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15 dezembro 2015

PAPAI II

Papai II
(Alexandre Campinas)


"A maior riqueza do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado..."
(Manoel de Barros)

Papai acordava cedo.  Não tão cedo quanto os que acordam muito cedo, porém cedo. No horário de verão, cedo como a escuridão e o silêncio da madrugada, a ponto de  - eu vi algumas vezes – acordar mais cedo do que o necessário para ter tempo de observar a Estrela D´Alva, Vênus, eventualmente em perfeito alinhamento cm Marte e Júpiter. Ele meditava. Talvez pensasse em si e nos seus (era o que eu imaginava) ou no mundo e seus problemas tão humanos e práticos (isso também) ou mergulhar na contemplação de um céu eterno, com Deus (idem), olhando incansavelmente aquilo de que com veneração absoluta dizia: “O que foi, o que é e o que para sempre será”. Acho que gostava daquela rotina entediante: acordar, ver, orar, fumar dois ou três cigarros, levar suas tralhas para dentro, junto com os sapatos que punha ao pé da porta. Tomar banho, calçar-se para sair. Benzer-se e abençoar a família. Aí, era o dia. Era o sol. Campo aberto de lutas.


Só voltava depois das três da tarde. Pés inchados, coluna permanentemente enguiçada. Não reclamava, mas dizia que a vida era dura e que mais duro do que a vida era o trabalho. Tinha fé. Apenas comentava que não era fácil conviver com tantos animais diferentes, saber-lhes os nomes e hábitos e, até mesmo, afeiçoar-se a cada um deles. “Eles são o nosso sustento e este trabalho também me sustenta: a mim e aos meus sonhos de futuro”.


Qual futuro se assim corriam os dias, meses e todos os anos da minha infância ? Vendo papai sair e voltar para suas contas, broncas e livros passei a adolescência e o início da minha vida adulta. Tive filho também, entretanto nunca – até o dia de hoje – havia conseguido entender como é que, na dureza e na rotina, um homem mata seus sonhos dizendo, paradoxalmente, que só assim conseguia alimentá-los cada vez mais.


Hoje, finalmente, entendi. Depois das três, papai não voltou. Fui, então, ao seu encontro. Primeiro, observei de longe. Braços abertos como um ungido crucificado. Dorido de cravos e madeiro. Cheguei mais perto. Apesar da ausência de vida (a alma já não estava mais ali), papai mantinha aquele rosto iluminado, sublimado e eterno. Não se mexia, é claro, em seu ofício congelado de tempos e gestos. Seus pés, enterrados naquele chão de suor.



Restavam, apenas, o sorriso, o sonho e a esperança. Esta última, real e palpável naqueles pequenos brotos que já surgiam nas canelas ressequidas do velho espantalho.



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