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18 maio 2008

Como é bom ser doutor
nesta terra!


SEBASTIÃO NUNES


Meu vizinho da frente, muito abusado, estava me enchendo a paciência. Todo dia cantava o hino do Galo (ou do Cruzeiro, não lembro direito), no maior entusiasmo. E ainda ficava fazendo piadinhas contra o Cruzeiro (ou o Galo, não sei mais).

Como torcedor do América eu não deveria me incomodar, nossa torcida é gente fina e cabemos todos numa Kombi, como dizem os linguarudos. Cabemos nada. Tem jogo em que passamos de 999 pagantes, só não gostamos de barulho. Somos torcedores, mas não somos fanáticos.

Além do mais, entre nós existe gente importante, tipo Plínio Arantes, grande advogado; Fernando Brant, compositor finíssimo; tem até ministro, taí o Luiz Dulci que não me deixa mentir. E muitos outros da maior importância, que não vou citar pra não pensarem que estou enchendo lingüiça ou puxando saco. Aprendi a gostar do América com meu pai Levi, que também era americano, só que torcia pelo América do Rio, alguém aí tá lembrado? De vez em quando ressuscita, joga um campeonato, perde de quatro, cinco, oito, e volta pro seu canto, até ressuscitar de novo.

Time que é time não morre, quero dizer, quase nunca morre. Mas que alguns vivem agonizando, ah, isso vivem. E mais não digo pra não ofender ninguém.

DESGRAÇA POUCA É BOBAGEM. Como ia dizendo, meu vizinho da frente cantava e fazia piada o dia inteiro. Não me atingia, claro. Sou educado, torço calado no meu canto, mas um dia endoidei. E quando fico doido ninguém me segura, mas não segura mesmo. Viro bicho. No dia que endoidei, peguei um pedaço de pau e dei uma porretada arretada no portão do vizinho, que estava na maior cantoria.

Ele botou a cabeça na janela, ficou me olhando meio zarolho, e perguntou: - Que foi, companheiro? Tá querendo arrebentar meu portão? Dei outra porretada arretada, bem debaixo do nariz dele, e desafiei: - Que portão, que nada, cara! Eu quero arrebentar é sua cabeça. Pula cá pra fora se você é macho!

Ai, meu Jesus Cristinho - e não é que o homem fechou ainda mais a cara, armou uma carranca, pegou uma faca na cozinha e desceu mesmo? E já desceu gritando: - Pois então vai arrebentar e é agora. E se não arrebentar eu te sangro que nem porco, igual fazia na roça.

COMEÇOU, TEM DE ACABAR. Fazer o quê, né? Franzino e fracote como sou, enfrentar aquele gigante, ainda mais de faca na mão? Não teve jeito. Levantei o porrete e - pum! Afundei a cabeça dele, que caiu sem um gemido, tremendo feito galinha degolada. De repente, apareceu aos berros a mulher, mais doida que eu, e já veio querendo arranhar minha cara, com as unhas pontudas e vermelhas. Se não fico esperto, estava agora todo riscado. Mas aí pensei que bater de pau em mulher é feio, não é coisa de gente educada.

Então peguei a faca do vizinho no chão e espetei na barriga dela. Aí ela parou de gritar, botou a mão na barriga, ficou me olhando calada e eu reparando na barrigona, que subia e descia como sapo resfolegando. Então apareceram uns fiozinhos de sangue entre os dedos, ela ficou amarela e as pernas amoleceram. Foi quando escorregou encostada no muro e caiu sentada, me olhando sem ver, passando a língua nos beiços brancos.

Também começou a tremer e a soluçar baixinho. Aí apareceu a mãe dela, uma velha balofa e ensebada, que saiu no portão sem saber de nada, assustada com a gritaria. Quando viu o genro de cabeça quebrada e a filha nas últimas, quis voltar pra dentro e chamar a polícia, só podia ser pra telefonar e chamar a polícia. Dei tempo? Dei nada. Corri atrás dela, passei uma rasteira na velha que caiu de boca no cimento da escada. Fiquei na dúvida se acabava com ela também - e é nisso que dá ficar na dúvida. Foi parar pra pensar e logo fui agarrado por uma montoeira de mãos. Eram os vizinhos xeretas que tinham visto tudo e vinham separar a briga.

QUEM PODE, PODE. Me esfregaram no cimento, arranharam minha cara toda, me deram soco em tudo quanto é lugar e, quando fiquei meio bobo, assim meio desmaiado, me amarraram com as mãos nas costas, como se eu fosse marginal da pior espécie. Logo eu, um sujeito sossegado, que gosto de assobiar e chupar cana, de ficar na minha, logo eu. Quando dei fé, estava na delegacia, sentado num banquinho tosco, os vizinhos me olhando de banda, cada um com a cara pior que o outro.

Mas ninguém dizia nada, só olhava. E era com ódio que olhavam, como se a culpa fosse minha. Com medo, eu? Nem aí pra essa corja de atleticanos e cruzeirenses. Tirei um cigarro do bolso, botei na boca, peguei o isqueiro - e um guarda deu um tapa na minha mão, jogando isqueiro e cigarro longe: - Mais respeito aí, cara! Tu não tá na tua casa, não! Ah, pra quê? Foi então que soltei os cachorros em cima dos infelizes: - Tão pensando o quê, seus babacas? Sou bacharel formado em direito, tenho diploma, entendo de leis, tão sabendo?

Estudei cinco anos, aprendi tudo, dou nó em pingo d’água, prendo saci em garrafa e pego rodamoinho com peneira! Mais que depressa o guarda tirou o boné, o chapéu, sei lá como se chama. A vizinhança se afastou, todo mundo encostou a bunda na parede, de boca aberta. Foi quando a porta se abriu e apareceu, todo sorridente, o delegado: - Então, colega? Estão te desconhecendo, não é mesmo?

Bons tempos aqueles de Santo Antônio das Abobrinhas e da faculdade de direito! Dá uma saudade... Vai um cigarrinho? Deixa essa turma pra lá, vamos tomar um café. Temos muito que conversar. Como deu flagrante, você vai ficar preso uns dias, mais pra despistar. Mas não se preocupe.

É cela especial, com TV, cama boa, o que precisar. E pode ligar pra um bom criminalista da minha sala. Mas fica frio. Isso não dá nada, é só fogo de palha. Me passou o braço no ombro e fomos rindo e conversando pra sala dele. Sentei, acendi o cigarro, provei o café - sim, senhor, nada como ser doutor nesta terra!

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