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06 março 2007


Almas de carne
(Kinho Vaz)


Clara saiu de casa cedo. Estava péssima. Queria se enfiar num quarto escuro e deixar a sensação de morte passar. Mas não podia. Tinha que sair e viver. Mesmo que fosse para afrontar o passado. Ainda sentia a presença do marido. Um idiota manipulador de mentes. Dono de um egoísmo sem precedentes. Quando se conheceram era diferente. Fazia outra figura. Talvez para impressioná-la. Mostrava-se compreensivo, liberal, dono de um discurso cativante. Conseguiu dela o que queria. A confiança. O crédito para uma vida a dois. O tempo revelou a sua verdadeira face. Um déspota. Um falso. Um mentiroso. Um doente. Fez de Clara a sua marionete. Um boneco de ventríloquo. Conduziu seus passos. Selecionou suas amizades. Direcionou seus pensamentos. Moldou a sua conduta de tal forma, que ela deixou de ser autêntica.



Quando se deu conta já era tarde. Não sabia mais andar sozinha. Não sabia decidir sozinha. Estava presa à submissão. À rotina de um casamento desigual. Era como um passarinho de gaiola. Sonha com a liberdade, mas não sabe o que fazer com ela. Aquela não era apenas mais uma das incontáveis manhãs de ódio na vida de Clara. Era diferente. Era definitiva. Não podia mais voltar atrás. Saiu porta afora pensando alto. Que fosse tudo pra puta que o pariu. Junto com ele. Que se danasse. Que ficasse podre. Sujo, como um pedaço de papel higiênico usado. Demônio. Deveria mesmo era ter sido corno. Era isso que merecia. Teve sorte dela não ser uma mulher vagabunda. A vadia que ele queria ter. Fosse verdade, já teria metido um bom par de chifres naquela cabeça imunda. Ele bem que merecia. Infeliz. Onde já se viu? Achar que ela aceitaria uma situação daquelas. O que ele pensava da vida? O que ele pensava dela?



Clara nunca reclamou das esquisitices dele. Aceitava as taras do marido. Sujeitava-se, vá lá. Mas era melhor que ele tivesse em casa do que procurasse na rua. Mesmo o que não fosse bom para ela. Mas tudo tem o seu limite. Uma situação daquelas, ela nunca permitiria. A culpa foi dela mesma. Devia ter mantido os olhos mais abertos. Não faltaram sinais. Desde que a sua irmã se separou do marido e veio morar com eles. Não queria ela em casa. Mas ele ofereceu abrigo sem consultá-la. Ela reclamou, podiam perder a liberdade. Ele bateu pé, disse que era sangue da esposa, não podia ficar na rua. Ela cedeu por pena da irmã. Teve medo de mais tarde vir a sentir algum remorso. No princípio até achou bom. As brigas com o marido diminuíram. A presença da irmã inibia as suas explosões de ódio. Percebeu que ele já não era o mesmo. Procurava ser amável para impressionar. Tratava bem as duas. Chegava cedo para jantarem juntos. Trazia vinho e doces. Mimos que há muito não fazia. Até mesmo o noticiário da TV foi trocado pela novela do outro canal. Sem reclamações. Viu de novo o homem que conquistou seu coração. Relaxou a guarda. Permitiu que a irmã também agradasse o marido. E essa soube aproveitar a situação. Fez doce e salgado. Lenço bordado com iniciais, remendos apurados nas meias, botões reforçados nos blusões. Prendas de um lar que não era seu. Assumiu parte das obrigações de esposa. Carinhos para um marido que não era seu. A esposa de verdade achou tudo normal. Uma forma de retribuição. Ele não poupou elogios. Nem mendigou amabilidades. Sempre comparando as duas, nisso ou naquilo. Num tempero de feijão mais gostoso. Numa cerveja melhor servida. Mesmo no bife de fígado, que ele sempre dizia que só a esposa fazia ao seu gosto. Até nisso comparou. Dando vantagens aos feitos da cunhada. Tudo bem para a esposa, que trabalhava menos. Mas também tinha menos espaço em sua própria casa. Que assim fosse. Que se visse aonde aquilo iria dar. Em boa coisa não poderia ser. Não deu outra. Com o passar dos dias o marido voltou a fustigar Clara. No início, sozinhos. Na cama. Reclamando de um sexo mal feito. De uma vontade mal atendida. De uma menstruação fora de hora. De nada. Depois passou a desfeita-la na frente da irmã. Essa baixava os olhos e saía de perto. Buscava o seu quarto. Ato de fuga ou conivência. Não tentava apaziguar os ânimos. Nem defender esse ou aquele. Simplesmente saía de perto. Abandonava o casal sozinho. Ele aos berros. Ela aos prantos. Nunca ofereceu uma palavra de apoio à Clara. Nem antes nem depois das brigas.



Certa vez jantavam calados. Olhos baixos nos pratos. Ele disse que tinha duas entradas para o teatro. Clara disse que se aprontaria depois da refeição. Ele disse que não. Era mais justo um sorteio entre ela e a irmã. Ambas trabalhavam na casa. Clara ficou surpresa e explodiu. Ela era a esposa, a dona da casa. Ele não disfarçou a rigidez, dizendo que o sorteio seria mais justo. Clara não quis a humilhação. Que levasse a outra com ele. Para ele tudo bem. A outra não disse nada. Mostrava as garras na mudez permissiva. Mas insinuou um sorriso no olhar.



Clara ouviu os dois saindo. Amaldiçoou o marido e a irmã. Maldisse o dia que ela pôs os pés na sua casa. Chorou e sofreu sozinha, na cama. Pensou em milhões de vinganças. Mas sofrer e odiar cansa. Acabou dormindo. Acordou horas mais tarde. Ainda estava sozinha na cama. A amargura havia ressecado a sua boca. Foi beber água. Pensou nos dois. Já deveriam ter voltado. Mas a sua cama estava vazia. Foi então que um pensamento pesou o seu coração. Um fio de aço estrangulou seu estômago. Levou as mãos à boca para sufocar o desespero. Não podia ser. Isso não!



Caminhou na direção do quarto onde dormia a irmã. Pensou em voltar a cada passo. Mas quanto mais se aproximava, mais alto soava o seu desgosto. Até que viu o que os seus olhos não queriam. A irmã e o marido. O marido e a irmã. Os dois juntos. Mosaico de pernas e braços. Tudo o que ela fazia com ele, a irmã repetia. As mesmas taras. As mesmas esquisitices. Só que a irmã parecia gostar. Viu prazer em seu rosto. Viu satisfação na sua entrega às sujeiras dele. Estava gostando a safada. Cadela. Vadia. Puta. Decepção e ódio se alternaram com rapidez. Clara não conseguia se conter. Pensou em gritar, invadir e espancar os dois. Mas era pouco. Muito pouco. Era preciso mais. Era preciso que a sua dor fosse deles. Que a dor deles fosse a sua vingança. Conseguiu se conter. Cravou os dentes na própria mão. Mastigou sua angustia. Engoliu em seco e voltou para a sua cama.



A vingança é instintiva e faz do vingador um forte. Um determinado. Um criativo da obsessão. Por isso clara esperou em silêncio. Por isso cedeu em silêncio, quando o marido procurou seu leito e requisitou seu corpo. A irmã não lhe bastou. Queria mais carne o canibal. E assim foi. Calar sem compartilhar. Amar sem sentir. Provar sem gosto. Chorar sem lágrimas. Até que a fúria da besta se esvaiu, enchendo seu corpo de lixo. Molhando seu rosto de baba. Sujando sua vida de merda.



Clara levantou cedo como sempre. A irmã a seguiu. Nenhuma palavra foi dita. Prepararam o café com a certeza do óbvio. Um encontro de olhares poria tudo a perder. Serviu o marido. Serviu o cunhado. Serviu-se das duas. Saiu refestelado.



Clara foi atriz. Interpretou o papel da dor contida. Seria por pouco tempo. A farsa seguiu em todos, como um acordo tácito. Nada se revelou. Nada se reparou por todo o dia. Nem quando clara calça luvas de limpeza e esconde aquela faca. Essa de aço longo, que a irmã usou para fatiar o fígado em bifes. Carne de outros prazeres. Foi discreta naquele momento, porque sempre foi assim. Seguiu muda nas horas do dia. Permitiu a companhia permissiva. Almoçaram as duas. Lancharam as duas. Jantaram os três. E outra vez a noite trouxe os rituais da besta. Dos leitos que se invertem. Das camas que se multiplicam. Dos corpos que se repartem. Das almas que se deixam subjugar. Até que novamente ocorra o esvair de lixo. O molhar da baba. A vida de merda.



Quando a faca desceu os olhos do marido se abriram. E assim permaneceram até que Clara conseguiu conter o seu ímpeto. Firme. Decidida. Cansada. Continuou chorando sem lágrimas. Olhava com raiva aquele rosto assustado e sem vida. Poderia ter fechado os seus olhos. Mas não fechou. Ele deveria assistir ao fim. Como ela assistiu, na noite passada. Mas ele não bastava. Faltava castigar a outra. Sem morte. É sangue dos seus. Deixasse estar que a sua hora já estava marcada. O dela já estava guardado. Segurou o pênis do marido. Instrumento de tortura. Início e fim do seu martírio. Emissário dos esgotos de uma mente podre. Um mal que deve ser cortado pela raiz. Viu graça na situação. Mas continuou contrita. Terminou o que havia começado e saiu, enquanto não havia luz. Foi à cozinha e temperou com o capricho o regalo macabro. Guarneceu com batatas e ovos cozidos. Cobriu com papel alumínio e guardou no forno. Estava pronto. A irmã teria o seu prato preferido. A faca foi para a gaveta do armário. Suja do sangue maldito. Assinada com as digitais da traição. Voltou ao quarto. Ele permanecia lá. Inerte. Com os olhos fixos na escuridão eterna. Tomou banho. Limpou-se da morte. Vestiu sua roupa de festa. Juntou o que sobrou daquela vida em duas malas e saiu. Sem carregar nenhum remorso.

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