PÉ DE CACHIMBO
(Alexandre Campinas)
Hoje é domingo, pede cachimbo...
Jesus... Nem posso ouvir isso que tudo volta na cabeça da
gente. Quando o Júnior era criança eu falava essas coisas para ele. Que
arrependimento. Se eu soubesse...
Foi difícil e é difícil o tempo todo. O corpo vai acabando, sabe
? As coisas de casa vão sumindo. Seu moço, foi o tal do cachimbo. O que era
alegria quando ele era menino virou em tristeza sem fim. Vou contar pro senhor,
mas não leva o Júnior não. Pelo sangue de Jesus, não leva meu menino. Não é
maldade não, é doença mesmo.
(arte sobre foto original agência AFP)
Todo domingo eu brincava com ele. Eu trabalhava até depois
do almoço e vinha pra casa. A patroa exigia que eu lavasse as vasilhas antes de
sair. Ela dizia que panela suja era coisa de gente porca. Para ela, no caso, a
porca era eu, mas isso é outra história.
Só tinha a tarde e a noite de domingo para ficar com meu
filho. Então eu chegava em casa, catava ele na rua onde estava com as amizades
dele, deitava a cabeça dele no meu colo e brincava disso, dessas historinhas.
Outro dia, eu aprendi: não é historinha, é parlenda. Hoje é domingo, pede
cachimbo... Até já sumiu da minha cabeça o resto. Não quero lembrar. Olha só
como ele está hoje: pele e osso.
Então eu contava pra ele, falava com ele. Tentava dar rumo
na vida dele com bons conselhos, mostrava meu exemplo de mulher trabalhadora.
Durante a semana quem tomava conta dele era uma vizinha aqui. Mas tomava conta
do jeito dela, né ?
Cachimbo maldito. Cachimbo da morte e da dor. Olha ele, seu
moço, jogado ali no sofá. Ele roubou, foi ? Desculpa o Júnior. Não foi por mal.
É a doença. Ele precisa da pedra pra viver. Não quer mais nada, só cachimbo.
Nem frango assado, que uma vez por mês eu comprava quando saia o ordenado. Ele
adorava. Ficava todo lambuzado de frango e dizia “hoje pode, né mãe ? Hoje é domingo, pé de cachimbo...” e eu dizia
que não era pé de cachimbo, que cachimbo não tem pé nem mão. Quanto ele roubou,
seu doutor ? Foi dinheiro, foi ? Quanto
? eu pago. Nem que seja em prestação, mas eu pago. Só deixa meu menino aqui comigo, para eu por
ele no meu colo e cantar para ele. Deixa, seu moço ? Ele é bom menino que eu
sei. Eu sou mãe, eu sei. Foram as más companhias, o que eu podia fazer ? Tinha
que trabalhar...
Não maltrata ele não. Leva direitinho, olha só: ele nem
consegue ficar em pé direito. Em pé de cachimbo... Quando ele sai de lá, senhor
? Quando eu vou poder pegar meu menino e trazer para o meu colo ? Deixa eu
cantar para ele antes, seu moço ? O senhor não tem dó não ? Não tem filho ? O
senhor sabe onde está seu filho agora, doutor ? Desculpa a grosseria. Foi só dor de mãe. O
senhor não é mãe, né ? Se fosse, saberia mais dessa dor. Desculpa, doutor. Foi
celular que ele roubou ? Toma aqui o meu, leva pra dona. Não... Leva ele não, seu moço. Leva não... Outra
vez ele não aguenta mais. Eles maltratam muito ele lá.
Na rua, também maltratam. É igual cachorro com bicheira. Fora os que batem, amarram no poste. Falam que bandido bom é bandido morto, doutor. O senhor acha isso também ? Eles dizem "tá com dó ? Leva pra sua casa...". Eu levo. Todas as mães levam. Nossos bebês que ficaram doentes e que eles não querem que sarem. Falam da tal meritocracia, doutor, vê se pode ? E ele teve a mesma possibilidade dos outros, teve ? Teve pai e mãe pra ajudar nos deveres ? Casa sem mofo, teve ? Eu tentei, moço, juro que tentei, mas ou eu trabalhava para ele comer ou nós morríamos de fome. Cheios de meritocracia, mas meritocracia não se come, né ? Fala pra mim: o senhor já tomou sopa de meritocracia ? Já saciou aquela fome, que até dói nas tripas por dentro da gente, com uma bela macarronada de meritocracia ?
Ele não vai fazer mais
isso não. Eu vou trabalhar dobrado e comprar a pedra pro cachimbo dele. Sei que
já não tenho mais nada em casa, mas pelo menos tenho o meu Junior... Eu já não
dou conta, senhor. Tenho até cartão de idosa. Peço para Deus levar meu menino com carinho, pra cuidar dele lá no paraíso, entre os anjinhos. O senhor vai levar
mesmo, doutor ?
Cuida dele, doutor, cuida...