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23 julho 2011

Ilha
(Alexandre Campinas)


“O que amas de verdade não te será arrancado
O que amas de verdade é tua herança verdadeira”
(Ezra Pound)


Cartinha pros ilhéus:

É o que se repete amiúde: Nenhum homem é uma ilha. Eu, contrariando o velho axioma, digo que sou. Sempre fui Ilha. Pertenço à Ilha, que é gênese. Segundos antes da criação de céus e terra: a Ilha.


Atrevo-me, mesmo, a desdizer “As Origens” e gritar que Não ! Não havia terra informe e vazia sob as trevas. Havia a Ilha – e eu nela. Daí vieram o Fiat Lux, o firmamento entre as águas, o elemento árido, as plantas (todas as da Ilha: de jaca, de fruta-pão, de tamarindo, de amêndoa e de muitas, muitas mangas).


Da Ilha nasceram os luzeiros: o sol abrasador - que torna as águas tépidas -, as infinitas estrelas (e, talvez, os aviões rumo ao pouso noturno) e uma lua incomensurável, amarelo-avermelhada, indescritível para quem nunca viu. E quando o Criador, no quinto dia, lembrou-se de seres marinhos que pululassem as águas, é certo que pensava em siris graúdos e azuis, camarões habitantes das algas que se misturam nas espumas das marolas, mexilhões, cocorocas ronronantes e carapicús prateados, entretanto a Escritura menciona também os monstros marinhos, a saber (quem pesca, entende): bagres traiçoeiros de perversos aguilhões, peixes-voadores, ouriços, baiacús e marias-da-toca.


Também criou pássaros, como os bem-te-vis, gaivotas, fragatas. Canoros ou não, todos adoráveis. O Texto esquece-se, porém, de outra espécie voadora. A cigarra deve ter sido dada à luz também no quinto dia, pois está lá, na Ilha, para quem sempre espera um dia seguinte de pleno sol. Depois veio toda sorte de animal. Cachorros às pencas, cavalos e suas charretes, gatos indolentes e uma infinidade de morcegos.


Por fim, no sexto dia, viemos. Animais outros, à imagem e semelhança do Divino. Criados a fim de reinar sobre tudo, e, para Divino desencargo, arrojar corpos nas areias noturnas da praia da Imbuca e multiplicar (ou não), fornicando até as primeiras luzes da aurora, exalando contagiantes odores acres, ralando joelhos. Aliás, sobre os joelhos, paira-me um quê de dúvida sobre a justiça do descanso do sétimo dia. Mas, tudo bem, depois o homem inventou o mercurocromo.


Agarro-me a esse universo mitológico, tão próprio, no momento em que soa a sirene da estação anunciando o fechamento dos portões e a barca range, lotada, contra o cais flutuante, soando três apitos. Sentado na boca aberta da proa, olhos marejados, ouço o ronco cansado da casa de máquinas. Sinto-o vibrando como vibra em mim a saudade antecipada de quem veio passar apenas um dia na Ilha, depois de tantos verões e férias inteiras que pareciam eternas enquanto duravam (perdoe, poeta, não resisti). Afastam-se o cais, a igreja, a orla já acesa, o cheiro dos quitutes da baiana.


Atualmente é assim. Venho, deixo o dia e levo os sonhos. As horas fluem pelas pedaladas da bicicleta alugada. Desejo de rever tudo, onipresente, circulando sobre, dentro, através de mim mesmo, também eu feito daquele saibro das ruas da Ilha. É fome extraordinária que domina. Praia da Guarda, Lido, Ponte dos Suspiros, praia da Moreninha e lágrimas índias, ilha de Brocoió, mercadinho, Tomaz Cerqueira e seu castelinho, que nunca saiu da memória. Campo. São Roque, praia dos Coqueiros dos primeiros poemas noturnos, Praia do Boqueirão. Sigo, contorno, desço, peço benção à Maria-gorda, escrava plantada em sofrimento. A cãibra repuxa, não ligo.


Caramanchão, charretes, Hotel Flamboyant (como chamá-lo de outra forma?). Casa da Moreninha, Iate Clube de mergulhos inesquecíveis. Depois do Porto dos Cachorros, sento no banquinho de pedra e olho a vizinha ilha dos Lobos. Circula na família a história de que meu avô quase a comprou um dia (e nós sempre sonhamos com isso). Subo pela rua da delegacia até o cemitério. De gentes e passarinhos. Ali aprendi que ler sob as sombras das árvores, recostado em algum túmulo era uma forma de mergulhar em mim mesmo, vinculando-me radicalmente ao universal, no paradoxo mais delicioso que existe. Ou então, menos cultural (diriam), mas não menos gozoso, esperar escondido naquele lugar, disfarçado de alma-penada, pelo fim dos bailes de carnaval e a passagem dos foliões que ao ver tal assombro, esqueciam o estado estafante - overdose de marchas-rancho - em que se encontravam, para disparar de medo e susto.


Agora é descida até a praia. Os pés espantam peixinhos miúdos e rebatizo corpo e alma nas águas da Ilha. Mais pedal, tempo de retorno, já são horas. Rememoro o dia que passou e dispo-me do adolescente (nunca o faço verdadeiramente; finjo).


Dói o revés das máquinas que tramam o rodopio que levará ao caminho único da Praça Quinze. Na volta que dá sobre si mesma, a barca exibe a Serra dos Órgãos, Dedo de Deus, Verruga do Padre. Corro à popa. Uma lágrima contribui com o mar salgado do Pessoa que invade essa baía. A água, ao largo, tem a cor da garapa; junto à espuma dos motores, mate espumante. Bebo disso tudo. Revigoro-me pensando que nada é para sempre e, por um momento, volto a ser a criança que, na despedida, já esperava as férias seguintes. Nunca houve adeus; um eterno até breve.


A barca contorna a Ilha. O cais da Mesbla... Dali não se podia mergulhar para fora. Rezava a lenda que além do deck existiam fogões jogados no mar e outros lixos e, ademais, monstros marinhos. Respeitosos ao dogma, mergulhávamos para dentro, em direção a praia, na enorme piscina formada pelo quebra-mar. Passo pela Praça do Lixo lamentando tudo o que não revi dessa vez e então, botos debochados corcoveiam, despedindo-se das caras tristes que se vão para a Babilônia como degredados do paraíso.


Mais água, muito mais saudade. O pescoço vira-se, entorta para ver a ponta do Parque. Do outro lado a Pedra do Raio, a ilha da Luz del Fuego, Ponte Rio-Niterói. Um avião de rabo laranja traz o presente (antes os rabos eram apenas azuis). A Ilha fica para trás, estando sempre dentro.


Ilha, querida, não lhe pronuncio o nome. De tão infinita, é entidade maior que nos absorve a todos. Maior do que sou, maior do que vô e vó que originaram a paixão, do que primos e primas, irmão, mãe, tio e tia que lhe vivemos.


Volto no ano que vem.


Prometo.

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