Bechamel
(Alexandre Campinas, mote de Evaldo Magalhães e homenagem a Mari Kill)
Inusitado.
No mínimo inusitado.
Já não se
sabia se era sangue ou molho ao sugo o que escorria pela mesinha mínima e
represava-se, com fettuccine e almôndegas, junto aos peitos da gordona ávida de
massa. Olhando a cena, observando bem a cara de espanto da jovem vovó que
tentava em vão franzir as sobrancelhas botulínicas, fiquei tentando imaginar o
que ela pensava. Ela pensava ? O mundo quase literalmente desabou sobre seu Spoleto
e imaginei que a gordinha dos peitos empapados de vermelho talvez pensasse:
"Porra ! Servico fast-food do caralho, este... Que rapidez !"
"Mas
eu pedi espaguete ao molho branco ! Molho branco, molho branco !" gritava
a velhota, enquanto o ruborizado garçom tentava explicar-se "Mas... Isso
nunca aconteceu antes...". A turma da faxina já iniciava a remoção dos
dejetos e higienização do local. A Gestão de Crise do elegante shopping logo
chegou com os tapumes de lisérgicos desenhos coloridos, sempre utilizados
nesses casos, ao mesmo tempo em que o estagiário de comunicação espargia no ar
uma contagiante fragrância de chocolate. A música de Wagner, inclemente,
berrava dos auto-falantes da praça de alimentação, cumprindo sua notável função
de desviar o foco das atenções, junto com a trupe de malabaristas, palhaços,
engolidores de fogo e mágicos que entrava estrepitosamente no palácio dos
manjares plásticos.
O SOR,
Serviço de Orientação de Restaurantes, rapidamente levou a senhorinha para uma
sala reservada. Um banco duro, ar-condicionado beirando o grau zero, e aquele
inferno musical estuporando o cérebro da coroa: "Ai se eu te pego, ai,
ai...". Dez minutos. Dez longos minutos foram suficientes para que o Getransi,
gerente de transfiguração de informações, encontrasse a cliente em um
lastimável estágio pentotalizante. "A senhora escolheu fettuccine com
almôndegas, porra! Foi ou não foi, merda ?! Responda !", automaticamente,
mas sem muita certeza, ela só dizia "Eu, eu, eu..."
Sinfrônio
(este era o nome do Getransi de plantão naquele sábado) aproximou-se de
Gardenália (por eliminação - que palavra !-, a velhinha) e aplicou-lhe um
telefone daqueles de mesa antiga de telefonista cheia de plugs e
"minutinho, por favor". "Desentope, velha ! Fettuccine com
almôndegas, filha da puta !". "Eu, eu, eu..."
"Presta
atenção. vovozinha, eu não vou repetir nem uma só palavra e guarde que,
dependendo de sua reação, poderão ser as últimas que escutará na vida".
Abriu a porta da geladeira infernal e um som de palmas compassadas invadiu a
sala. Eram os devoradores de comida chinesa, mequidonaldis e alidarábia que
acompanhavam o ritmo frenético da apresentação circense. "Tá ouvindo,
desgraçada ?! Ninguém lembra mais de mesa, de corpo que cai, de sangue, de
´porra nenhuma ! Eles só têm a vaga lembrança de uma velha rabugenta e
reclamona que enganou-se sobre o prato que pediu. E então ? Fettuccine com
almôndegas ou..." A velada ameaça pairou como nuvem negra, pronta a soltar
seus cristais de granizo. Gardenália: "Eu, eu, eu..."
"Tu
não vale o prato de Spoleto que pediu ! Anda logo, que amanhã tem Galo e Coelho
e eu tenho que comprar os ingressos na loja aí de fora. Não tenho mais tempo,
porra ! Não vou perder este Barcelona e Real Madrid local por conta de uma
escrota que imagina coisas"
"Eu,
eu, eu..."
Foram
as últimas palavras de Gardenália. Triste fim. Tudo por causa de um espaguete
com molho branco... Ao por de pé a velhota na beira do alçapão que escondia o
triturador de carne, ela ainda pode ver o crânio partido do rapaz que caíra em
sua mesa, aquele mesmo que pedira um tamanho G na loja do andar superior e
recebeu um M enquanto estava na cabine de provas. Ele, que insistira tanto no
erro da vendedora. "Eu, eu, eu..."
Um
pontapé na bunda foi suficiente. Rosctrofeistragofiepumba. Do outro lado da
máquina, saíam as almôndegas prontas e embaladas. "Eu, eu, eu é o caralho
!", dizia Sinfrônio entre gargalhadas, tentando limpar a mancha
espermática de seu uniforme tipo safári, cáqui. Foi ao banheiro, passou pelo
pote suspenso de álcool gel, borrifou as mãos, espargiu umas gotas de água aqui
e ali sobre as calças e saiu daquele lugar com um sorriso diabolicamente
satisfeito nos lábios. Voltou para sua sala de observação. Na mesa,
meticulosamente organizada, um bilhete:
"Eu
sei tudo". Mariana M.
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