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22 abril 2008

Úteros de Carpete
(Kinho Vaz)



O dia nasce nos golpes sucessivos do badalo. Um som
que se entranha pelos poros estimulando uma leve
consciência. Os olhos permanecem fechados. O corpo
entorpecido pelo resto de sono. As juntas resistem
a qualquer movimento. Reclamam. Têm vozes
que berram na mente um grito de socorro.
Fazem muito barulho. Os ouvidos despertam.
Apuram o mundo. Sintonizam canais em
busca de um som. Reconhecem o sino do mosteiro.
Que bate firme. Que bate fundo. Que bate
estaca. Crava na percepção o limiar da realidade.
Anuncia o tempo em seu ritmo imperativo.
Os olhos se opõem. Reagem. Apertam
as pálpebras. Entrelaçam os cílios como
uma rede de proteção. Última linha de defesa.
Pronta para impedir que nada saia, que nada entre.
Barreira do limbo. O corpo
todo se esforça para reabrir o portal dos
sonhos. Submergir novamente na paz oceânica.
Se entregar à sensação do abandono pleno.
Vagar no vácuo. Ignorar a vida. Mas é tarde.
Não há caminho de volta.


As buzinas já avisam que o sinal abriu. Os motores
já começam a arrotar os soberbos desjejuns.
Os passos apressados surgem como ecos.
Pisam com estrondo num chão que parece
metálico. Propagam o aviso do seu
caminhar em ondas que se multiplicam.
Que se espalham como notícia ruim. É a
horda dos aceitos que chega,
caminhando a sua indiferença. Trazem também
as vozes. Não esta. As outras, que falam de tudo.
Que sorriem. Que xingam. Que cantam.
Que aumentam e diminuem. Que profanam a
vida latente no útero de carpete.
Chegam disparando o sinal de alerta.
Deixam o espírito em estado de vigília. Fazem a
razão se espalhar em picadas miúdas e doloridas.
Surreais como uma chuva de alfinetes.
Fustigam o corpo até que vem um tremor
mais forte. Esse, provocado pelas portas do
comércio subindo com seus disparos de
metralhadora. São as matracas que anunciam
o ritual da purificação.
O momento da maquiagem que disfarça
a cicatriz. Do curativo inútil na
ferida gangrenada.


É o instante que introduz os sons da
desfaçatez. Do barulho da água lançada ao
calçamento. Do chiado agudo das vassouras
esfregando o assoalho do purgatório.
Compondo com o sino do mosteiro o arranjo
de uma ópera-bufa. Uma peça de
paródia, onde baianas sem máculas lavam
as escadarias do templo usando cântaros
de creolina. O cheiro forte invade as
narinas. Queima os pulmões.
Faz os olhos chorarem sem querer,
vertendo privações. A língua pastosa descola do
céu da boca. Desperta insossa e ressecada.
Incapaz de decifrar o sal da lágrima.
O estômago pesa sua inatividade.
Pondera a possibilidade do alimento.
Lembra a urgência da fome. Está tão
contorcido e vazio quanto o saco plástico
que ontem continha a cola de sapateiro.
A química de onde se aspira instantes de paz.
Momentos de ternura com lares, leitos e
leite quente ao deitar. Tudo que
não é real. Nada que se faça tão presente
como o cutucão do cabo da vassoura.
Cócegas nas costelas. Nem tão alto
como o grito de “tá na hora!”.
Beijo de bom dia.


O primeiro pontapé é recebido como
um carinho. Confundido com o delírio do
sonho. Pensa ser a mãe que nunca existiu,
chamando para a escola que nunca
houve. O segundo chute vem mais forte.
Não deixa dúvidas de quem está chamando.
Nesse ponto a vassoura muda de função.
Assume o papel de fórceps. Busca
uma brecha na cápsula de trapo. Vasculha
o interior do casulo como um instrumento de
curetagem. E com precisão cirúrgica se transforma
num tridente. Símbolo do mal.
Começa a atiçar a carne com suas fibras
de piaçaba. Provoca mais dor. É mais um motivo
para acordar. Para desinfetar dali. Para abortar
a tentativa de fugir à realidade.
Para continuar sobrevivendo.

Então se dá a revelação. O mistério da vida
gerada nas ruas. O instante sagrado onde os mundos
se tocam. O útero de carpete se rompe. Dá à luz
o improvável. Expulsa do seu interior um
pequeno ser. Quase humano.
Que apanhou e chorou para nascer. Como
toda gente. Mas que não terá colo, nem seio,
nem berço.

Nem a promessa de voltar a nascer amanhã.



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