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08 setembro 2006


QUALQUER UM
(Mão Branca)

- Não mato qualquer um. – Falei antes de qualquer coisa. O homem do outro lado da linha calou-se para me ouvir. – Preste atenção: só vou explicar uma vez! – Fiz uma pausa. – Você me dá todas as informações sobre o caso. Quero nomes, endereços e fatos. Vou investigar. Se o canalha que você quer morto realmente merecer morrer, eu me livro dele. Se não merecer, mato você por ser um filho da puta querendo matar gente inocente. Fui claro?
- Sim. – Sua voz era firme, bom indício.
- O pagamento será em dinheiro.
- Metade depois do serviço? - Perguntou o homem.
- E se eu resolver te matar, como vai me pagar?
Ele titubeou, finalmente.
- Certo. À vista.
- Conte-me tudo. – Pedi.
Disse chamar-se Alexandre Marques. Era engenheiro, dono de construtora, com um sócio que estava comendo sua mulher. Até então, nada de mais, só não é corno quem não sabe, eu jamais finalizaria alguém por traição. O problema era que os dois tramavam acabar com ele para ficarem com todo o empreendimento.
- A empresa é grande? – Quis saber o nível do meu contratante.
Falou-me o capital social. Milionário. Eram gentes de posse. Melhor assim, de pé-rapado eu tava de saco cheio.
Contou que descobriu a mulher e o amante contratando um assassino de aluguel para matá-lo, por isso resolveu me contratar para matá-los antes.
- Não sou um assassino de aluguel. – Retruquei. – Sou uma espécie de justiceiro. – Quase ri de mim mesmo, justiceiro? Que nada, eu matava por prazer mesmo, adorava ver os olhos da vítima tornarem-se turvos, a pupila dilatando sem sensibilidade à luz, a energia da vida fluindo livre do corpo maléfico e devasso.
- O assassino – Mudou o assunto – já deve estar atrás de mim.
Outro matador? Isso era perigoso. Qualquer cara com uma arma é um adversário a ser considerado. Pegar canalhas sexuais ou bandidos fuleiros era fácil, quase sempre estavam desarmados e morriam de medo dos meus trabucos, mas assassinos de aluguel eram normalmente ferozes e disciplinados, atacando de tocaia, sem misericórdia. Igual eu fazia.
- Como descobriu?
- Interceptei um telefonema ao matador. Meu sócio contava minha rotina.
Resolvi aceitar o caso.
- Esteja com meu pagamento na sexta-feira numa sacola plástica de supermercado ao lado do Pão de Açúcar do Lago Norte. – Expliquei uns detalhes e a hora e anunciei o montante. Ele nem se espantou, era rico. Eu havia multiplicado por quatro meu cachê. – Até lá seguirei as vítimas. Dê-me os endereços e horários.
Anotei e sai à caça. Morava o sócio no Lago Sul e meu contratante com a mulher no Park-Way, numa mansão de encher os olhos. Toquei a campainha e conversei com a empregada, uma mulatinha deliciosa.
- A patroa taí?
- Saiu com o doutor. – Brejeira, rebolava ao falar.
- E você, que horas sai? – Fiz meu olhar Dom Juan. Ela sorriu e respondeu. Zanzei pela vizinhança esperando o fim do expediente da empregada. Fumei um delicioso baseado pernambucano, bem verdinho, deixou-me bastante louco. Peguei a mulata em frente à mansão e demos um passeio. Em dois dias eu já era seu amante e sabia de tudo o que acontecia na casa.
Ela me contou que a patroa, Dona Irani, era meio vagabunda mas não parecia ter outro homem. Se tivesse, era bem discreta. O patrão, este sim, era enrolado até a cueca com outras mulheres.
Escondido no quarto da empregada, dormi na mansão no quarto dia. Sai durante a noite e xeretei nos telefones, nas agendas, nas carteiras, bolsas, gavetas, bolsos de roupas e até nos lixos. Pouco descobri, além de um número de telefone sem nome. Chamou-me a atenção pois era meu número antigo de celular, que eu havia trocado no sistema de rodízio que faço para nunca ser rastreado pela polícia. Sempre que mudava o número, ligava para os antigos contratantes para informar o novo celular e perguntar se alguém tinha “vendido” meus serviços, ou seja, encontrado algum novo canalha para eu apagar.
Pedi à Neide, a empregada, as contas de telefone da casa. Ela não aceitou a princípio, mas as flores com que a presenteei junto ao pedido fizeram-na ceder. Descobri que foi do telefone do patrão que saíram várias ligações para meu celular. Ele parecia já estar tentando me contatar há tempos.
Acessei a caixa de mensagens do antigo número:
- Preciso te contratar. – Escutei o patrão gravado na secretária eletrônica. – O marido da minha amante quer me matar. Retorne a ligação. – E citava um número desconhecido. Disquei para ele.
- Alô! – Disse um homem.
- Armando? – Perguntei.
- Não, aqui é Flávio.
- Armando Pinto?
- Ah, vá se foder! – Retrucou Flávio e desligou.
Perguntei à Neide quem era Flávio.
- Uai, - Ela sempre começava as frases com brejeirices. Gracinha. – é o sócio do patrão. – Olhou-me como se eu fosse um idiota. Comecei a achar que alguém realmente estava querendo me fazer de idiota.
Liguei mais uma vez para Flávio.
- Armando Pinto?
- Vá se foder! – Gritou Flávio.
- Aqui é o agente Horácio da Sexta Delegacia. Do Paranoá. – Metalizei a voz. – Há algum Armando Pinto que perdeu o telefone? Ou foi roubado? – Enfatizei a última parte.
- Sim, agente – Titubeou Flávio. – meu telefone foi roubado há uns meses, mas já apareceu. – Ouvi um sorriso simples. – Como por milagre.
- Exatamente quando o aparelho sumiu, senhor Armando? – Perguntei e ele me indicou uma data correspondente à que meu contratante havia ligado para meu número antigo. E disse o nome completo, Flávio Frias.
Se minha interpretação estivesse correta, e eu quase nunca me enganava, aconteceu que meu contratante roubou o telefone do sócio e ligou para um assassino de aluguel do próprio telefone, fazendo-se passar pelo sócio, para que o assassino retornasse a ligação no celular do sócio, assim ele próprio atenderia e acertaria o assassinato dele mesmo. Deixava tudo registrado nas contas. Não fazia sentido!

A não ser que ele próprio denunciasse tais ameaças à polícia e, quem sabe, contratasse outro matador para “fazer” o sócio antes de sofrer qualquer atentado. Desde o começo queria pagar só depois do serviço, ou seja, não queria pagar.
Liguei para a Sexta.
- Agente Horácio, por favor.
Um grito e ele atendeu.
- Faz uma pesquisa para mim? – Pedi. Concordou com um grunhido de “manda”. Falei sobre a ameaça a Alexandre Marques por parte de Flávio Frias.
- Tem registro sim. – Uns sons de teclado de computador – Ele contou que a mulher o trai com o sócio Flávio Frias e querem, em conluio, matá-lo para ficar com a empresa. – Horácio parecia ler o papel. – Assinado e registrado num BO.
Desliguei. Estava feito o esquema: meu contratante estava resguardado pelos próprios meninos da lei, vítima de ameaça pelo sócio que fodia sua mulher e trocava telefonemas com um possível matador de aluguel. O único erro que cometeu foi ligar para meu antigo número pelo próprio celular.
Pensei na “dona” Irani e em Flávio. Seriam mesmo amantes? Bem, tanto fazia. Que trepassem gostoso.
Na sexta-feira fui de moto ao Lago Norte. Estacionei na quadra 04 e atravessei a viela entre cercas de chapas de ferro até o Pão de Açúcar, lugar apertado de uns quatrocentos metros de extensão. Procurei pelo Baixinho, um moleque de rua. Logo apareceu.
- Ué? Cadê a moto?
- Hoje é diferente, Baixinho. – Expliquei que naquele dia ele não iria conferir o dinheiro e o levar para mim do outro lado da viela. Iria apenas conferir o dinheiro e me chamar ali mesmo.
- Duzentos? – Quis saber quanto iria ganhar pelo trampo.
- Quinhentos, meu chapinha. – Sorriu com os dentes perfeitos. Era de rua mas limpinho. E nada bobo.
O “doutor” Alexandre Marques, dono de empresa, rico, safado, tentou armar uma arapuca para se livrar da mulher e do sócio, ficando livre com toda a empresa. Iria conseguir perfeitamente seu intento, porém deu o azar de encontrar o matador errado. Provavelmente não acreditou em mim quando expliquei meus termos. Muitos possíveis contratantes desistem depois de ouvir meu discurso inicial. Ele provavelmente achou que fosse besteira ou, talvez, pagou para ver, imaginou que eu não fosse mesmo meter as caras na investigação. Ou que eu fosse burro.
Na hora marcada, início da noite, o engenheiro surgiu num Civic. Apontei-o com a cabeça, Baixinho disparou até o carro e soltou a matraca.
- O dinheiro tai, tio? – Enfiou a cabeça pela janela. – Cadê a sacola de supermercado? Anda, deixa eu ver. Abre. Tá armado, tio? Levanta as pernas. Levanta a camisa. – As ordens se sucediam. Era engraçado ver um marmanjo amedrontado com uma criança. – Abra o porta-malas. – Foi atrás conferir e olhou em minha direção. Confirmou com a cabeça.
O engenheiro estava tão certo que seu plano daria certo que foi entregar o dinheiro ao segundo matador sem nenhuma proteção. Pensou que só trataria com o moleque de rua como expliquei ao telefone. Azar o dele. Fui até o carro e entrei no banco de passageiro.
- Ai. - Ele se assustou. Foi engraçado.
- Calma. – Acendi o isqueiro e incendiei a ponta de um baseado paraguaio, do bom. – Sou eu. – Peguei o saco com o dinheiro. Nem conferi, confiei no Baixinho. Saquei cinco notas de cem e estendi para fora da janela. O moleque as pegou como um raio e sumiu no estacionamento. - Anda com o carro.
- Para onde?
- Só – Prendi a fumaça no pulmão. Saiu um barulho engraçado e um pouco de fumaça pelo nariz. – anda.
Ele saiu pelo Lago Norte, subiu a serra para Sobradinho, passou por Planaltina, seguiu para São João da Aliança e continuava calado. Eu fumava tranqüilamente, apontando as ruas a seguir. Até cumprimentei os canas da barreira policial. É impressionante o que o medo faz as pessoas aceitarem sem resistir, principalmente se o atacante está de luvas de plástico branco e um berro preto engatilhado.
- Para onde? – Finalmente perguntou. E ainda se repetiu.
- Para o inferno. – Nem me mexi no banco, para aumentar o efeito da frase. Notei que ele começou a tremer. Ri mentalmente. – Diminua. – Ele tirou o pé do acelerador. Logo paramos no acostamento. Virei-me e perguntei: - Você tentou me enganar?
- Pensei que aquele papo de justiceiro fosse brincadeira. – Falou com a voz firme. Havia recuperado a confiança. – Você vai me matar?
- O que você acha?
- Eu tenho muito dinheiro. – A voz estava inexpressiva, apenas constatava o fato. Para ele tudo se resumia aos valores sustentados pelo dinheiro. Honra e moral eram valores desconhecidos, esquecidos no velho mundo dos pais e avós, ou mesmo inaceitáveis na batalha diária pela sobrevivência no meio capitalista e portanto selvagem que se espalhou por todos os cantos. Com dinheiro resolveria qualquer problema, ninguém resistiria, afinal todos eram tão podres e mesquinhos que renegariam aos mais importantes valores em troca de aumentar os dividendos financeiros. Sendo rico, tinha o que quisesse.
- Eu tenho uma arma. – Apontei o trinta e oito para o nariz pequeno de Alexandre. Ficaria ainda menor com o estouro da bala. – Quer uma chance? Te dou uma chance. – Ele continuava impávido, porém o suor diminuiu. Eu sempre atentava para os detalhes, eles me previam as ações das vítimas. – Confesse.
- Como?
- Ligue agora para a polícia e confesse que você tramou a morte do seu sócio e da sua mulher. – Seus olhos perderam o foco, analisava as possibilidades. – Sim, você será preso, mas é melhor que morrer. – Ajudei em seus pensamentos.
- Certo. – Sacou o telefone e discou um número. – Aqui é Alexandre Marques. Quero confessar um crime.
Tomei o aparelho e desliguei.
- Tive uma idéia melhor. Vamos para a delegacia. – Sorri. – Sou policial. O senhor está preso!
Pareceu desabar o engenheiro, seus olhos brilharam. Sorriu, até. Viu-se apanhado numa armadilha da polícia para arrancar sua confissão.
- Sim. – Mantive o sorriso. – Saia do carro para ser algemado.
Ele contornou o Civic visivelmente feliz. Chegou-se para mim com as mãos estendidas.
- Pode algemar.
- Vire-se de costas, senhor. – Imaginei ver dúvida em seus olhos, mesmo assim ele se virou tranqüilamente e juntou as mãos às costas.
Acertei o tiro na nuca.
A bala saiu pelo rosto e o desfigurou. Caiu mortinho como desejou à própria esposa e ao sócio. Eu sentia algum remorso? Hum, não. Prazer? Hum, sim. Vergonha? Sim, principalmente por sentir prazer em estourar os miolos de um canalha e sem remorso algum. Nunca entendi essa minha compulsão.
Tirei as roupas do cadáver, guardei o relógio e a carteira e joguei tudo dentro do carro. O morto peladão deixei no banco de trás. A polícia acharia todo aquele sangue no carro e imaginaria que ele morreu. Voltei ao volante e andei com o carro. Já rodávamos na pista menos de três minutos depois que paramos no acostamento. Meu presunto estava nu e quase pronto para a desova.
Procurei a primeira estradinha perto do córrego Buritizinho. Entrei por uma picada de chão e desliguei os faróis. Andei vagarosamente, via pouco a frente. Logo parei o carro e arrastei o corpo para fora. Saquei o canivete e fiz dezenas de talhos na pele, abri a barriga e puxei fora o intestino e outros órgãos. Deixei tudo exposto à luz da lua. Naquela mesma noite todos os insetos da região se alçariam sobre o cadáver. Trariam bilhões de micróbios. De manhã estaria duro e seco, meio comido pelas formigas e ratos. Antes do meio dia estaria levemente decomposto. Ao cair da tarde seria atacado por urubus, musaranhas, gambás, até cachorros-do-mato, onças ou chupacabras, não importa, o certo é que na noite seguinte já será um monte de ossos espalhados pelo mato, que ficarão secos e quebradiços em poucos dias, graças ao sol e novamente aos insetos.
O casal jamais seria responsabilizado, sem cadáver não há crime, mesmo com os indícios do sangue no banco. Eu queria deixar claro para a família que não deveriam procurá-lo, ele já conversava com o capeta.
Voltei pilotando o carro com uma mão e outro baseado na outra. Antes havia queimado a carteira e espalhado as roupas pelo acostamento. Um homem sumia da face da terra.
Parei o carro no estacionamento do Pão de Açúcar, fechei-o com um bip, atravessei a viela e joguei a chave no quintal de uma casa. Cheguei na moto, soltei o capacete, montei e o celular tocou. Estranho, duas ligações num mesmo mês?
- Não mato qualquer um. – Falei antes de qualquer coisa.

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