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18 abril 2006


MIF

O universo está entrando em colapso e a existência, idem. É a hora do Big Crunch !

(Conto de Evaldo Magalhães)

O universo estava prestes a entrar na Idade da reversão, período que duraria os mesmos bilhões de anos até aquele momento e o faria reduzir-se, aos poucos, a um minúsculo ponto de singularidade, feito de matéria hiperconcentrada e perdido no Vazio (embora não houvesse alguém para encontrá-lo). Dali em diante, era impossível prever quanto tempo levaria até que, mais uma vez, houvesse o sopro, o clic na chave do reator invisível. Outra gigantesca explosão ecoaria pelo Nada, dando início à enésima volta no ciclo intérminável dos acontecimentos - àquele caos motocontínuo de luzes, gases, matéria escura e poeira cósmica que iria se organizando, com o passar do recém-criado tempo, em galáxias, estrelas, planetas e seres vivos, inteligentes e/ou estúpidos. Tudo isso tentando, em diferentes níveis de complexidade e com as mais diversas estratégias, afastar-se a uma distância segura do indefectível Verbo. E então, frustrada ao final da correria, a família universal, como em incontáveis ocasiões, sucumbiria num único instante ao derradeiro e repetido colapso. E assistiria ativamente à contração de seu lar, revivendo ao contrário a enganosa escapada pelo espaço-tempo.

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Dominus, o andróide, olhava fixamente o cronômetro quasárico no laboratório central de Zelgrub, em uma das milhares de câmaras intraterrenas do planeta, a leste das escarpas de Calixus. Ele sentia no peito algo bem próximo à Angústia - doença psicofísica que lhe fora relatada inúmeras vezes por humanóides de diversos planetas, e cujo sintoma mais comum era "um enorme bolo de vazio no plexo solar". Era estranho o sentimento de que todos os seres "superiores" à base de carbono sintético ou verdadeiro, ambos dotados de pensamento (e os últimos capazes de criar vidas artificiais como a sua, a partir da prática da matemática combinatória), estivessem ausentes naquela hora. Todos mortos. "Solidão", pensava Dominus, enquanto ajustava obsessivamente controles no painel à sua frente. "Solidão com uma boa dose de medo", balbuciou, conclusivo.

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Na superfície do globo, contudo, havia uma contradição fundamental ao raciocínio do andróide. Em uma tenda de fibra de vidro, reluzente na quietude desértica sob os raios de Cintila, a estrela do sistema G-232, abrigava-se um homem; não um calixusiano, mas um terráqueo. Bêbado por doses e mais doses de cartúnia, com olhos enfadados passeando eletricamente pelos cantos, como que à procura de mosquitos inexistentes, Malt Stuponic soltava um filete de saliva pelo canto da boca, enquanto pronunciava, com dificuldade, palavras ininteligíveis até para si mesmo. "Bltassnersdtst", era o que se podia entender. Um som agudo e sincopado vinha do relógio em seu pulso. Era como uma marcha fúnebre, eletrônica e minimalista, marcando os segundos finais do universo como o próprio medidor de tempo o concebia. Mas Stuponic não dava atenção. Estava mais sintonizado com o grande, frio e inelutável Destino que o aguardava, e a tudo o que conhecia, do que com qualquer outro pensamento. "Fim", ele finalmente pode ouvir-se.

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Ex-funcionário do Instituto Quasar de Pesquisas do Caos (IQPC), o último ser de carbono verdadeiro do mundo ainda vivo e pensante sabia que, dali a pouco, começaria, grosso modo, a encolher, num trágico e lento processo de rejuvenescimento. Antes mesmo de ser um bebê, se ainda estivesse respirando, Stuponic passaria fome, sentiria mais terror do que naquele momento e, o que é pior, não encontraria pai, mãe, tios, avós, primos, irmãos, sobrinhos, sobrinhas, amigos ou inimigos para diminuir seu desconforto. "Fim", ele repetiu. Stuponic pegou outra garrafa de cartúnia e abriu-a com os dentes amarelados que, de podres, não resistiram e se quebraram. Cuspiu porcamente os pedaços e levou a bebida à boca, com um desespero contido. Foi uma longa talagada com os olhos apertados, dos quais lágrimas insistiam em escapar.

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Em Zelgrub, Dominus pensava seriamente em recorrer a uma garrafa semelhante à tomada, naquele mesmo momento, na superfície de Calixus, pela corporifição da antítese à idéia de que estaria sozinho no universo. Tamborilando os dedos nas botas luminosas e esfregando o baixo ventre, com a outra mão, o andróide relutava em abrir o congelador, para o qual olhava fixamente. Ele titubeou ainda por alguns segundos _ pensou nos porres de Gerhdt, seu mestre, e nas bordoadas que dava na esposa após algumas doses. Mas isso não o impediu. Deu um longo e saudoso suspiro e retirou nervosamente a garrafa do compartimento gelado, onde se lia "Faça uma boa viagem". Convicto de que seria um excelente remédio para a Angústia, Dominus sacou a rolha e sugou o líquido de uma só vez com um canudo, por aquele arremedo de boca que haviam projetado para seu rosto. Finda a operação "boa viagem", atirou a garrafa na parede e relaxou na poltrona, exatamente como fazia Gerhdt, antes de matar-se. Aliás, foi esta a imagem que ocorreu à conturbada mente do andróide. O corpo do mestre esticado sobre a cama, ao lado da esposa e do filho de cinco anos, todos mortos pela ingestão dos comprimidos "Além".

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Tão logo os cientistas do IQPC anunciaram a comprovação da permanência da alma após a morte, oito luas cheias de Calixus antes daquele dia, todo o mundo correu às farmácias para comprar os tais comprimidos, que garantiriam uma entrada sem problemas no "reino encantado do além", como dizia a bula. Até os andróides, os superinteligentes bichinhos de estimação dos humanóides, haviam embarcado na febre do post mortem _ o pessoal do IQPC afirmara que mesmo produtos da biotecnologia poderiam possuir almas resistentes à inativação dos corpos, desde que "desenvolvidas" em complicadas práticas ascéticas. O suicídio coletivo fora completo, em todos os planetas do universo. Isso porque, no dia seguinte à descoberta da "vida após a vida", os mesmos cientistas revelaram a data e a hora de início do temido processo de reversão, o Big Crunch, cinicamente apelidado pela mídia intergalática de Bang Big. Por obra de Deus, ou fosse lá que força misteriosa comandava aquela bagunça toda chamada universo, no entanto, sobraram um homem bêbado e decadente e um andróide psicotizado, que acabara de enveredar pelo caminho do álcool. Um sem saber da existência do outro.

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Stuponic largou a garrafa de cartúnia na mesa à sua frente e tombou, salivando e ruminando palavrões contra si mesmo. Ele sentia um misto de tristeza e loucura que jamais experimentara em sua torpe vida de cientista. "Caralho !", gritou. "Sempre achei graça em tentar prever as coisas, hic, agora sei exatamente o que vai acontecer comigo e, hic, estou ficando louco", ele disse - ou, melhor, pensou nisso e tentou dizer. O terráqueo dormiu por umas oito horas e acordou espantado, sentindo-se alguns segundos rejuvensecido - o Bang Big tivera início. A sensação de reversão só não livrou-o de amargar uma dor de cabeça cósmica. "Preciso dar uma volta e encontrar comida", pensou.

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O único humano ainda vivo nas faces de todos os mundos do mundo entrou em seu módulo para viagens de curta duracão e deu a partida. Planou sobre o deserto como uma águia faminta. Stuponic tinha a esperança de encontrar uma escotilha aberta na planície - que algum caluxiano mais afoito, na ânsia de morrer, tivesse esquecido de fechar. Depois de voar horas e horas, tomando-se o sentido inverso dos relógios analógicos, claro, ele finalmente avistou uma abertura, 200 metros abaixo de onde estava. Quando preparava-se para aterrisar, viu um ser de macacão prateado deixando a fenda e mirando, aparentemente tão surpreso quanto ele, o aparelho no céu. Emocionado, Stuponic perdeu o controle da nave, que entrou em espiral durante a descida e chocou-se violentamente contra o chão. Dominus observou a cena, tirou do bolso um aparelho de detecção de vida que, apontado para os destroços, a poucas dezenas de metros de onde se encontrava, recusou-se a emitir o sinal positivo. O andróide deu de ombros e entrou pela escotilha. A porta foi se fechando. "Solidão", ele queixou-se, esfregando a mão em seu suposto plexo solar.

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