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27 abril 2009

PRIMÓRDIA
(Alexandre Campinas)

À Josana

Ao Infierno do Denner Campolina


A cerâmica tem aquela cor ferruginosa,

pardacenta... É como se o fogo queimasse a cor

da cerâmica, guardando-a no interior da peça. É

o olhar que deve descobrir e revelar as cores.”

(Francisco Brennand)



Era repugnante ver todas aquelas partes espalhadas, desordenadamente, sobre o asfalto. Com o mergulho, as leis da física cobraram veredito e, de forma nenhuma o resultado poderia ser contrário. O que se viu foi um espatifamento extraordinariamente vermelho, pintalgado aqui e acolá por tecidos esporadicamente brancos.


O cara tinha miolos...


O impacto fez os órgãos explodirem e projetarem-se para fora daquele sofrido corpo, Cavalo de Tróia de seus sonhos, forçando os tecidos musculares e a pele a romperem-se como aqueles plásticos de bolotinhas de ar, que embalam coisas frágeis e que todos gostam de estourar, como passatempo.


Não fazia mal. A peneira do asfalto reteve o corpo, mas ele penetrou fundo os insondáveis mistérios da terra. Ela o chamou. Ainda ouvia populares questionando se suicídio ou crime terrível, entretanto o alarido foi ficando cada vez mais para trás, junto com o corpo que chegou ao solo de cabeça. A boca apontando para o chão num beijo de dentes pulverizados. Apesar do pouco gozo do mergulho (ele pensara que demoraria bem mais), a libertação de toda aquela carne corrompida foi-lhe extremamente saudável. Qual suicídio nada. Qual crânio rachado os cacetes ! Mergulhou para voltar ao fundo da terra que sempre foi meio invertida dentro da sua liturgia: o alto do céu.


A cabeça já fora rachada muitos anos antes quando ele simplesmente estoporou no fogo do sol na viagem desde a região da seca em que vivia. Rachou. Como pedra atingida por raio. Viveu toda a vida com aquele talho profundo que ocultava sob o chapéu. Ia da fronte à nuca. Só descobria à noite para pegar ar e as cores que ele acumulava em si. As soturnas cores do mundo.


Claro que, por tamanho rombo, muito mais entrava e saía. Durante a noite ele dava a descarga naquela privada de carne que habitava, de forma que, desimpedida a fresta, novamente pudesse entrar a vida por ali. Lá pela madrugada, acordava suavemente e, cheio de idéias, punha seu chapéu, terno preto e camisa de colarinho alto e saía pelas ruas vazias, coloridas de sonhos e plenas de som calado – que ele ouvia – e que antes, durante o dia dos normais eram muito embaçadas e cheias de nada (ele não era normal como todos. Era mais normal. Supranormal). Ele ia assim, pardo e nada, cheio de santos e rezas.


Na primeira mulher, educado e cheio de mesuras, retirava o Fedora curto, de feltro bege como argila. Tarde para ela, que era impiedosamente varada por aquele ímpeto santo, que nascia do baixio dos infernos e apontava o paraíso celestial. Mais uma santa que habitaria seu altar. Penetrava-lhe a carne e fazia gozar a alma na violência cariciosa do emplastramento uterino pelo esperma redentor. Era a demácula original. A mãe do mundo, finalmente purificada, era ungida nos santos óleos da verdade. Todas as cores do mundo, então, assomavam-se àquele novo ser que amanheceria espectral e, para sempre, fingir-se-ia noite durante o dia para viver o dia na noite.


Ao primeiro sol, a mulher, de espírito fertilizado, tinha estuporava a cabeça também. Os olhos passavam a ver o que ele via. Assim o enviado reproduzia-se. Espargia identidades não-hipócritas, repovoando mundo. Os hipócritas emprenhavam papéis higiênicos com todos os espermatozóides do mundo e, matavam, aos poucos, os semelhantes que jamais haveriam de ter a chance de estuporar. As hipócritas, emprenhavam-se de chuveirinhos tépidos, as mais afoitas lavavam seus óvulos como se isso fosse suficiente. Ele sabia que não. Daí a urgência da violência do ato.


Sentia-se, então, um cruzado medievo ou cangaceiro signático ou mouro reagente que moldava carne no barro sob a ordem que se lhe vinha de cima. E de baixo. Carregando estandartes rubros e azuis. Um oleiro que cozinhava as peças no fogo que peca (enchendo-as de vida que só outros estuporados veriam) necessário e urgente. Após, a remissão viria pela visagem da luz exterior ao forno, num resfriamento rápido que dá dureza e firmeza de caráter, em contraposição à maleabilidade social.


As santas que ascendiam (descendo rapidamente terra adentro), antes seduziam e rachavam cabeças masculinas, pois o fulgor da manhã não era suficiente para a estuporação das cabeças desses. Muito duras. À força de machados, os atraídos por seus cantos eram devidamente rachados. Qual cera, nada. Qual mastro, porra nenhuma !


Viveu mendigo e miserável para todos (os que nunca viram sua caixa craniana tão receptiva, emitiva e rachada), porém, sempre cumprindo a determinação do altíssimo e do baixíssimo. Criando deusas e essas criando deuses.


Fervor.


Noite dessas, ouviu sua redenção chamando-o. A missão, finalmente, fora cumprida. Subiu pelas escadas ainda em construção de todos os 148 patamares do espetacular prédio construído pela hipocrisia (os dois últimos que, logicamente, arredondavam a conta, eram de um templo pentecostal e nesses não precisava entrar, pois seguindo a ordem da pontacabeça geral, sabia-os alocados radicalmente no inferno, sem a mínima possibilidade de viver entre os mundos, como ele).


Não tropeçou no céu, como os populares no alvoradíssimo logradouro pensaram, vendo-o flutuar no ar. Qual tropeço. Qual suicídio ! Apenas seguiu a mensagem que cumprimentava pelo desenvolvimento da missão, oferecendo, como prêmio, o céu profundo.


Levou a noite toda subindo, subindo... Do alto da escuridão, clarividente, percebeu o beijo safado abrindo-se para ele. Ascendeu ao chão. Ao alto do fundo do chão. Penetrou aquela terra. Êxtase sacral. Voltará no início dos tempos, quando desencantar.


Purificado e colorido de luzes, sem o corpo de barro.




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