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17 maio 2009

Um folhetim, um pouquinho diariamente, Aqui e no orkut, "Bar do Escritor". "Um triângulo no abismo" surgiu à partir de um conto do escritor Kinho Vaz. Alexandre Campinas gostou e pediu para transformar aquele triângulo... num triângulo. Se o primeiro conto do Kinho Vaz foi um vértice, faria os outros dois. Aí está. Primeiro, aos poucos, o outro vértice. Após a publicação integral deste, vamos postar os outros dois, incluindo o original.

Explicações dadas, ao triângulo.

UM TRIÂNGULO NO ABISMO

OUTRO VÉRTICE


(Alexandre Campinas)

-1-

Agora estávamos a sós. Eu e ele na varanda do nosso quarto, sorvendo com serenidade o chá que preparei. Cada um em sua cadeira de palhinha. Em silêncio. E aquele cheiro morno e úmido de hortelã. Deus. O que fizemos ?! Sem falar, apenas desfrutávamos a linda vista da Floresta da Tijuca e ouvíamos seus sons. Sabíamos o que conquistamos, porém não tínhamos a exata noção do que havíamos feito, do ponto ao qual chegamos. Mas era bom.

Ele levantou-se suavemente, debruçou-se no gradil e olhou profundamente a natureza da paisagem (como jamais supunha pudesse fazer). Ainda calado, voltou seu corpo nu em minha direção, deu um passo no chão frio de granito e ajoelhou-se naquela pequena alcatifa iraniana, junto aos meus pés. Abraçou minhas pernas, beijou o joelho que escapava do peignoir. Olhou nos meus olhos como se mirasse o horizonte no mar. Falou. Respirou fundo e falou: Obrigado amor, muito obrigado. Foi uma lua-de-mel diferente, única. Serão assim todos os dias daqui pra frente. Sempre.

Que preciosa sensação me invadiu. Meus olhos umedeceram a face com delicadeza ao mesmo tempo em que umideceu-se meu sexo. Entreabri minhas pernas entregando-me a sua boca. Fechei os olhos. Novamente eu gozava muito. Uma paz. Meu marido, meu homem. Antigo marido, macho recém-nascido para nossa vida. Recém-nascido para uma nova mulher. Integral. Uma fêmea em flor.

Pensar que não nos conhecíamos. Mal passados alguns poucos anos de nossas Bodas de Prata e não nos conhecíamos. Ao menos como deveria ser.

Evoluímos em nossas ocupações. Ele, eminente criminalista; eu, há três meses aposentada da função de gerente de repartição onde entrei aos dezoito anos. Construímos tudo. Do quarto-e-sala alugado no difícil começo de vida até a fazenda, a bela casa em Itaipava, esse apartamento com vista para o “sovaco do Cristo”, como ele dizia, e a garantia de uma consistente poupança nos dias de hoje. Nosso filho, advogado de futuro brilhante na banca do pai. A menina, pediatra com um belo início de carreira. Ambos casados e cuidando de suas próprias vidas.

Tudo perfeito. Identificação e prazer na cama. Fazíamos tudo bem feito. Nosso relacionamento sempre muito bom, pequenas brigas, normal. No mais, um casal perfeito como dito pelos bons amigos. E éramos. Ou acreditávamos nisso.

-2-

Um dia, nas preliminares, ele me falou de traição. Não. Nem minha, nem dele. Era apenas uma fantasia. Eu gelei ali. Ficou puto. Afinal não éramos um casal moderno, entrosado ? Não poderia falar de suas fantasias ? Não, não é isso... é que... e a resposta ficou no ar. Não tinha como nem o quê responder. Ok, ok, sem brigas, vamos dormir.

Aquilo me implodiu. Ele não tocou mais no assunto e mesmo assim aquilo não saía da minha cabeça. Não era vontade de trair, e não deixava de ser. Meu Deus... sou uma mulher bonita, educada, com uma vida normal, sexualmente satisfeita... faço reposição hormonal, desconheço o climatério, ginástica, massagens, meu Deus... o que está acontecendo ? Não, é errado... e bati suavemente a mão na mesa do Café como se veladamente discutisse com alguém.

Aquele rapaz reparou no meu gesto, que vergonha. Corri de seus olhos baixando os meus para o Baudelaire que já não lia e para o capuccino frio sobre a mesinha. Reparei minhas mãos. Unhas bem feitas. A aliança entre os anéis. Seria inconsciente ? Será que por algum motivo escondia minha condição social entre os anéis ? Ou por outra: por que escondia minha condição social entre os anéis ? O rapaz já não me olhava e sim para o meu livro, minhas mãos, sei lá ... Quando viu que o percebia, desviou sua atenção. E aquele casal em beijos apaixonados na mesa do fundo... Via-me nela e, pela primeira vez na vida, não via meu marido naquele parceiro. Paguei e saí em busca da Cecília. Um antigo livro dela que uma amiga indicara. Só acharia em algum sebo e havia um, justamente umas quadras além do Café.

Andava e ia perscrutando o duelo da minha razão (tosca e mal-formada retórica católica) contra minhas emoções e seus respectivos questionamentos que surgiam como enxurrada tropical, derrubando e levando para longe a razão. Não, não sou assim. A razão não deveria perder-se nesses ardis da minha emoção...

Pôxa, sou uma mulher bem casada. Para que todo esse pensar que me desnorteia ? Claro, tenho meus desejos, fantasias. Mas são apenas isso: fantasias. Criações minhas destinadas a distrair-me nos momentos de tédio. Normal. Fantasias normais. Ou desejos ... ? Qual seria a diferença ? Onde a fronteira ? Estava encurralada. Cu... Ralada... Para, para ! Não pensa mais. Para. Os outros que passam já devem estar reparando. Estou louca. Ou então caminhando a passos rápidos para a loucura... Os outros reparando meus pensamentos ... Que imbecilidade ! E nem foi isso que pensei. Realmente nem foi eu quem pensou. Ou foi ? Ou foi outra mulher em mim ? Ou outra, ou aquela mais ? Quantas mulheres habitam em mim mesma ? Merda ! Passei um quarteirão do endereço do sebo que minha amiga me deu. Terei que voltar. Não pensa. Não pensa. Número tal. Número tal. Entrei.


Parada em frente a empoeirada estante de poesia olhava fixamente o livro pretendido. Peguei, abri. Olhava, sabia e não via. Enxurrada. Enxurrada é assim: tem que passar toda. Não adianta por o pé atravessado, que ela contorna e segue seu curso. A cabeça fervilhava. Pensamentos sem-vergonha. Não ficavam bem em mim. Sou uma mulher inteligente, racional, plena. Não ficam bem e pronto. Outro homem, ora essa... Não fica bem. Outros homens, vários homens... humm... vários homens... Preciso chegar logo em casa.

Uma presença ao meu lado trouxe-me de volta a realidade. Era o homem que me fitava naquele Café. Nas mãos um livro de Manoel Bandeira. Pode-se dizer que examinava com carinho extremado aqueles livros. Lembrou-me um fiel diante do altar preferido. Nem feio, nem bonito. Mas um olhar... Como posso explicar seu olhar ? Era muito mais que um olhar daqueles dos quais se diz desnudar a mulher. Não era assim grosseiro, mas penetrava. Desnudava. A alma.

Seria coincidência sua presença ali ? Não sei. Tudo o que sabia naquele momento é que a sua presença me invadia. Um estranho. Deu vontade de transformar aqueles poucos segundos em geleiras eternas, a sensação era boa e ruim ao mesmo tempo. Devolvi Cecília à estante fingindo não ser aquele o livro procurado. Outra coincidência. Ele também devolvia Bandeira. Nossas mãos tocaram-se levemente e, como sutil corrente elétrica, meus pelos todos se eriçaram. Tive medo. Um estranho. Tratava os livros com adoração, porém um estranho.

Pediu-me desculpas; falei um não foi nada qualquer, tentando a custo manter-me nos saltos. Puxou conversa. Educado, boa impressão. Falou algo da admiração mútua entre aqueles poetas contemporâneos e de uns versos que Bandeira escreveu para ela: “Cecília, és tão forte e tão frágil como a onda ao termo da luta. Mas a onda é água que afoga: tu não, és enxuta.” Caramba ! Era assim que estava me sentindo em sua presença. Uma onda ao termo da luta porém, nem tão enxuta mais. Bem que tentava... O cara me encantava. Falou de Simone de Beauvoir, Sartre, existencialismo. Culto. Convidou-me a um café. Resisti polidamente. O quanto pude. Uns cinco segundos... Como aquela tarde voou.

Três vezes nos encontramos, sempre no mesmo café. Eu, cheia de mim, poço de convicções, ia-me deixando encantar. De café em café ele ia lendo meus parágrafos, questionando minhas próprias interrogações. Confundia. Minha mente. Confusa. Falava de um universo louco, de seres que davam-se aos prazeres sem culpas. E eu penando as minhas. Minha velha luta aflorava na abertura de um mundo novo apresentado por ele. Sentia minha ridícula retórica sendo absorvida osmoticamente por uma filosofia um milhão de vezes melhor alicerçada.

-3-

Outros cafés viriam. E como viriam... Naquela segunda-feira subi sozinha para Itaipava. Meu marido estaria toda a semana em Brasília acompanhando um caso no Supremo. Lobeando, como costumava dizer. Resolvi que também passaria a semana toda na serra. Meu amigo emprestou-me um livro do João Ubaldo. Leitura, frio, vinhos e... maus pensamentos. Maus pensamentos... Novos pensamentos, uma razão menos cartesiana surgia em mim. A Casa dos Budas Ditosos. Puta que pariu !! Uma revolução. Eu, entre a cruz (que me impuseram) e a caldeirinha (que desejava). Grande sacana, aquele homem ! Estava apaixonada. Não amor, companheirismo e todos esses rótulos comuns. Era uma coisa pulsante, e eu sabia bem onde pulsava. Já na terça-feira terminei o livro. Foi devorado com avidez. Havia marcado um café com meu amigo na sexta. Teria, portanto, tempo para digerir tudo. Ou tentar.

Ainda racional, tentava achar o motivo das coisas. O motivo das minhas coisas. Não era possível que tudo acontecesse como um turbilhão sem pé nem cabeça. Tinha que ter um começo, um meio, um fim. Faltava-me método. Era assim que funcionava a minha resistência, levando ainda, agregado, um supurado apêndice implorando bisturi: a tal formação. Impregnada de quês e porquês, doente, cheia das culpas comuns que carregamos. Pronto. Já estava falando como ele.

Naquela mesma noite, mergulhada nos vapores da taça de vinho, várias taças então, vislumbrei no crepitar da lenha na lareira a solução. Ainda pensava assim: tudo tem que ter solução. Deliciosamente alcoolizada, entregava os pontos para aquela lógica. Pudera. Naquele estado não resistiria a nada e ainda por cima solucionaria a crise do Oriente Médio... A lenha queimava como passa a vida. Existe um motivo lógico, uma finalidade. Estala, mas queima. Predispõe-se ao fogo. Aí é que está ! Eu estalei muito, mas queimei desejando o fogo ! (Ô ébria...)

É isso que está acontecendo comigo. Nada é ou foi ruim. Apenas quero mais ! Fogo, álcool, luxúria, Budas Ditosos, meu amigo, culpa. Muita culpa. Gozei. Não ! Está errado. Estou errada. Sou uma mulher honesta. E deixaria de ser caso esmorecesse a resistência ... ? Estaria roubando, matando, trapaceando, traindo ? Traindo ? Só se fosse a mim mesma, aos meus desejos, negando-os, negando o prazer que meu corpo desejava. Estava perdida entre as várias mulheres que eram eu. Adormeci. Sonhei com uma enorme orgia. Eu, mulher, e vários homens sem rosto. Todos ardendo dentro da lareira. Maldita culpa católica !

Acordei bem disposta. O vinho não provocara a ressaca temida. Tomei um banho bem quente e demorado. Evitei pensar. Era tão cedo que escutava os bem-te-vis cantando. Era essa a hora que minha mãe me levantava para a missa. Para, mulher. Sem influências. Nem pró, nem contra. Você não é desenho que admita diabinho e anjinho soprando aos ouvidos. Hoje vou ter tempo para pensar. Organizar, entender, estruturar. Ou desestruturar...

-4-

Saí andando pelas pedras irregulares no meio do gramado da casa até um pequeno bosque que havia após a sauna. Ainda fazia frio mas o céu azulíssimo prenunciava uma quente manhã na serra. Com direito a piscina e ao sol ardente de Itaipava. Naquele momento queria apenas esticar as pernas antes do café da manhã. Estava bem, mas pensando sempre, o tempo todo. De onde vinha aquela insatisfação ? Não era com meu marido, não era comigo, não era com a vida, não era com nada, mas existia. Lembrei da noite anterior, do sonho, e do que havia descoberto: eu quero mais. O cheiro de mesa posta alcançou-me. O estômago venceu.

Após o desjejum, piscina. Pus o micro-biquini que comprei no shopping. Não havia homens por perto, apenas a caseira. Seu marido trabalhava para várias casas daquele condomínio, portanto não voltaria tão cedo. Soltei a parte de cima e imediatamente pensei em meu amigo. O que ele acharia dos seios daquela jovem senhora ? Que desejos despertariam nele ? Despertariam ? Eu o desejava. Eu queria mais ! Queria ele. Mas não queria...

Aquela insatisfação não poderia continuar sem que eu soubesse de onde vinha exatamente. E se fosse isso mesmo e eu falasse sobre o assunto com meu amigo ? E se ele sentisse a mesma coisa ? E se tivesse tesão por mim ? Aí eu estaria roubada... E se eu fosse apenas um objeto de conquista para ele ? E se eu o preferisse ao meu marido ? Não estava satisfeita sexualmente ? Estava, estava sim, mas ... Eu queria mais. Vagabunda oferecida ! Sai da minha orelha que não sou desenho, já falei. Vai fundo, de cabeça ! Nem de você, sai daí.

Depois do jantar, sentei na cadeira de balanço e li a Cecília. De cabo a rabo. Será que ele estaria lendo o Bandeira ? Se estivesse, certamente pensaria em mim como a onda ao seu termo. Só não sabia se ele me imaginava a espuma que afoga ou, por outra, vislumbrava o ser enxuto de tudo que se fortalecia em mim.

No outro dia entreguei-me à pequena horta como um viciado em recuperação. Vou pagar pra ver. Vou pagar pra ver. Vou pagar pra ver. Como está não vai ficar, isso só vai prejudicar a mim, ao meu casamento. Não pode ficar.

Já havia cumprido tudo o que programei. Não sei se estava certa do que faria, ou mesmo se faria, mas já não poderia ficar na serra com o café marcado para o dia seguinte. Tinha que me preparar, cuidar. As unhas, uma escova. Comprar uma roupa nova, uma lingerie... Passar o tempo da melhor forma possível até as quatro horas de sexta.

Peguei a estrada e, no Rio, direto para o shopping. Nada melhor para passar o tempo. Ali encontraria todo o necessário para o encontro do dia seguinte. De vez em quando permitia-me essas dondoquices. Sobretudo nessa vez.

-5-

Como uma colegial, preparei-me para o encontro das quatro. Eram onze da manhã e eu já conferia a roupa, os sapatos, o livro que devolveria. Ensaiava o que falar, como abordar os assuntos que precisava falar com ele. E "precisava” era pouco. Nem almocei. Um pouco mais tarde, meu marido telefonou avisando que precisaria continuar em Brasília por mais uma semana, as coisas tinham-se complicado. Merda, merda, merda. Não que eu não tivesse gostado da notícia. Gostei, e muito. Mas a ligação, sua voz, o beijo estalado que ele mandou... Tudo aquilo fez com que eu me sentisse mal, muito mal. Naquele momento todas as culpas voltaram. Afoguei-as no banho. Duas horas na hidromassagem. Sais e espumas. Incenso e mantras. Uma perfeita colegial.

Enxuguei-me e gotas do meu Channel no. 5. Pode parecer lugar comum, mas tradição é tradição. Tinha dúzias de bons perfumes... Só Channel é Channel. Uma vez ele elogiou o perfume. Meu marido não, ele. Vesti a lingerie negra. Olhei-me no espelho. Estou bem. Não tenho mais idade para inseguranças. Dei dois passos em direção ao closet. Voltei ao espelho. Ai meu Deus. Não ! Sem Deus, sem Deus. Não mete Deus nessa história. Maldita culpa...

Chamei a empregada e pedi-lhe que me servisse um cálice de conhaque. Aquele qualquer coisa Martin... VXPO, SVOP, OPQP, sei lá, porra ! Aquilo ajudou a matar um pouco o sentimento ridículo de colegial. Pronto. Lá vinha a auto-censura novamente. Quando isso vai acabar ? As meias, um conjunto saia e blusa (semi-transparente, azul escuro) quase um tailleur. Os sapatos. Estou pronta. Já ??? Ai !!! Quero voltar, quero sumir. Mais um conhaque.

Avisei que não se preocupasse com o jantar e que iria demorar um pouco com as amigas, era uma comemoração. Nunca dei tantas satisfações à empregada. Faltou deixar um roteiro escrito... “Esqueci” o celular na gaveta do criado mudo. Desligado, óbvio.

Cheguei em frente ao Café e ele acenou-me lá de dentro. Queria esconder-me mas não teve como. Aproveitei que chamava o garçom e dei uma ligeira desarranjada nos cabelos. Casual-chique. Fui em direção a mesa, trocamos beijinhos, ele falou que sentiu saudades. Saudades. Como foi a minha semana na serra? Porra, esqueci o texto. Deu branco... Lívida como um lírio.

Puxou a cadeira. Desabei.

-6-

Gostou ? Perguntou apontando o livro que eu apertava em minhas mãos. Calma mulher, calma. Respira fundo. Pede um vinho para nós ? Mas como estamos... e então, o que achou ? Do quê ? Do livro do João Ubaldo. Uma loucura... o que é aquilo ? Um pouco de confissão, um pouco de ficção. Mexeu muito com a minha cabeça... Mexeu muito é maneira de falar... Revirou minha cabeça. Que bom para você. Para mim ?... e para você ? (um a zero para mim)

Estou feliz porque você gostou. Gostou, né ? Aquiesci. Só pensei sobre isso nesses dias. Sobre isso, sobre nós, meu casamento, você. Pensou em mim ? Muito, o tempo todo. Seu tom de voz me acalmava. Seu olhar me excitava. Comecei a falar de tudo aquilo que senti. Sem rodeios. Falei de tudo o que aconteceu. De como estava me sentindo, de como preparei-me para o nosso encontro. Do sonho que tive, do biquíni pequenino, de tudo. Falei sem parar, ele deixava. Deixava que me desconstruísse em sua frente, devassava-me sem nada perguntar. Minha alma, aberta. E seu marido ? O que tem meu marido ? O que acha disso tudo ? Você está louco ? ... nem conversei sobre isso com ele. Ele está em Brasília e vai ficar lá até a semana que vem. Pronto. Fiz besteira. Ele me causa isso de falar demais. Ele e o vinho que já ia pela metade.

E como está a relação de vocês ? Bem. Vai bem, nos amamos muito, sempre fomos bem na cama, assim né ? ... Mais de vinte e cinco anos ... Então não vai tão bem assim... Vai, vai sim é que ... O quê?... O que falta ? Você me desarma mesmo. Não é o que falta. Nesses dias descobri que o problema é o que sobra em mim. Uma vontade de mais, mais entende ?... Nada contra ou com ele. Realmente amo muito meu marido mas tenho meus desejos (utilizei a palavra desejos ao invés de fantasias, estava evoluindo rapidamente...) e tudo é muito difícil de admitir para uma mulher. E ele, tem desejos ? Tem, ele tem os dele. Complicados ? Eram. Hoje já não acho tão complicados. Ele gosta de imaginar que o estou traindo. E é bom para vocês ? Ele enlouquece. Isto é bom pra mim, ele fica, digamos assim, mais caprichoso, mais inventivo. E esse desejo, te faz bem ? Você sonha com isso ? Isso o quê ? Trair. Tenho medo, seria difícil para ele compreender. E falei de toda a minha criação e da minha auto-repressão e todas essas coisas.

Disse-me que tudo isso era besteira. Em vez de ficar puta da vida, entendi plenamente o que ele quis dizer, o que ele disse. Era besteira sim. Mas onde a coragem ? Pois se não conseguia nem falar sobre isso. É bem verdade que estava falando com ele agora. Chamava-o de bruxo por conseguir me expor tanto assim. Tanto não. Nem tanto, nem pouco: completamente. Ele me elogiou, falou que adorava o que via, uma mulher em transformação. Tomou a vanguarda. Falou de seus desejos por mim. De meus olhos, essa minha carência nesse momento de transformação. Sempre me encantou, desde o primeiro dia. Me seduzia e eu entregava-me aos poucos. Um jogo delirantemente belo. Ele me queria e eu temia por meu marido. Balela. Temia por minhas dores. As que achava que deveria carregar eternamente.

Eu não conhecia até então a chama sensual de seus olhos. Conhecia sim o maravilhoso olhar de sempre, mas aquele era totalmente desconhecido para mim. Me deixou louca. Eu já estava totalmente submetida a ele. Não dava bandeira, ou pensava não dar. Uma naja era aquele maravilhoso bruxo. Eu, presa dele, dependente já. Estava assustada. Molhada. Encantada. Entregue. Na lona, de quatro, como se diz. Completamente presa àquele turbilhão, sem a mínima chance de reversão no andar das coisas. Era uma questão de tempo. O bote já estava dado. Já não havia como fugir. Nem eu queria.

Ele me desejava. Acabou também com minhas inseguranças. Agora me reconstruía a cada segundo. Quem era aquele homem ? Bruxo, bruxo, bruxo ! Bruxo gostoso. Bruxo tesudo. Desmontou, consertou, remontou. Acabou com a paz da minha alma. Ou revitalizou-a com a sua paz ? Falou-me o que não esperava ouvir. Falou-me o que mais desejava ouvir. Preciso ir. Está fugindo de novo. É preciso. Nos vemos amanhã ? Não sei.

Estava pronta para sair. Seria hoje. Minha filha ligou. Estava grávida, a danada. Peguei o carro e saí desabalada para sua casa. Comemoramos até tarde. Brindes, alegria. Cheguei em casa e dormi. Manhã seguinte olhava o espelho e via uma avó... Programei um dia de spa dedicado a mim. Estaria liberada às duas. Tempo de sobra para encontrar meu amigo. Seria a avó melhor resolvida sexualmente no mundo ! Estava feliz, muito feliz. Por ela, por seu marido, por meu marido, por mim, por ele.

Coloquei o perfume para ele. Estava completamente pronta. Livre, leve, solta, como dizia a música das Frenéticas que escutava no carro. Estacionei perto do Café. Antes de quatro horas estava na porta. Não o vi na mesa de sempre. Outra música: Meu Mundo Caiu. Num instante tudo voltou como fantasmas ao redor de minha cabeça. As culpas de sempre. Ainda mais agora. Avó devassa ! O que minha neta (ou neto) pensaria no futuro dessa avó ?

Sabia que ele chegaria em breve. Não pensei. Não fiz o que deveria. Apaguei-me. Rodei em meus calcanhares e voltei ao carro. Longe, ainda o vi entrar no Café. De dentro do carro, vi quando saiu, uma hora depois. Acabou, pensei. Perdi a última oportunidade. Serei infeliz por não ousar. Infeliz para sempre.


Enquanto dirigia de volta para casa, eu chorava. Pelo que não fiz. Por me negar a mim mesma. Por ser uma retardada, burra, idiota. Estúpida, ignorante, babaca ! Quase atropelei o garagista na entrada do prédio. ah... vai pra puta que o pariu... parece um dois de paus... Subi e enfiei-me em meu quarto. Não. Não seria assim. Não ficaria nisso. Mudei. Cheguei até aqui. Eu quero, eu preciso.

-7-

Sem mais. Fui. Cheguei. Trocamos os beijinhos de sempre. Minto, melhores que os de sempre. Só um café. Só um, frisei. Seus olhos se iluminaram e isso fez imenso bem ao meu ego. Sem palavras. Saímos dali. Entreguei-me como fosse a primeira vez. E era ! Certo. Fiz algumas merdas, lembrei do marido, comentei, coisas assim de quem não tem o que falar. Nem queria falar. Era nervosismo. Ele me deu a calma. Dominava, conduzia. Fazia-me conduzir. Todas as mulheres em mim afloraram agradecidas. Sem culpa. Amava meu marido. No final de tudo daquele dia continuava amando e desejando da mesma forma o meu marido. Nada mudou. A não ser, finalmente, a minha implosão.

À puta que pariu com meus conceitos, ao inferno com minhas certezas. Agora eu só queria a incerteza. A sutil incerteza. O prazer. Dos corpos, dos vinhos, das paisagens, da comida, da vida ! Certamente que Deus entenderia. Não rompi meus votos com Ele nem com ninguém. Reforcei-os. Talvez ninguém entenda, mas afinal de contas não tenho que explicar isso. Quem penou minhas dores ? Quem as curaria ?

Ele foi maravilhoso. Um sonho delirante. Um homem sólido. E eu não tinha outros compromissos a não ser comigo mesma.

Assim foram todas as vezes que estivemos juntos. Cada vez uma mulher diferente libertava-se em mim por obra dele e sempre essa mulher diferente encontrava nele a contrapartida necessária para suas loucuras. Na vez em que ele me vendou e tocou suavemente todo o meu corpo com aquela enorme escova de cabeleireiro. Na vez em que o amarrei e o fiz provar de seu veneno. Literalmente, em cremosos beijos loucos. Satisfazia meus desejos todos. Trazia apetrechos diversos. E cremes, e lubrificantes, e vídeos e sons. Perdi o medo de tudo. Perdi o medo de mim.

Percebi finalmente que os limites não estavam na carne, mas na consciência do que a rege. Lembrei do Pepeu, lembrei de Jesus: o mal nunca entra pela boca do homem.

Livrei-me de tudo o que não me trazia bem-estar. Eu estava melhor. Masturbava-me sem culpa. E pensava ora nele, ora em meu marido, ora em outros homens. Mudei. Muito. Abdiquei dos penteados esmerados. Pintava as unhas de vermelho. Usava decotes. Ia ao clube, tomava caipirinha, falava os palavrões que nunca me permiti. Tudo sem perder a mulher que sempre fui. Só perdi o medo, a vergonha. Era finalmente uma sem-vergonha. No sentido que sempre sonhei ser. Meu marido notou tudo aquilo, claro. Mas se por um lado não falava nada, fazia uma cara dândi de

sei-o-que-está-acontecendo-não-dou-o-bra
ço-a-torcer
-mas-gosto".


Tudo era melhor. Minha vida, meu relacionamento, meus filhos, o fato de ser avó. Eu mesmo era melhor. Uma mulher melhor, como jamais fui.

Nada mais me surpreenderia nisso tudo. Será ?

-8-

Um dia falei para ele sobre como ia o relacionamento com meu marido. Quase uma queixa. Essas besteiras de comparação que acabam por levar as melhores pessoas – e eu me incluo nesse conceito - ao erro. Não era nada disso e eu não percebia sob essa ótica. Apenas falei que ele estava repetitivo com essa fantasia de traição e que me queria todos os dias. Não sei se por indução, mas eu percebia que ele me desejou mais nos dias em que estivemos juntos.

Ele disse que já sabia disso. Como sabia ?... Nunca te falei. Sei sabendo, falou como um guri. A fantasia dele. É claro que é mais do que fantasia. Ele sabe, não é bobo. Apenas tira proveito de toda essa situação. Então ele é um canalha !? (ah os textos de novela ...) Não. Canalha não. É uma hipocrisia pensar que só você tem o direito de realizar o seu desejo. Veja, repare bem. Ele está no ponto. É só colher. E eu quero isso.

Louco. Ele tinha enlouquecido de vez. Eu não iria arriscar minha vida por um desejo. E o que você fez até agora ? Apostou e ganhou na sua luta interna contra a mediocridade. Você pôde, ele não pode ? Ele quer, sim, dividir você com outro. Ele quer ver, participar também de toda a brincadeira, estar mais que presente. Ele sabe. Não que ou quem, mas sabe, e deseja isso. Louco. De pedra. Você está falando... É ! Nós três. Nos amando, nos possuindo, nos dando, nos comendo. Nunca. Me apresenta como um amigo num jantar e deixa comigo. Não, apenas eu não te basto ? (que forma infantil de revidar, olha as novelas aí de novo...). Ele queria, e hoje eu sei disso, terminar o processo que começou. Me fazer total. Una, verdadeira e indivisível em meus anseios íntimos.

Eu quero. Eu, você, ele. Mesma cama, mesmo amor. Sem possibilidades, você acha que somos personagens do Nélson Rodrigues ? E não somos todos !? E não temos todos os mais recônditos desejos ? Os mais impublicáveis ? Eu sei que ele quer. Eu vou ter. Ele vai ter. Você vai ter. Imagine... Duvida ? Não. Eu não duvido de mais nada.

Isso será um caminho sem volta, querido. Isto já é um caminho sem volta. E se eu o perder ? Você terá ganho mais do que perdido. Ele não mereceria você. Você já ganhou. Você evoluiu. É a vez dele.

-9-

Tudo seguiu como ele havia previsto. Fui cheia de dedos conversar com meu marido, falando sobre um amigo antigo do colégio que encontrei por acaso no banco e que tomamos um café e que contei para ele da minha vida e que ele contou da dele, e que, e que ... Meu marido abriu um amplo sorriso e o caminho também. Chama para jantar um dia conosco. Será um prazer recebê-lo em nossa casa. Ele sabia. Eles sabiam. Me senti uma tola com meus medos rondando novamente. Mas será que era realmente isso ? Veríamos.

Ele chegou. Eu tremia dos pés a cabeça. Meu marido, acho que percebendo minha ansiedade, serviu-me o tal qualquer coisa Martin, cheio de letras maiúsculas... Foi muito bem recebido. Sentamos na nossa aconchegante sala de estar. Meu marido em sua almofada de sempre, no chão. Eu e ele em poltronas diferentes. Era um sonho. Um pesadelo. Uma transgressão da realidade.

Deram-se maravilhosamente bem. As músicas, a literatura, tudo perfeito. Eram iguais. Eureka: apaixonei-me pelo que já tinha. Comecei a vislumbrar quem era meu amigo. Meu marido, igual a ele, só não havia tido a coragem que ele teve, mas, também, não foi despertado como eu fui. Estava realmente maduro para a colheita. Tinha razão. Ele sempre teve razão esse tempo todo. Meu Deus. O Porto, os mesmos charutos, tudo. Sobretudo a mesma mulher !

Nervosa. Eu estava nervosa. Não duvidava de nada, como falei a ele, mas queria ver como é que iria desenvolver a situação. Eu seria cúmplice ? Sim, eu já era a cúmplice nesse tempo todo. Uma experiência. Maravilhosa, porém experiência. Natural, porém experiência. Não tinha raiva dele, não, de jeito nenhum, não me senti usada. Usei como fui usada.

Não eram apenas eles os iguais. Eu também era igual a eles. Nem culpa, nem agentes dela, nem quem sofresse a ação. Era um teatro maravilhoso, o palco da minha sala de estar. E mais seria. Saí da sala para espiar como fluiria...

Falavam de mim. Do orgulho dele em ser meu marido. Meu amigo falando da minha beleza, inteligência. Os ciúmes do meu marido. Grandes confidentes. A confidência era eu. Senti-me a melhor das mulheres do mundo. Desejada por dois machos, sem disputas, apenas convergências. Meu marido não sabia. Sabia... Uma deusa ! Enfim !

A hora. Caramba, a hora. Muito tarde, muito álcool. Meu marido tomou a frente e o convidou para dormir em nossa casa. Tínhamos o quarto de hóspedes. O que eu achava ? Não insista se ele não quiser. Ele disse não querer incomodar. Meu marido insistiu. Muito bem. Jogo feito ! No caminho para o quarto, alisou meus seios, mostrou-me sua excitação. Te espero. Não ! Se não vier, tiro você da cama do seu marido. Louco, ensandecidamente louco ! Mais louca é você que me quer. E ele que nos quer... não te falei ? Estava certo. Sim, estava.

-10-

Eu fui. Esperei meu marido dormir, ou fingir adormecer e fui. Nos demos como nunca, como cães de rua, melhor que sempre, melhor que nunca. Uma, duas vezes, a porta aberta. De propósito. Malucos. Ele me sodomizava quando meu marido parou à porta. Eu, puta insana, me dava ao desfrute. Ao meu, ao dele e ao dele, que só olhava. Ele foi até ele. Convidou. Instigou. Me serviu. Trouxe-o pela mão. Grandes amigos, grandes amantes. Nós três. Juntos, finalmente.

Um insuportavelmente delicioso cheiro de amor. Tinha agora meu homem, meus homens. Em mim. Não queria perguntar nada, falar nada. Queria sentir. Desfrutar aquele momento. De todas as formas nos amamos. Eles em mim e eu adorada.

Fui massageada, amada, comida, currada. Então, o inesperado. Meu amigo sempre surpreendendo. Era o que faltava. Aquilo que tanto me deu prazer agora seria meu. Em plástico, que nunca o tive, porém meu. Sentiria enfim o que eles sentiam e eles o que eu sentia. Pus a cinta. Óleos. Ora um, ora outro. Meu marido gozava sem toque. Acabaram-se as teias de aranha. A poeira enfim, banida de nós. Meu amigo, agora sentado na poltrona, entregava-se a si mesmo fruindo-nos desde a cena. Eu e meu marido na cama. Gritávamos e ríamos. Chorávamos e gozávamos.

Não demos conta de perceber o momento de sua saída. Meu marido me amava e eu amava meu marido. Estávamos completos. Meu amigo se foi. Que viva para sempre a nossa sujeira ! O nosso amor. Sujo e delicioso amor.

Agora, ao amanhecer em nossa varanda, vejo meu amigo caminhando em direção a um táxi. Sei que não mais nos veremos. Obrigado, meu irmão, meu amor. Sem acenos.

Agora estávamos a sós. Eu e ele na varanda do nosso quarto, sorvendo com serenidade o chá que preparei. Cada um em sua cadeira de palhinha. Em silêncio. E aquele cheiro morno e úmido de hortelã. Deus. O que fizemos ?! Sem falar, apenas desfrutávamos a linda vista da Floresta da Tijuca e ouvíamos seus sons. Sabíamos o que conquistamos, porém não tínhamos a exata noção do que havíamos feito, do ponto ao qual chegamos. Mas era bom.

Ele levantou-se suavemente, debruçou-se no gradil e olhou profundamente a natureza da paisagem (como jamais supunha pudesse fazer). Ainda calado, voltou seu corpo nu em minha direção, deu um passo no chão frio de granito e ajoelhou-se naquela pequena alcatifa iraniana, junto aos meus pés. Abraçou minhas pernas, beijou o joelho que escapava do peignoir. Olhou nos meus olhos como se mirasse o horizonte no mar. Falou. Respirou fundo e falou: Obrigado amor, muito obrigado. Foi uma lua-de-mel diferente, única. Serão assim todos os dias daqui pra frente. Sempre.

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