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23 maio 2009

Quarta de cinzas
(Allan Vidigal)




COMENTARISTA (1): Muito bem, caro telespectador, bem-vindo a mais uma cobertura exclusiiiiiva da maior festa do mundo, o maior show da Terra, o magnífico Carnavaletudo da Cidade Maravilhosa. Tudo pronto para o desfile? Marcos?

Repórter (1): Do lado de cá, tudo pronto! A agremiação está a postos e o carnavalesco-em-chefe pronuncia suas últimas palavras de incentivo. Vamos ouvir um pouquinho:

Carnavalesco-em-chefe da UdAdA: (...) e se nóis perdeu no ano passado, foi de sacanagem, porque eles inflingiro as regra, tá sabendo? Esse ano é nóis que vai gritá: “Perdeu, preibói! Perdeu”! E vai ter sangue, vai ter suor, vai ter lágrima! Mais esse ano eles num ganha, não! Esse ano não vai ter pra ninguém!”

Repórter (1): Ouvimos as palavras do líder máximo da UdAdA. Com você, Carlão!

COM (1): Obrigado, Marcos. Luiz, depois vou pedir pra você comentar esse trecho do discurso. Mas, antes, vamos ver como estão as coisas do outro lado. Vaneska?

Repórter (2): Boa noite, Carlos, boa noite telespectador. Na frente oposta, tudo pronto, ou quase. Parece que tem algum problema com os adereços de uma ala, mas o porta-voz da escola me disse que vai estar tudo em ordem até a saída aqui da concentração. Um detalhe, Carlão: eles estão prometendo uma grande novidade para a bateria!

COM (1): Obrigado, Vaneska! Muito bem. Luiz, você tem alguma coisa para falar da reclamação que acabamos de ouvir sobre quebra do regulamento?

COM (2): Tenho, sim, Quer saber? Isso é frescura. O regulamento não fala nada, mas também não proíbe! Se todo o mundo ficar só no pé da letra da regra, não tem inovação, a festa não progride! Eu acho que o que eles fizeram no ano passado foi corajoso, se você quer saber. E taí! Agora as outras escolas também vão ter que inventar coisa nova pra ganhar. Isso é arte popular, não pode querer botar muita regra que azeda!

COM (1): Mas a coisa toda foi muito discutida... teve até envolvimento da ONU!

COM (2): Frescura! É Carnaval! A ONU não tem nada a ver com isso!

COM (1): Obrigado Luiz! Lembramos ao telespectador que as opiniões dos comentaristas não refletem necessariamente as da emissora. Pois bem. As escolas estão em aquecimento, as equipes técnicas estão dando aquela arrumadinha de última hora... vamos aproveitar para repassar as regras, com nossa convidada especial, a Comandante da Polícia Militar do Estado do Rio, Cel. Rosinha de Copacabana!

COM (3): Obrigada, Carlão. A gente não tem muito tempo, então vamos lá. É muito simples, aquela coisa de sempre: os jurados levam em conta originalidade, beleza, desenvoltura e letra do enredo, mas nada disso importa muito. As escolas começam cada uma em uma ponta da avenida e se encontram no meio. Ganha quem chegar do outro lado com mais integrantes vivos. Vivo sem ferimento vale um ponto; ferido que puder se locomover sozinho vale meio; e de maca vale zero-vinte-e-cinco. Depois da confusão do ano passado, a Liga resolveu adotar as Regras de Convenção de Genebra, então podem tirar o cavalinho da chuva: nesta edição não vai ter gás mostarda, já que usar armas químicas custa meio ponto e, com o desfile competitivo como anda, isso pode fazer a diferença entre a vitória e a derrota.. Mas é uma boa mudança porque vai forçar as agremiações a inovar dentro do que é permitido.

COM (1): Obrigado, Comandante Rosinha! Muito bem, amigos telespectadores! Últimos segundos antes de começar a festa! Este ano, o G.R.E.S.C. CV vem com o seu enredo acid-fusion transgênero: “Von Clausewitz, minha Mulata”. Do outro lado vem a Unidos dos Amigos dos Amigos vem com um enredo eletrizante e muito ligado às raízes da nossa cultura popular, o lírico samba-funk “Pol Pot e Beria Sambando no Micro-ondas”, uma homenagem singela a dois grandes pensadores tão admirados pela nossa gente. E lembramos que, para este ano, a AdA promete uma novidade inesquecível!

(morteiros disparam granadas de fósforo branco que iluminam a passarela, marcando o início do desfile)

COM (1): Luiz, o que você tem a nos dizer sobre as comissões de frente?

COM (2): Olha, Carlos, a da AdA não tem nada de mais, se bem que eles estão prometendo alguma coisa nova logo em seguida, para o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira. Já a do CV é originalíssima: são 14 cães neuróticos executando uma bela coreografia.

Repórter (2): Carlão?

COM (1): Pois não, Vaneska?

Repórter (2): Carlão, a bateria do CV mal entrou na avenida e já se prepara para mostrar a tal surpresa. Não vão nem esperar fazer a cabeça de praia no recuo!

COM (3): Carlão, isso vai ser interessante...

COM (1): Por que, Comandante?

COM (3): É que eles pediram para a gente uma autorização especial... eu não vou falar o que é para não atrapalhar a festa, mas se prepare que vem coisa boa por aí!

(poucos metros depois da saída da concentração do CV, um clarão e um estrondo; segundos depois, toda a ala de Baianas Kamikazes da AdA é vaporizada)

COM (2): Que beleza! Que originalidade! Isso é que é arte popular, minha gente!

COM (1): Comandante?

COM (3): Pois é, Carlos. A surpresa era essa aí que você acabou de ver. Além dos seus já tradicionais surdos de kevlar e tamborins de repetição, este ano a bateria do CV veio com uma companhia de artilharia. São doze obuseiros auto-propulsionados M 108 de 105mm!

COM (1): Então era essa a grande surpresa do CV. Muito bem! Pena que o efeito não foi tão grande quanto poderia ter sido, não pegaram nenhum carro alegórico, só infantaria leve. Mas provavelmente, no ano que vem, eles já vão ter um pouco mais de experiência com balística.

Repórter (3): Carlão?

COM (1): Diga César!

Repórter (3): Carlão, eu estou aqui no meio da passarela, onde as duas escolas devem se encontrar daqui a segundos. A comissão de frente da AdA parecia um pouco recalcitrante, mas os técnicos jogaram gás de pimenta num deles e eles estão avançando de novo. E olha só, Carlão! A comissão da escola oponente parece que sentiu o cheiro de medo deles e pulou em cima! A coreografia desandou e isso vai custar pontos, mas os bichinhos estão mostrando a que vieram! Acabou de passar por mim um mastim que foi best in show no mundial do ano passado, arrastando pelo pé um membro da outra escola. E parece que já acabou, viu, Carlão?

COM (1): É uma pena... o confronto entre as comissões de frente costuma ser equilibrado e durar um pouco mais. Mas vamos em frente que a coisa aqui não para! Os dois primeiros casais já estão a apenas vinte metros um do outro, prestes a dar início ao mais belo momento do desfile, na minha modesta opinião. A porta-bandeira da AdA vem com uma lança simples, enquanto a do CV traz uma alabarda decorada com as cores da escola!

COM (2): Faz tempo que a gente não vê coisa nova nessa área...

COM (3): Ah, mas tem outra surpresa por aí! Vocês vão ver e é já!

(Durante a evolução, o mestre-sala da AdA puxa duas Ingram MAC-11 de dentro de sua túnica e esvazia os pentes sobre o casal da outra agremiação. Assim que pára de atirar, cai vítima de dobermans furiosos, enquanto a porta-bandeira luta bravamente contra um dogo argentino meio manco que termina empalado).

COM (2): Ah, isso sim! Que beleza! Isso é que é cultura popular!

COM (1): Não sei não... isso pode, Comandante?

COM (3): Pode sim, Carlão. Foge à tradição, mas não tem nada na regra que proíba.

COM (1): Eu acho uma pena... sempre apreciei essa tradição do combate apenas com armas brancas entre os primeiros casais...

COM (2): Se dependesse de você a gente ainda tava naquele negócio chato de uma escola por vez e só com dancinha pra cá, dancinha pra lá.

Repórter (3): Carlos, agora os dois primeiros carros alegóricos se aproximam do meio da Pista.

COM (3): Pois é, vamos ver como eles se saem. Por enquanto ninguém pontuou, já que a porta-bandeiras da AdA pisou num mina anti-pessoal que o CV plantou na entrada da concentração. E olha, gente, que vai ser equilibrado.

COM (1): Costuma ser, né? Mas explique para o telespectador, Comandante Rosinha.

COM (3): Os dois vêm com blindagem nível I e lança-chamas. Provavelmente vai dar M.A.D.

COM (2): Mutually Assured Destruction? Coisa mais sem graça...

(ao se aproximarem um do outro, os dois carros abrem fogo ao mesmo tempo, transformando um ao outro em pilhas de metal retorcido e nuvens de fumaça e purpurina)

Repórter (3): Carlão?

COM (1): Diga, César!

Repórter (3): Tem uma movimentação diferente por aqui, viu? Acho que vem aí a tal grande surpresa da AdA.

(de um carro alegórico da AdA ergue-se uma torre de metal em que está pendurada uma enorme tela de projeção. Sobre a tela, surgem números: 1:00 ... 00:59 ... 00:58)

COM (3): Essa eu não sei o que é... não tinha nada nos formulários sobre contagem regressiva...

(continua a contagem regressiva. Abaixo dos números, surge a mensagem: “Segundo lugar, nunca mais! Pelo sangue derramado dos nossos sambistas! Insh’Allah!”)

COM (3): Carlão, Meu contador Geiger tá dando uma leitura estranha... tem algo de errado aqui...

Repórter (3): Carlão, eu não tô entendendo muito bem o que está acontecendo, mas os integrantes da AdA estão amarrando faixas verdes na cabeça...

COM (2): Mas essa não é a cor deles! Vão perder pontos com isso!

COM (1): Cala a boca, Luiz!

COM (3): Meu deus do céu, foi por isso que eles invadiram Aramar!

(00:01 ... 00:00)

(dizem que o cogumelo foi visto até em Parati. Na quarta-feira, o pouco que restava da Região Metropolitana estava coberto de cinzas)

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