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09 janeiro 2008

O jornalista e escritor Evaldo Magal
em uma homenagem autoral a...

Nélson Rodrigues



O AVIADOR
(Evaldo Magal)


Bruno tinha os cabelos vastos e grisalhos, um rosto de ângulos retos que não deixava dúvidas quanto à sua masculinidade, conjuntos quase simétricos de rugas nos cantos opostos da boca que sugeriam alguns milhares de sorrisos acumulados ao longo das mais de quatro décadas de vida – embora, até por falta de estímulo, ele não fosse muito dado a esse hábito – e o porte típico de um coroa-jogador-de-peteca-cinco-vezes-por-semana: barriga musculosa e pele cor de jambo.

Aos domingos, no clube, quando não estava na quadra exalando o uisquinho moderado do sábado, jamais dispensava, ao desfilar entre as mesas à beira da piscina, nas quais distribuía saudações aos muitos amigos, o acompanhamento dos óculos de grife de lentes fumê.

Talvez os usasse para passar a impressão, sobretudo às mulheres de meia idade que freqüentavam o local, muitas delas casadas, de que poderia muito bem ser um experiente, viajado e instigante piloto de Boeing em férias em Belo Horizonte, em vez de um não tão bem-sucedido corretor de imóveis nativo, um estulto provinciano que jamais havia ido muito além de São Paulo, ao sul, ou da Bahia, ao nordeste. E sempre de carro, já que morria de medo de aviões.

Talvez os usasse apenas para olhar, sem precisar dar satisfações a quem quer que seja, o que realmente queria ver.

Ele era o tipo que jamais revelava o que sentia ou pensava, particularmente quando isso pudesse colocá-lo em apuros. E o que sentia e pensava, quando mirava as bundas duras por horas e horas de aeróbica ou hidroginástica ou mesmo as mais flácidas, mas apetitosas, das esposas e amigas dos amigos ou das desconhecidas, estendidas nas imediações da piscina, não merecia mesmo ser revelado; ele só queria fodê-las.

“Eu chupava essa. Olha só... puta que o pariu...”, “Ah, essa aí eu rasgava em duas...”, “Putz, eu me lambuzava naquela...” eram frases que comumente lhe ocorriam, nesses momentos, apesar de nunca pronunciá-las

E Bruno atingia, vez ou outra, seus objetivos inconfessáveis.

Naquele domingo no clube, conseguiu levar para debaixo de uma das três grandes amendoeiras dos fundos do terreno, perto da pista de atletismo, a amada e aparentemente fidelíssima mulher do Caldeira, colega da imobiliária. Francilene, uma morena alta e vistosa de seios fartos e idéias curtas, que, a despeito dos 48 anos, ostentava um traseiro de dar inveja ao de muitas meninotas, cedera com facilidade aos encantos do aviador de mentira.

Tudo começou em uma roda de carteado, no bar da piscina das plataformas de mergulho, o mais disputado pelos sócios antigos. Entre uma batida e outra, as do jogo de canastra e as de pêssego e maracujá, das quais Francilene se dava ao luxo de abusar – nos fins de semana ela bebia excessivamente como boa bipolar alcoólatra que era –, Bruno aproveitou para roçar o pé descalço na perna macia, a despeito de algumas manchas de micro-varizes, da então apelidada “mulherona do Caldeira”, sua parceira no jogo.

– Você bate pra mim ou eu tenho que bater? – ele cochichou, acreditando que a frase seria sutil o suficiente para plantar nela uma sementinha de tesão.

– Bato com prazer. E engulo tudo. – Francilene respondeu, direta, incisiva, sensual, mordendo os lábios, sem esconder o pilequinho, mas ciente de que Juvenal e Estela, a dupla de idosos oponente, não haviam escutado.

– Então bate agora, bate!

– Tá. Você é o mestre. Eu faço tudo, é só mandar. – ela disse, colocando, literalmente, as cartas na mesa.

Os dois nem esperaram a contagem dos pontos, tarefa que Juvenal, depois de esfregar as mãos, confiante na vitória folgada, se preparava para por em prática. Deixaram a mesa correndo, um para cada lado, simulando aperto para ir ao banheiro ou alguma outra urgência.

O local do encontro fora definido por Bruno pouco antes. Ele apontara para o símbolo de paus da carta três e depois dissera, casualmente, que gostaria de se dedicar mais às corridas na pista emborrachada do clube, para manter a forma. Francilene, que não era muito esperta, entendeu imediatamente o recado, o que deixou em Bruno a sensação de que, ao contrário do que se diz por aí, o álcool pode aguçar a mente, em vez de embotá-la.

Enquanto Caldeira nadava seus dois mil metros habituais, em um estilo classificado como “cachorrinho-doente-livre” pelos falsos amigos, que riam dele e de seu patético exercício, todos os domingos, na piscina maior do clube, Bruno fodia Francilene gloriosamente atrás de uma das amendoeiras, estrategicamente localizada em um dos raros pontos cegos da plana vastidão do clube.

A menos de 100 metros de onde o marido se esforçava para manter a forma, pensando justamente na esposa e na possibilidade de ela querer trocá-lo por alguém mais esbelto, Francilene dava urros de prazer a cada estocada na bunda. Bruno se confundia: não sabia se tampava a boca da mulher ou se concentrava sua atenção integralmente no entra-e-sai. Mas isso não diminuía seu ímpeto. O gozo foi caudaloso.

Francilene, com as pernas bambas, reuniu forças e deu um passo à frente para desenganchar-se. Lépida para uma mulher de 50 anos, virou-se e se agachou para sorver, com voracidade, as últimas golfadas de Bruno, antes que ele dissesse algo como “você é louca, você é doida” e a erguesse para o imperioso abraço pós-coito.

– Temos que fazer isso mais vezes, meu anjo. – Ele não queria fazer aquilo de novo. Ela era só mais um troféu na sua não tão extensa galeria. Mas a compulsão de dizer coisas assim em momentos como aquele era irrefreável.

– Eu quero muito, meu lindo! Eu te desejo desde a primeira vez que te vi – ela respondeu, docemente, com os olhos brilhando para o “piloto” de cabelos grisalhos e porte atlético que imaginava ter acabado de satisfazer.

– Agora, vai, anda, que o Caldeira deve estar te procurando. Vai, minha gostosa.

Com ar vencedor, Bruno deu um tapinha na bunda maculada de Francilene, que acabara de abotoar o maiô estampado com rosas, e seguiu em sentido oposto, amarrando a sunga, de volta à piscina dos mergulhos.

Caminhou em direção ao bar com a certeza de que o mundo era um lugar bacana, mesmo que ele não fosse um aviador, como se imaginava ao circular com os óculos escuros de marca. E que as mulheres, afinal, ainda caíam a seus pés, aos 46 anos, graças à estampa de atleta corado e de homem capaz e preocupado com o destino de centenas de passageiros, a cada vôo. E que, embora ainda subsistisse o sonho distante de ser rico e, quem sabe, ter filhos, uma boa esposa, uma fazenda gigante de gado em Goiás ou Mato Grosso e, finalmente, um avião que pudesse conduzir com maestria até lá, nos fins de semana, havia boas coisas a desfrutar em sua vidinha por vezes insípida.

- E então? Rola uma petequinha, amigo? – Era Caldeira, que, botando os bofes para fora, ladeava a mesa onde Juvenal e Estela discutiam sobre a pontuação da canastra encerrada minutos antes. Caldeira, provavelmente, acabara de perguntar aos idosos onde estaria sua deusa Francilene e ouvira de um deles que ela, aparentemente, havia ido ao banheiro. O amigo traído se enxugava com uma toalha felpuda e alva como a certeza da fidelidade e, embora cansado, sorria como se tivesse acabado de nadar dois mil metros em um mar de rosas.

- Não. Você não dá conta, Caldeira. Nadou muito hoje. Na sua idade, não é bom facilitar as coisas. Você tá muito caído, meu velho – disse Bruno, que costumava associar os prazeres a pequenas humilhações dirigidas a quem, direta ou indiretamente, os havia proporcionado.

- Pois eu dou no couro, amigão. Garanto que venço você agora. Três a zero, valendo um uísque 30 anos. Topa? – Caldeira reagiu.

– A grana é sua. Vamos.

Bruno não fez corpo mole. Pelo contrário. “Enrabei sua mulher literalmente e, agora, vou foder você, figuradamente”, ele pensava. A cada saque, exigia de Caldeira mais do que um garotão de 18 anos pudesse dar. Dava tapas na peteca com efeitos inacreditáveis, jogava-a em espaços impossíveis, pulava a alturas inimagináveis para cravá-la no rosto do colega de trabalho, que, ofegante e atordoado pelo empenho absurdo do adversário, não conseguia desviar as cortadas.

Perto de completar o último ponto, Bruno observou que Caldeira arfava mais que o normal, mesmo para um sujeito de 54 anos, barrigudo e bebedor inveterado de uísque. A vermelhidão do rosto dele saltava aos olhos, a 15 metros de distância, e certamente nada tinha a ver com o bronzeado ou com as petecadas que levara.

– Caldeira, você tá legal? – Bruno gritou.

- Eu...

Caldeira caiu com a velocidade de um saco de batatas solto propositalmente, longe do caminhão, por um estivador irritado com a excruciante jornada de trabalho. Produziu um barulho choco, mas audível e de provocar arrepios a quem o escutasse, no cimento pintado de verde, provavelmente advindo da fratura do nariz ou do maxilar. Duas meninas que acompanhavam o jogo soltaram urros histéricos, antevendo o que se seguiria. Bruno correu em direção ao corpo estatelado de Caldeira e constatou, enquanto se aproximava, que ele não mais arquejava.

- Puta que o pariu! – ele disse, olhando em seguida para os lados e, para aumentar seu desespero, identificando Francilene, em pé, em frente ao bar, transparecendo no rosto um inegável quê de congratulações, de admiração e até de tesão pelo que ele, supostamente de forma dolosa, havia acabado de fazer.

- Francilene !

Ela correu para os dois corpos, o do amante, vigoroso, e o do marido, esparramado no chão.

- Deixa que eu cuido de tudo, meu lindo. – ela sussurrou no ouvido de Bruno. Deu-lhe um beijo molhado e uma inesperada lambida na bochecha, antes de começar a chorar exageradamente e quedar-se sobre o defunto, dirigindo imprecações aos céus.

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