Sign by Dealighted - Coupons and Deals

28 janeiro 2013

macarrao



Bechamel

(Alexandre Campinas, mote de Evaldo Magalhães e homenagem a Mari Kill)


Inusitado. No mínimo inusitado.


Já não se sabia se era sangue ou molho ao sugo o que escorria pela mesinha mínima e represava-se, com fettuccine e almôndegas, junto aos peitos da gordona ávida de massa. Olhando a cena, observando bem a cara de espanto da jovem vovó que tentava em vão franzir as sobrancelhas botulínicas, fiquei tentando imaginar o que ela pensava. Ela pensava ? O mundo quase literalmente desabou sobre seu Spoleto e imaginei que a gordinha dos peitos empapados de vermelho talvez pensasse: "Porra ! Servico fast-food do caralho, este... Que rapidez !"


‎"Mas eu pedi espaguete ao molho branco ! Molho branco, molho branco !" gritava a velhota, enquanto o ruborizado garçom tentava explicar-se "Mas... Isso nunca aconteceu antes...". A turma da faxina já iniciava a remoção dos dejetos e higienização do local. A Gestão de Crise do elegante shopping logo chegou com os tapumes de lisérgicos desenhos coloridos, sempre utilizados nesses casos, ao mesmo tempo em que o estagiário de comunicação espargia no ar uma contagiante fragrância de chocolate. A música de Wagner, inclemente, berrava dos auto-falantes da praça de alimentação, cumprindo sua notável função de desviar o foco das atenções, junto com a trupe de malabaristas, palhaços, engolidores de fogo e mágicos que entrava estrepitosamente no palácio dos manjares plásticos.








O SOR, Serviço de Orientação de Restaurantes, rapidamente levou a senhorinha para uma sala reservada. Um banco duro, ar-condicionado beirando o grau zero, e aquele inferno musical estuporando o cérebro da coroa: "Ai se eu te pego, ai, ai...". Dez minutos. Dez longos minutos foram suficientes para que o Getransi, gerente de transfiguração de informações, encontrasse a cliente em um lastimável estágio pentotalizante. "A senhora escolheu fettuccine com almôndegas, porra! Foi ou não foi, merda ?! Responda !", automaticamente, mas sem muita certeza, ela só dizia "Eu, eu, eu..."


Sinfrônio (este era o nome do Getransi de plantão naquele sábado) aproximou-se de Gardenália (por eliminação - que palavra !-, a velhinha) e aplicou-lhe um telefone daqueles de mesa antiga de telefonista cheia de plugs e "minutinho, por favor". "Desentope, velha ! Fettuccine com almôndegas, filha da puta !". "Eu, eu, eu..."


‎"Presta atenção. vovozinha, eu não vou repetir nem uma só palavra e guarde que, dependendo de sua reação, poderão ser as últimas que escutará na vida". Abriu a porta da geladeira infernal e um som de palmas compassadas invadiu a sala. Eram os devoradores de comida chinesa, mequidonaldis e alidarábia que acompanhavam o ritmo frenético da apresentação circense. "Tá ouvindo, desgraçada ?! Ninguém lembra mais de mesa, de corpo que cai, de sangue, de ´porra nenhuma ! Eles só têm a vaga lembrança de uma velha rabugenta e reclamona que enganou-se sobre o prato que pediu. E então ? Fettuccine com almôndegas ou..." A velada ameaça pairou como nuvem negra, pronta a soltar seus cristais de granizo. Gardenália: "Eu, eu, eu..."


‎"Tu não vale o prato de Spoleto que pediu ! Anda logo, que amanhã tem Galo e Coelho e eu tenho que comprar os ingressos na loja aí de fora. Não tenho mais tempo, porra ! Não vou perder este Barcelona e Real Madrid local por conta de uma escrota que imagina coisas"


‎"Eu, eu, eu..."


Foram as últimas palavras de Gardenália. Triste fim. Tudo por causa de um espaguete com molho branco... Ao por de pé a velhota na beira do alçapão que escondia o triturador de carne, ela ainda pode ver o crânio partido do rapaz que caíra em sua mesa, aquele mesmo que pedira um tamanho G na loja do andar superior e recebeu um M enquanto estava na cabine de provas. Ele, que insistira tanto no erro da vendedora. "Eu, eu, eu..."


Um pontapé na bunda foi suficiente. Rosctrofeistragofiepumba. Do outro lado da máquina, saíam as almôndegas prontas e embaladas. "Eu, eu, eu é o caralho !", dizia Sinfrônio entre gargalhadas, tentando limpar a mancha espermática de seu uniforme tipo safári, cáqui. Foi ao banheiro, passou pelo pote suspenso de álcool gel, borrifou as mãos, espargiu umas gotas de água aqui e ali sobre as calças e saiu daquele lugar com um sorriso diabolicamente satisfeito nos lábios. Voltou para sua sala de observação. Na mesa, meticulosamente organizada, um bilhete:


‎"Eu sei tudo". Mariana M.

Nenhum comentário: