Sign by Dealighted - Coupons and Deals

21 abril 2006


Estive no céu...E com o patrão mesmo!
(Da Argentina, Raúl Gentili)

Hoje em día, quase todo mundo, quem más, quem menos, conta que teve alguma experiência sobrenatural. Um amigo meu, por exemplo, relata que, durante uma operação que sofreu há uns anos, pôde ver o trabalho do cirurgião, das enfermeiras e tudo o mais, como se observasse a cena desde o teto, enquanto o seu abdome era aberto, por assim dizer, de par em par, como –segundo sempre as palavras dele proprio- quem abre as janelas do quarto após uma noite de sono. Meu amigo leva jeito pra poeta...-Realmente –acrescenta o versificador aprendiz -, tive a sensação de estar assistindo ao açougueiro preparar esse franguinho pra grelha do domingo.... embora ele tenha sérios problemas se de imágens metafóricas se tratar. Também assistí na televisão, esse portentoso veículo cultural, aos depoimentos de uma porção de pessoas, quem dizíam ter passado pelo corredor que separa, ou talvez une, este vale de lágimas com o infinito, o desconhecido.Há quem declara que ouvíu e víu, num sonho, mas que parecía real, a sua vovó, morta tempo há, lhe chamando, e a lhe perguntar por outros seres queridos, a lhe contar que o sítio onde ela estava era muito lindo, e tal.Um cara relataba que a esposa, da qual era viúvo fazía longos anos, lhe aparecéu no momento de ele sofrer um acidente de carro. Insiste em que quase lho cegou uma luz forte e branca, enquanto ouvía uma voz cálida a dizer o seu nome, e que, se aproximando da luminosidade, viu um vulto de mulher que lho cumplimentava.

-Soube que era minha esposa de imediato –acrecentava o homem, emocionado. Ela, únicamente morta podería me saudar co´uma doçura semelhante...

Um rapazinho contou que, também na hora duma operação, neste caso do cérebro, veio procurá-lo um outro menino, vestido de branco, lhe pegar a mão, e convidá-lo pra ir jogar num parque, sempre seguindo o relato do moleque, muito bonitinho, com uns animalzinhos lindos, e bons, que também brincavam com eles. Disse que o garoto lhe falou que o seu nome era Jesus.Consultado o médico responsável da atencão do rapaz para saber a sua opinião sobre a matéria, o profissional depôs, lacónico, o seguinte:

-Os fármacos...

Pois é, amigos, está na hora de confessar que eu também viví uma dessas experiências. E acho este o momento propício pra dar a minha testemunha. Espero, sim, que o meu depoimento não seja, no futuro, objeto desta desajeitada ironía que eu, por falta de outros recursos literarios melhores, vejo-me obrigado a usar. Aliás, rogo vocês me poupem a dor de reviver as malfadadas circunstâncias em que fato dessa índole ocorreu-me. Nada acrescenta, nem tira, nem aclara, nem obscurece, nem atrasa, nem adianta que eu dilate estas linhas com o relato desses acontecimentos, já que será suficiente iniciar minha estória dizendo que, logo depois de transpor aquele túnel que tudos quem viveram coisa parecida nomeiam, me encontréi de repente num local bastante iluminado, amplo e vazío, com exceção dum piano de cauda preto, onde um cara de chapéu de palha e oculos tocava, enquanto um outro, muito mais velho, escutava, com olhos perdidos, a música. Éste último tinha um aspecto singular. Barba longa , cabelo comprido e também branco, e uma espécie de roupão da mesma cor. Sentado numa cadeira alta, encostado de cotovelos na capa do piano, tinha na mão um grande copo de uísque, que balançava fazendo rolar os pedaços de gelo com esse tilín tilín engraçado.

Quando o pianista acabou de tocar, o velho bebeu um grande gole, olhou pro músico e, admirativo, mas porém triste, disse:
-Poxa, mestre, isso sim que é Criação, hein, não tuda esta cagada que eu fiz –e girava o indicador num gesto apontando o arredor tudo.
-Não se vexe –respondeu, bondoso, o músico -, ninguém é perfeito.
-Bom, presumívelmente, eu devía ser, não concorda?
O pianista olhou pro velho compassivamente, ascendeu um charuto, e não disse nada. Simplesmente sorríu
-Devía sím –afinal falou o Tom, pois dele se tratava, nem mais nem menos que do Jobím -, mas não deu...
-Não, não deu não.
Nesse momento os dois perceberam o meu ingresso, e, detendo a conversa, olharam pra mim.
-Lá vem mais um freguês pro senhor –falou o músico.
-Que espere .o velho bebeu seu uísque. –Toca mais uma, maestro, por gentileza. É que hoje tive um día cansativo demais, entende?
-Mas, o freguês... respondéu o Tom.
-Que espere. Tem tempo.
-Com certeza –o Tom metade ría, metade tossia pelo charuto.
–Embora, sabe, o rosto eu acho familiar, creio que conheço esse cara dalguma parte. Sei lá, eu já conhecí tanta gente na vida... –enquanto assim falava o pianista, a música demorava.Afinal, o velho, com grande aborrecimento, olhou pra mim e disse:
-Então, meu filho, qué é que houve...?
-Isso é o que eu gostaría estar sabendo. Onde estou? Qué é o que está acontecendo? Quém é você?
Ainda mais irritado, o velho voltou falar para o pianista.
-Ha! Não lhe disse eu? Não lhe disse? –e agora me olhando, bradou, enquanto alçava a mão apontando pra fora. –Vá lá, vá lá encher o saco a outra parte. Me deixa em paz hoje, viu. Se quiser, volte amanhá. Não tou afim de responder tolices.
-Calma, calma... –tranquilizava o Tom.
-Mas como calma. Não posso nem beber um uísque tranqüilo, nem ouvir um pouco de música, que já tem que vir alguém a interromper. Na verdade, seu Tom, tou até com vontade de renunciar. Não agüento mais, juro.
-Porém, eu acho que você fez um trabalho bonito. Lá, na terra, todos esses passaros, o mar, o mato, o peixe, tanta coisa linda.
-Sim, também há guerra, morte, inveja, maldade, destruição, exploracão... Por qué é que você não menciona tudo isso?
-Prá não incomodar ao senhor.
-Obrigado. Porém, não esqueço que é tudo a minha obra.
-E cá, no céu, temos os amigos que vieram. O Vinicius, a Narinha, meu querido Drummond, tanta gente...
-Tá, tá, tá legal, seu Tom, tem razão.
-...a vida tem sempre razão... –cantarolou o mestre, se acompanhando com uns acordes do piano.
O velho voltou a pregar em mim a sua mirada
.-Bom, garoto, mas, então, qué foi?-Acabo de lhe dizer que estou querendo saber que é o que aconteceu comigo e qué lugar é este.-Você não sabe?-Não.-Nem apenas imagina?
-Imaginar, imagino, mas estou com medo daquilo que imagino...
-Ah, rapaz! Essa sempre foi a tua atitude. E muito caro a pagaste.
E sem sequer esperar minha resposta o velho falou pro Tom:
-Com medo até do que imaginava... pode crer, seu mestre? É que já se viu babaquice tamanha?-Cómo “imaginava”?
–esse tempo passado arrepiou-me -, então eu... eu... morrí?
-Coisa semelhante –respondeu o velho, enigmático. –Se eu quero...
-E então, este lugar é... é o Paraíso?
-Propriamente. Suponho que já estará sabendo quém sou eu.
-Não.
-Mas, olhe... este visual... não lhe diz nada?
-Sinceramente não.
O velho olhou pro Tom com gesto desorientado, e com desalento. Como resposta, o mestre só alçava os ombros, com os olhos faiscando pelo riso apenas contido.
-Imagiiinaaa... –cantarolaba agora, brincando no piano.
-Bom, vamos ver –tentou ser paciênte o velho -, você chega aquí, neste lugar, o Paraiso, e se encontra com alguém de vestes longas, barba longa, cabelo comprido, tudo de branco, sim?
-Sim.
-Tá, então, quém é que eu sou?
De repente, uma luz relampejou no meu coração.
-Já sei! –disse. –É o Profeta Gentileza!!
Tom, que nesse momento tinha abandonado o teclado e bebía o seu uísque, cuspiu o conteúdo inteiro da boca, obrigado pela incontrolável gargalhada que a minha confussão lhe causou. Eu continuei:
-Mas não sabía que o senhor tinha morrido –e tentando ajeitar minha melhor expressão de desconsolo, lhe tendí a mão.
–Sinto muito –porém, reconheço que abalava um pouco minh´alma o fato de eu estar lhe dando o pêsame... ao proprio finado!!!
-Não, meu filho –agora era o Tom quem falava, recuperado o fôlego e a compostura, devido a que o velho parecía ter emudecido, eu não sabía se por tristeza ou fúria, ou por ambas as duas -, quem você tem diante não é um homem.
-Sei lá –respondí, ardente defensor das liberdades individuais –eu não sou quem pra mexer com as preferências sexuais de ninguém...
-O que o mestre quer dizer e que eu sou o Eterno, o Todopoderoso, o Senhor das Esferas!! Conhece agora? Ou também não ouvíu falar do Senhor das Esferas?
-Na verdade, o que eu conheço, o que já tenho lido, e uma estorinha sobre um tal de “Senhor dos Anéis”, mas do senhor das esferas, eu não, ainda não tive notícia.
-Há muito que sacaram esse livro?
-Ah, não, isto é demais prà gente –choramingou o velho –seu mestre, faz favor de falar com esta besta. Eu vou pro banheiro –e caminhou até um dos limites do local, se perdendo numa espécie de núvem dourada.
-É Deus, o nosso criador, rapaz, e o criador do universo mesmo. Seja mais respeitoso com ele –me falou o Jobím
.-Se é por pedido seu, mestre, eu vou respeitar, mas, se for pelo que já ví e viví lá embaixo... se tuda aquela sacanágem é culpa dele, sinceramente, eu até estou achando que fui gentil demais.
-Não, não se engane, moço...
-O senhor tem certeza que esse cara é Deus? Eu, por mim, confesso, acho que não passa dum velho vagabundo. E com esse disfarçe. Se até parece carnavalesco...
-Não blasfeme.
-Não, mas, você viu como ele trata as almas que vem à sua presença? Ou não viu a forma dele me destratar? Afinal, se o que ele disse é verdade, e eu acabo de morrer, creio merecer um pouco mais de respeito. Já bastante tive de suportar em vida, entende?
-Os caminhos do senhor são inescrutáveis, meu filho.
-Sim, sim -ironizei. -Aliás, não sei de qué me surpreendo. É só ver o que ele faz com os vivos... por qué devía ser melhor com os mortos?
-Não se engane. É este um lugar em que tudo é formoso, perfeito e, sobre tudo, eterno.
-Será. Mas a formosura, a perfeição, e a eternidade são necessárias na terra, mas, eu bem sei que Deus nada se importa com aquilo.
-Não concordo. A mão dele se vê em tudo o que existe, em tudo o que acontece.
-É verdade –quase lhe gritei ao mestre, batendo na capa do piano. –Se o senhor tivesse visto...
-Eu também vi muito lá, menino.-... o último que eu assistí lá foi uma enorme destruição de vidas, de lugares onde a gente viver, e agora muitas pessoas morrem de fome, ou de enfermidades, desassistidas. E tudo em nome da liberdade. Ou pior ainda, em nome daquele sujeito que foi agora se trancar no banheiro.-Essas coisas, nemhuma dessas coisas que aconteceram na historia da humanidade são culpa dele. Não é ele quem faz
.-Ah, sim? –respondí. –Então que não venha depois a reclamar pelas coisas boas. Se ele não faz o mal, também não será responsável do bem, suponho...-Soar, soa justo, mas, não sei se seja verdade...
Sempre soube que o Jobím era um espíritu superior, e, mesmo irritado como eu estava, não deixava de admirá-lo. Também era um homem de fé. Perdão, quero dizer um´alma de fé.Nesse momento, a núvem dourada abriu-se e o velho aparecéu, abaixando o seu roupão, e veio ter com nós.
-E então Tom, agora ele entendeu ou não?
-Tou achando que não, infelizmente. É que o menino está zangado mesmo, não está? –respondeu Jobím, e eu assentía com a cabeça. -Então, não fica mais remedio... vou usar com ele o tratamento de rotina.
-O qué? –alcançei a perguntar.
Imediatamente toda aquela cena que me rodeava sumiu, fez-se oscuridade total, sentí que era absorvido por um turbilhão, e que começava a viajar a uma velocidade inconcebível, e, aos poucos, foi nascendo uma luz branca, que cresceu perante os meus olhos, a medida que eu me aproximava dela. De repente, a queda deteve-se e fiquei em frente daquela luz, na qual pude ver, num só instante, a minha vida passar, mas também como se as emoções e os sentimentos de cada experiência fossem revividas, revisitadas, enquanto ouvía uma voz, que reconhecí como pertencente ao velho do salão do piano, a falar:
-Lembras aquela ocasião na que pudeste ser generoso, e não, não foste capaz de soltar esse dinheiro que pôde salvar teu amigo da ruina? Lembras ou não?
-Sim –minha voz tremía
.-E esta mulher que esperava casar com você, e te esperou anos, jogando sua vida pela janela fora, e você sempre sabendo que jamás íam casar, e que mantiveste ao lado teu por simples conveniência? Lembras também?
-Também...A partir daí, um a um ví e reviví essa sucessão de fatos que por amor à brevidade eu chamo minha existência.
-Então, meu filho, cómo é que você se declara destas acões que acabas de rever? Mereces vir morar no Paraíso?
Compreendí que não era justamente o Éden o que minha biografía tería por recompensa, e, em verdade, o medo cedeu o lugar à irritacão, e já não pude mais me conter, sabendo que o inferno, ou coisa semelhante, me aguardava sem remedio.
-E então, você, se pretendía que eu me comportasse como um anjo, por qué me fizeste um homem? Pretendías que eu não tivesse cobiça? Pra qué, então puseste a fome no meu estômago, o frio na minha pele, por qué deixaste o meu coração se encher de desejos? Reclamas pureza, me castigas por aquela voluptuosidade...? E quem foi, então, que pendurou aqueles bonitos adornos que o meu corpo trazía entre as pernas? Com quais argumentos reclamas que não tenha sido perfeito? Me houvesses feito perfeito, então! Ou me fizeste imperfeito só pra depois me atormentar? É isso, não é? Um santo pedes? Um asceta? Por qué me fizeste humano, então? Eu tinha que pensar em comer, em sustentar esse corpo que me deste, em satisfazer desejos que TU puseste em mim, não outro, tu foste quem me obrigava a manté-lo, a cuidá-lo, a tentar reproduzí-lo, em nome do qual eu fiz as piores baixarías das que fui capaz, e, por outro lado, me castigas agora por eu ter sido materialista, e por ter tido desejos “carnais”. Por qué me fizeste de carne, então? Ah, o que acontece é que tu és perverso de verdade, perverso mesmo. Tu és mau, tu és a maldade... e esta criação tua é a mais grande merda que eu ja vi não só na vida, senão agora também na morte...
De repente, terá sido coisa de menos de um segundo, se forem válidos os tempos da terra para medir os aconteceres celestiáis, e a luz desapareceu, voltou aquele primeiro lugar, o piano, as núvens, o Jobím e o velho, quem agora não bebía senão que olhava pra mim mudo, estupefato. O Tom acariciava seu instrumento e fazía a segunda voz de “Inútil Paiságem”. O velho e eu ficamos assim, a olhar um pra o outro, ele, na atitude que ja descreví, e eu, tentando entender qué significava esse abrupto cambio de cena.Afinal, olhou pro Tom Jobím e lhe disse, ainda assombrado:
-O maestro tá ouvindo o mesmo que eu ouço, ou será que fiquei danado de vez?
-Não, não, tou ouvindo, e, suponho, é o mesmo que o senhor.
-É que já se viu ousadía semelhante?
-É que o moço ainda não viveu o suficiente –advogava por mim o mestre.
-Você também não tinha vivido o suficiente e este velho cafajeste o tirou do mundo e o trouxe pra cá –retorquí falando pro Jobím, mas olhando desafiante ao outro.
Nesse momento o velho fixou em mim uns olhos terríveis, a sua face vía-se corada pela raiva prestes a estourar. Ouviram-se no céu terriveis trovões, o chão tremeu, enquanto ele bradava:
-Fora!! Fora daquí! Não quero ver você por aquí nunca mais! Nunca, mas nunca, você porá os seus pés neste lugar. Nem sonhe com isso!! Sou eu quem diz.E quando eu digo nunca é mesmo isso: ¡¡Nunca!!
Com essa última palavra voltou a oscuridade, desta vez total, e o terror invadiu-me, já que de novo me sentía cair.
-Bom –tentava me resignar, mas o que sentía, eu não tenho palavras que possam descreverem, pois, vocês entenderão, era um espanto ultramundano -, agora sim que vou pro inferno mesmo.
E, com efeito, achava sinceramente que essa viagem ía acabar naquelas regiões que o Dante pintou de maneira admirável, mas não, eu me encontrei de novo no meu corpo, sofrendo dores horrendas, como câimbras, mas muito mais fortes, da cabeça à ponta dos pés. Porém, com vida.
Daquela experiência já passara longo, longuíssimo tempo, e inumeráveis vezes tenho me perguntado se não haverá sido um sonho apenas, um pesadelo. As dúvidas que tinha então, e que com tanta paixão expusera ao Senhor continúam morando no meu peito, agora, confesso, amenizadas pelo passo dos anos. Cada tanto, falo delas com alguma pessoa que se aproxima de mim pra conversar, embora vejo últimamente que estas são cada vez menos.E já que estou dizendo, vou dizer tudo: quase estou me arrependendo do que disse a Deus naquela ocasião.
Hoje em día, o cansaço tem tomado conta por completo do meu ser. Quisera ¡Pela glória e tudos os Céus! descansar. Mas ainda ressoa nos meus ouvidos aquele ¡¡Nunca!! derradeiro que o Criador me lançasse. Mais que nada, porque há um tempão tenho compreendido que era verdade, e que Ele cumple, invariavelmente, suas promessas...
A semana que vem, vou completar cento trinta e três anos.

Nenhum comentário: