bush, nasceu a tal, fez isto e aquilo e coisa e tal, morreu aos tais de tal de mil novecentos e tal.

    • Como morreu ?

    • Idiota, isto é virtual. O cara tá aí. Pra sempre.

    • Ah ... tá...


Descobrimos que o tal Bush era um gênio do passado que anteviu, ainda que limitadamente, a possibilidade do banco de dados. Chamou sua cria de memex. Enquanto nós pensávamos, a máquina não parava de cuspir informação: depois , um outro deles, Theodore. Esse foi além do Bush. Imaginou a evolução daquilo que era apenas um conceito.

Agora as pessoas falavam e conversavam e consultavam e registravam conhecimento. Uma loucura. A internet antes da internet. O Xanadu conforme Theodore Nelson nominou. Era hipertexto, nada mais era linear, ou, pelo menos, precisava ser. Mas tudo isso nós já sabíamos, era apenas história. De gênios, porém história.

Aquilo que parecia um computador pré-histórico,


    • Memex, seu ignorante ! gritou o Vannevar da porta.


começou a mover-se. Para o lado. Embaixo dele uma escada, descemos. Nos recebeu um simpático anão.



-6-


    • Meu nome é Finis Mentae. Muito prazer. Vocês foram trazidos até aqui para me ajudar. Eu já não aguento mais a função que me deram. Alguém datilografa algo lá em cima e eu saio por corredores para procurar as respostas. Sabem lá o que é isso ? anos e anos trancado neste infinito porão. Pensando, respondendo, estudando, anotando, sou o gerúndio em pessoa, mas cansado de sê-lo. Estudei tanto que evoluí e revolucionei esta porra toda. – chorava muito – mas eles sempre querem mais de mim. Sempre mais. Nunca se cansam. Ainda na virada do século tentei parar tudo. Não deu certo. Os caras lá de cima deram um jeito. Nem greve posso fazer. Tá certo, confesso, criei alguns mecanismos para confundir tudo, prejudicar muitos e atrofiar esta joça toda. Mas eles são poderosos. Criaram mecanismos contra minhas artimanhas.


Adso:


    • Então você é...

    • Sim. Sou. Um analista de sistemas como você, Adso. Criaram-me um engenheiro de tráfego de informações. Eu tinha um metro e noventa, era louro, ganhava bem, muito bem... Tinha mulheres, boas bebidas, carros lindos... E agora... Sou isto o que podem ver. Ajudei a criar tudo e não sou mais nada. Obsoleto.


Adso (cada vez mais técnico e chato):


    • Você criou o bug, os vírus...

    • Sim, e eles me fizeram criar os antivírus, solucionar o bug... Mas agora, já não sirvo mais para eles. Minha matemática não é suficiente para o que desejam. Querem um banco de dados como o cérebro. Eu não sou Deus ! Eu não sou Deus !!!!! Pensei que era, mas não sou.


Sou uma máquina, parte da máquina que ajudei a criar, mas eles querem humanos. Eu não posso mais pensar como humanos. 0001001111000110011


Neste momento fiz um comentário apropriado, espirituoso e inteligentíssimo:


    • Adso ! O que é isto de 0001001111000110011 ? Segura o pouca-sombra... o pintor de rodapé está dando tilt !


O escafandrista de aquário:


    • Passou... Passou. Ajudem-me a completar a máquina. Apenas humanos como vocês podem chegar ao final... ao final... ao final e ao início. O tudo e o todo.

    • Como ?!?!?!?!?! (nós dois, uníssonos)


-7-


    • O Aleph - falou o anão.

    • O quê ?!?!?!? (já estava ficando chato essa história de falar juntinhos)

    • Escutem isto


O anão tirou um LP de dentro do bolso, estalou os dedos e o disco girou no ar, reproduzindo uma história louca. E esta história não era apenas contada. Enquanto as palavras cortavam o ar, nós a vivíamos:


Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera tornassolada, de quase intolerável fulgor. Ao princípio pensei que fosse giratória; logo compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (a lua do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu claramente a via de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos escrutando-se em mim como em um espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi em um pátio da rua Soler os mesmos ladrilhos que há trinta anos vi no saguão de uma casa em Frey Bentos, vi ramos, neve, tabaco, gretas de metal, vapor d'água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer de mama, vi um círculo de terra seca em uma calçada, onde antes houve uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemont Holland, vi a um só tempo cada letra de cada página (quando criança eu costumava maravilhar-me de que as letras de um volume fechado não se misturassem e perdessem no decurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um pôr-do-sol em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi em um gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicavam sem fim, vi cavalos de crina como um remoinho, em uma praia do Mar Cáspio na aurora, vi a delicada ossatura de uma mano, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões postais, vi em uma vitrine de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de umas samambaias no solo de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisontes, marejadas e exércitos, vi todas as formigas que há na terra, vi um astrolábio persa, vi em uma gaveta da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, incríveis, precisas, que Beatriz havia dirigido a Carlos Argentino, vi um adorado monumento na Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo, vi a circulação do meu próprio sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, vi minha cara e minhas vísceras, vi a sua cara, e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem jamais olhou: o inconcebível universo.” (Excerto de O Aleph, Jorge Luiz Borges)


-8-


Então caímos prostrados frente àquilo e choramos. Choramos copiosamente, Adso e eu. Era a resposta, e a resposta, constatamos, nunca esteve longe de nós, senão dentro. Era tudo. O que sempre foi, é e será. O tempo todo. Comandado pelos nossos próprios processos mentais automáticos. Choramos como se fôssemos secar o mundo. Éramos, enfim, o Todo e parte Dele enquanto mirávamos aquele ponto onde Ele Se escondia, entre os degraus de nossa infinita escada. Amplificação dos conhecimentos do mundo.


A totalização deles. O absoluto. Nada havia, nada era real, ou o era de uma forma ainda não nos fora dado conhecer até então. Tudo era um eco. Uma onda hertziana perdida no espaço, um eterno dejá vu. Quando começou ? Onde terminará ? Quem poderá dizer ? Nem o pequeno e absoluto Aleph, instrumento do todo, ele também uma mensagem impressa numa onda a reproduzir-se eternamente a cada receptor que encontra. E Adso ? E eu ?


Quem sou eu ?


Pergunte você às rosas... mas, lembre-se: as rosas não falam.



-9-


E o sumiço das meninas ?


Eu falei desde o início que era um sonho no sofá da sala, num modorrento sábado, lembra ?


E que um doutor em comunicação que conte outra.


-*-


Nenhum comentário: